Guiada pelo propósito

Como Regina Esteves, CEO da Comunitas, acionou amigos poderosos e juntou R$ 25 milhões para combater pandemia

Cláudia de Castro Lima Colaboração para Universa Lucas Seixas/UOL

Em março deste ano, a executiva paulista Regina Esteves fez algo que evitou durante todos os 20 anos em que está à frente da Comunitas, organização sem fins lucrativos que atua para melhorar as administrações de prefeituras e estados. De celular em punho, ela abriu o WhatsApp e disparou, para toda sua rede de contatos, uma mensagem pedindo dinheiro.

Ela não queria pouco: a meta era chegar em R$ 20 milhões. Mas sua agenda de contatos também não é ordinária. Nela estão pessoas como Ricardo Villela Marino, vice-presidente do Conselho de Administração do Grupo Itaú Unibanco, o herdeiro do Grupo Globo José Roberto Marinho, CEOs de empresas como Votorantim, Brookfield e Grupo Jereissati, além de políticos como Fernando Henrique Cardoso e toda sorte de gente poderosa e abastada.

Num impulso, angustiada com o que poderia acontecer com a população mais pobre do país com a pandemia do novo coronavírus, Regina marcou uma reunião com especialistas do Hospital A.C. Camargo e, com eles, descobriu como conseguir respiradores. Reservou vários equipamentos, no valor de R$ 20 milhões, para doar para hospitais públicos de São Paulo, sem saber de onde tiraria o dinheiro. Mas suas mensagens de WhatsApp circularam entre os amigos dos amigos e, em três dias, ela tinha R$ 25 milhões.

Regina Célia Vasconcelos Esteves, que cursou administração porque herdou do pai a veia empreendedora, enveredou pelo caminho social conduzida pelas mãos da ex-primeira-dama Ruth Cardoso e de lá não saiu - encontrou cedo o que muitos buscam hoje, o tal do propósito. Reservada, acha que quem deve aparecer é a causa, e não ela. Nesta exceção que abriu para Universa, ela conta sobre sua experiência trabalhando lado a lado com empresas e governos, sobre como a pandemia vai afetar nossa forma de enxergar o mundo e sobre como ser mãe mudou seu estilo de gestão.

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Você cursou administração, mas acabou entrando na política. Como foi parar no governo Fernando Henrique Cardoso?

Perdi meu pai aos 16 anos, mas tive a oportunidade de estar com ele na empresa que tinha, de brindes, e ver como era empreendedor. Foi um estímulo forte. Com 18 anos, saí do interior [Marília, em São Paulo] para fazer faculdade e trabalhar. Acabei fazendo mestrado em gestão universitária em Chicago, nos EUA - o curso nem existia no Brasil. Eu era a mais jovem e uma das poucas mulheres. Com 23 anos, já era pró-reitora de universidade. E quando houve, no começo [1993] do governo FHC, o projeto para fusão da FAE [Fundação de Assistência ao Estudante] com FNDE [Fundo para o Desenvolvimento da Educação], tiveram interesse em minha experiência universitária para ajudar no processo. Depois, a dona Ruth [Cardoso] quis fazer algo pela alfabetização de adultos. E o ministro Paulo Renato Souza [Educação] me indicou. Já tivemos afinidade na primeira conversa. Fiquei os oito anos no governo.

Você disse que até então não havia mulheres nas quais se inspirar. Ruth Cardoso cumpriu esse papel?

Ela foi minha mentora. Dona Ruth já fazia sessões de cocriação [modo de gestão que aproxima diferentes grupos]. Hoje a gente tem tecnologia para isso, tem design thinking. Mas antes não tinha, e ela já botava na mesma mesa o governo e a sociedade civil, mesmo com propostas políticas antagônicas. Ela também valorizava pessoas com perfis e conhecimentos diferentes atuando como pares, além de ser uma pessoa muito sensível nas relações. Mais do que uma mentoria, aprendi valores com ela que são fundamentais hoje. Aprendi que a gente pode fazer uma coisa pequena que vai ter um impacto grande desde que a faça com seriedade e propósito.

