'Foi libertador'

Ex-cantora gospel e hoje pop, Jotta A fala de transição de gênero e como vive sem medo do pecado

Jotta A, em depoimento a Hysa Conrado

Era pandemia. Eu morava na Colômbia e estava profundamente deprimida —tinha pintado todo o meu apartamento de preto, o teto, as paredes, tudo. Sentia como se estivesse em um umbral [no espiritismo, lugar escuro onde ficam os que ainda não foram encaminhados para o paraíso ou o inferno].

Mas naquele dia em especial decidi vestir algumas roupas femininas que havia tomado emprestadas de um amigo, drag queen. Então comecei a me sentir bem. Eu me senti eu mesma. Eu me senti acolhida. Naquele exato momento, decidi começar a transição.

Durante minha vida, nunca havia tido experiências com mulheres trans. Não conhecia, não tinha acesso a elas. Era algo desconhecido. Mesmo sentindo que eu era uma mulher trans, não sabia me expressar.

Isso mudou numa ocasião em que fiz amigas trans e fui à casa de uma delas. Acompanhei o momento em que se arrumavam para ir a uma festa. Aquilo me encheu de alegria, meus olhos brilharam. No mesmo instante, pensei: "Meu Deus, era somente isso que eu precisava saber. Existem pessoas assim. Eu também posso". Então entendi quem eu era.

Esse entendimento se consolidou naquele dia na Colômbia, espremida entre as paredes e o teto preto, diante de parte do guarda-roupa do meu amigo —camisas, croppeds, diversas perucas. Primeiro vesti uma saia. Depois, fui acrescentando as demais peças. Me montei como uma drag, algo que nunca tinha feito. Pelo menos, não daquela maneira. Porque, no fundo, só repeti um comportamento meu de criança, quando colocava um pano na cabeça e me sentia mulher.

Silas Malafaia no comando

Hoje, quem acompanha minha carreira me manda perguntas do tipo "por que você não se assumiu antes?" A resposta é que eu me culpava. Demorei muito tempo para me assumir porque demorei para me aceitar, vivi esse tormento que muitas pessoas vivem. Fui infeliz porque me permiti ser.

Era tudo complexo. Ainda tinha que prestar contas a uma carreira no meio gospel que vinha construindo desde a infância, quando participei de um reality no programa do Raul Gil ["Jovens Talentos Kids", no SBT, em 2011]. De certa forma, minha família e meus produtores dependiam financeiramente de mim. Quando tem dinheiro, algum prestígio e fama envolvidos, você não vê as portas de saída.

Assim que saí do programa do Raul Gil, com 14 anos, fui empresariada pelo Silas Malafaia, pastor que defende a chamada "ideologia de gênero". Passei a adolescência inteira ouvindo esse tipo de pregação e isso fez acumular certa raiva dentro de mim.

Eu não tinha voz, tinha apenas que ficar calada e concordar com o que ouvia. Não podia me manifestar para os meus pais, para ninguém. Além disso, não tinha amigos LGBTs com quem pudesse conversar.

Logo que deixei a igreja, assumi a homossexualidade —hoje me entendo como biafetiva—, e saí da obscuridade em que vivia. Pessoas com quem eu havia sido honrosa passaram a apontar o dedo para mim. Senti muita tristeza e uma grande revolta por me tratarem daquela forma.

Também passei a receber comentários transfóbicos diariamente nas minhas redes sociais —recebo até hoje. Mas aprendi com minha mãe a ser amável —e a ignorar aqueles que não retribuírem minha amabilidade. De todo modo, dói saber que meu fãs e outras pessoas trans estão lendo as agressões e podem se sentir atingidos.

Depois que me entendi como mulher trans, mudei meu nome para Ella, mas decidi manter Jotta A como nome artístico. É um choque de realidade e uma afronta.

O choque porque ainda há quem não aceite a existência de LGBTs desde que o tempo é tempo —em todos os lugares, em casa ou na igreja.

A afronta porque eu não mudaria nada na minha história. Tudo o que aconteceu comigo foi uma construção para que, hoje, eu fosse mais forte. Para liberar tudo que eu sou. Quem viu Jotta A cantando "Aleluia" vai ver Jotta A travesti.

Vestir a roupa que se quer

Em determinado momento da pandemia, voltei para o Brasil e resolvi morar sozinha. Como fiquei meses sem publicar nada nas redes sociais, meus seguidores não sabiam como estava a minha imagem. Então aproveitei para vestir a roupa que eu quisesse e sair na rua. Comecei a viver esse processo só e muito feliz.

A primeira pessoa para quem contei foi minha irmã. Não esperava que a atitude dela fosse tão linda. Ela me acolheu e já compartilhou com meus sobrinhos, que passaram a me chamar de tia desde o primeiro momento.

Com a minha mãe foi um pouco mais difícil, eu entendo. Foi uma readaptação, ela precisou me conhecer novamente. Ficamos um pouco distantes no começo. Mas hoje ela me liga, às vezes me chama pelo nome que eu mesma me dei e não o que ela escolheu.

Isso para mim é uma emoção, porque minha mãe idealizou uma pessoa e hoje está se permitindo conhecer outra. Ela também está vivendo uma transição. Tudo o que tenho vivido com a minha família é muito leve e isso me surpreendeu.

Ouvindo a história de outras mulheres

Decidi começar a hormonização e voltei a postar nas redes sociais. Comecei a sentir a minha mama se desenvolver. Sentia meus seios maiores a cada vez que me despia. Isso, para mim, era uma alegria enorme.

No começo, recebi muitas cobranças. Alguns fãs me perguntavam por que eu não fazia logo a cirurgia ou colocava uma prótese de silicone. Mas não tive pressa.

Precisava passar por aquele estágio —primeiro, me sentir bem comigo mesma. E constatar que a estética não é símbolo de nada se eu não tiver garantia de quem sou. Foi uma fase incrível.

Mas, antes de dormir, ficava idealizando o momento da cirurgia de feminização. E, quando aconteceu, foi libertador.

Tive um apoio médico que não esperava. Na clínica, fiquei hospedada com outras mulheres trans. Conheci uma mulher de 70 que estava fazendo a redesignação sexual. Foi lindo poder sentar com ela no café da manhã, eu ainda toda enfaixada da cirurgia, e ouvir suas histórias.

'A música é meu culto'

Venho de uma igreja pentecostal e não entendia por que se cantava daquele jeito. Mas, quando tive experiência com as religiões de matriz africana, a música começou a fazer sentido para mim. Fui à matriz da nossa raça.

Hoje, quando vou à balada e vejo pessoas ouvindo música e dançando de maneira intensa, vejo que elas estão, de alguma forma, cultuando a alegria. Para mim, a música é um intenso culto.

Passei por muitos lugares, como o candomblé, e acredito em diversas filosofias que me acolheram. Entendo que o meio cristão foi necessário para mim, mas não me permito me prender a nenhum tipo de dogma, a nenhum tipo de relacionamento tóxico.

Vivo o agora, em paz, leve. Gosto de meditar. Fui criança e adolescente ansiosa, tinha crises dentro do avião. Agora, quando me pego sozinha, sem medo de pensar que vou para o inferno ou que vão descobrir quem eu sou, penso "meu Deus, que coisa incrível".

Axé, que lindo viver uma luz intensa dentro de mim.

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