Toda executiva bem-sucedida, quando olha para a própria trajetória, tem orgulho do que conquistou. Quem trabalha com causas sociais, como você, tem mais orgulho ainda, já que impactou a vida de pessoas?

Tem três pontos importantes que me movem. Pensar que realmente houve um propósito, uma causa, que teve impacto na vida de pessoas —esse é um deles, eu até me emociono com isso. Outra coisa é quando percebo que consegui engajar pessoas em uma causa - aquilo vira uma rede e não pertence mais a ninguém. O terceiro ponto é perceber que estou conseguindo passar os meus valores para os meus filhos. O Matheus tem 15 anos e a Carol, 13. Não adiantaria eu fazer só para fora se não conseguisse impactar também o meu círculo imediato.

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Você teve um papel muito ativo durante a pandemia do novo coronavírus e conseguiu uma doação expressiva. Como foi esse trabalho de "passar a sacolinha"?

Vivi um primeiro mês de muita angústia, imaginando o que viria pela frente. Sabia que a rede pública de saúde ficaria no prejuízo. E comecei a questionar por que havia respirador no mercado e a saúde pública não conseguia comprar. Me dediquei a entender. Fui a um hospital privado e pedi para simularem como compravam respiradores. E vi que o mercado reagiu diferente. Há insegurança de receber do público, porque demora. Fiz o contrário: primeiro fui atrás do produto, depois corri atrás do dinheiro. E reservei 200 respiradores sem ter um tostão. Então usei, pela primeira vez, minha rede pessoal para pedir. Mandei WhatsApp para meus contatos pedindo para que me ajudassem a garantir as primeiras UTIs para o estado de São Paulo.

Não bateu um medo de não conseguir?

Chegou uma hora em que eu pensei: meu Deus, não tenho esse dinheiro, como vou fazer? Mas aí veio aquela coisa: vamos logo fazer isso. Conseguimos os últimos respiradores que puderam ser comprados como rede privada e os doamos para o estado de São Paulo. De sexta para domingo [no início da mobilização], a gente conseguiu R$ 25 milhões, um contato foi passando minha mensagem para outro. Percebi com isso o quanto as pessoas confiam em mim. Mas, depois, mudei a atuação e começamos tanto a ajudar os governos a comprar como a iniciativa privada a doar. Às vezes a gente faz uma coisa, é bem-sucedida e acha que tem que continuar fazendo aquilo. Eu prefiro me retirar e replicar.

E agora, o que você tem feito para ajudar no combate à pandemia?

No segundo mês da pandemia, o governador João Doria [de São Paulo] me convidou para estar no Comitê Empresarial Solidário [grupo que reúne mais de 360 empresas e que já arrecadou mais de R$ 750 milhões em doações para o combate ao coronavírus]. Como faço muito isso de olhar o que o governo precisa e como a iniciativa privada pode somar, minha ida para o comitê teve o objetivo de eu poder cocriar coisas diferentes e trazer, mais do que doação, o apoio privado.

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Sua rede de contatos é composta de CEOs de empresas gigantes e políticos. Na outra ponta, você trabalha com pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Como transita entre eles com equilíbrio?

Vou buscar a resposta na dona Ruth: acho que tem a ver com a sensibilidade de perceber os diferentes e como os colocar juntos para somar. O que nos une é a agenda de interesse público. Quem tem interesse individual não cabe. No meu dia a dia, há vários desafios. São linguagens, narrativas, expectativas e tempos diferentes. Mas consigo lidar bem porque não abro mão do que acredito. Recuso recursos se achar que o apoio não está ligado ao interesse público. Aprendi a exercitar o melhor momento de falar o que penso, mas não deixo de me posicionar.

As grandes empresas no país entenderam que a responsabilidade social é uma exigência atual ou ainda estão imaturas?

Algumas aprenderam, até porque temos uma nova geração de líderes com um mindset diferente. Outras tiveram que aprender porque o consumidor mudou. E tem ainda a empresa em que o próprio negócio foi se transformando. Vejo como uma evolução. Na década de 2000, houve o crescimento e a profissionalização dos institutos e fundações dentro das empresas. Agora, até mais do que instituto e fundação, a empresa tem que ter responsabilidade social em sua própria atuação. Ela pode ter o braço que opera, mas o corpo tem que ter isso. Só que ainda estamos em um alto grau de imaturidade, temos muito para avançar.

A pandemia vai afetar isso de alguma forma?

Vai melhorar no sentido do consumo mais consciente, não só na quantidade, mas na nossa escolha, na decisão. Minha filha de 13 anos, por exemplo, me pediu um moletom feito por uma comunidade indígena da Amazônia. Isso já é um posicionamento, e veio para ficar. O consumidor mais crítico vai ser um legado da pandemia. Outro ponto é o colaborador da empresa também mais crítico, cobrando o posicionamento dela em relação aos debates. Por fim, o terceiro ponto que a pandemia deve trazer é uma nova pactuação: não existe retorno se os protocolos da política pública não pactuarem com a iniciativa privada e, principalmente, com o cidadão.

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E pessoalmente, lidar com tanta vulnerabilidade social num momento tão sensível a afetou de que forma?

Foi muito difícil. Sempre dormi muito bem e acordei disposta, mas talvez tenha sido o único momento da minha vida em que acordava angustiada. E demorava um pouco para reagir. Custei para perceber que a angústia só passava quando eu revia o meu dia anterior para ter certeza de que tinha feito a coisa certa. Vivi um mês e meio assim, dormindo três, quatro horas por dia. Não sei se fiz o melhor, mas tenho certeza que dei o meu melhor.

Nós somos um povo muito afetivo e efusivo, mas não temos a cultura da doação. Você acha que falta as pessoas enfiarem mais a mão no bolso?

Para mim, a participação das pessoas não precisa ser só financeira. Acredito que o maior valor que a gente tem, e que é igual para todos, do rico ao pobre, é o tempo. Todo mundo tem 24 horas por dia. Se você, que é jornalista, me perguntasse o que poderia fazer para ajudar no combate à pandemia, eu diria para escrever um texto. É isso: use que você tem, sua capacidade, sua rede profissional. Depois: tente ajudar primeiro o seu entorno, para depois pensar em algo maior. E, quando pensar em algo maior, olhe o que já existe, para poder replicar. É muito válido trabalhar com a cultura de doar, mas temos que trabalhar primeiro com a cultura de participação.

Como você faz para que seus filhos entendam a importância disso?

Acredito que é o exemplo mesmo, mas tem que ser exemplo genuíno. Não é ler um texto que fiz, mas ver as coisas que faço, o que conversamos. Quando tinha 5 anos, minha filha colocou em um envelope todas as moedinhas do cofrinho dela, fechou e quis doar para uma entidade. Isso tem tudo a ver com a nossa história. O exemplo é a vivência em casa. Essa pandemia permitiu que eles presenciassem mais minha atuação. Eles sabem que não falo só por falar.

Que episódio de sua vida você acha que exemplifica bem seu jeito de liderar?

Tenho cargo de chefia desde os 23 anos e, antes de ser mãe, eu tinha controle da minha agenda. Quando meu filho nasceu, carregava ele para onde ia. Um dia, dei de mamar e ele regurgitou e me sujou inteira. Eu estava no limite de tempo para uma reunião e toda aquela organização que eu tinha de time furou. Percebi que não controlava o tempo do bebê, então tive que me organizar diferente. Incrível que uma coisa assim pequena tenha me marcado tanto. Mas aquilo me deixou uma pessoa menos ansiosa. Consegui entender que algumas coisas fogem do controle, e, por isso, temos que ter resiliência e flexibilidade. Muitas mulheres acham que não dá para cuidar de filhos e carreira, mas dá - é só se organizar.

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