"A luta é de todos"

Por rádio, Ednéia Teles transmite informações sobre Covid-19  a comunidades indígenas isoladas

Giuliana Bergamo de São Paulo, com colaboração de Izabel Santos, de Manaus René Cardillo/UOL

Quem lê esta reportagem certamente tem acesso à internet. Também é muito provável que tenha um celular particular. E, exceto por falhas eventuais de sinal, é quase certo que não encontre muita dificuldade para, em poucos segundos, ter acesso a informações de todo tipo, inclusive aquelas que podem salvar vidas, como as formas mais eficazes de evitar infecções por coronavírus.

Mas nem todo mundo vive assim. Ainda hoje, milhares de brasileiros vivem isolados, com quase nenhum acesso à informação ou à energia elétrica. Isso ocorre sobretudo em áreas remotas da Amazônia. O isolamento, porém, não os livra de ameaças como a pandemia de Covid-19, que chega, em geral, de barco junto com mantimentos levados da cidade até as comunidades em viagens que duram dias e também por garimpeiros que atuam na região.

René Cardillo/UOL

É aí que entra o trabalho de Ednéia Teles, 38, coordenadora de comunicação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Desde meados de março, ela tem mobilizado médicos, enfermeiros, biólogos e autoridades locais para transmitir informações sobre a pandemia a indígenas de 200 comunidades do interior do Amazonas, um dos estados mais afetados pelo coronavírus no Brasil.

Baseada em São Gabriel da Cachoeira, município que se autointitula o "mais indígena do Brasil" e que fica na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, ela é responsável por transmitir informações via rádio para comunidades inteiras que, muitas vezes, não têm acesso nem a um orelhão. "Enviamos mensagens educativas com base nas orientações da Organização Mundial da Saúde. Os boletins foram traduzidos para quatro línguas indígenas", diz. Na cidade, os anúncios também são feitos com um carro de som.

Por que o trabalho de Ednéia importa

Informação

Edneia Teles coordena a comunicação via rádio com cerca de 200 das 700 comunidades que vivem nas redondezas de São Gabriel da Cachoeira (AM). Trata-se do único veículo de acesso à informação de toda a região.

Prevenção

Ainda em março, antes mesmo que os casos começassem a surgir na região, ela organizou boletins com informações sobre a Covid-19 para serem transmitidos por rádio. Há também um carro que circula anunciando as orientações.

Personalização

Como há povos na região que não conhecem o idioma português, todos os informes produzidos são traduzidos para quatro línguas indígenas. Panfletos também foram impressos de forma personalizada para esses povos.

Tão longe, tão perto

São Gabriel da Cachoeira, onde Ednéia vive, tem cerca de 41 mil habitantes. É um município urbanizado, tem escola, comércio, hospital e, claro, acesso à internet. Ainda assim, não dispõe de leitos de UTI. "No começo da pandemia, tínhamos só sete respiradores. Agora estão chegando outros", diz. Os casos graves de qualquer doença, inclusive de Covid, precisam ser levados à capital do estado, Manaus. O acesso é por barco, com viagens cuja duração varia entre dois e quatro dias, ou por avião, em voos de duas horas.

"Fiquei sabendo sobre o coronavírus por meio das notícias e das redes sociais. Mas, no começo, não imaginei que chegaria aqui no nosso município, nem que eu poderia pegar essa doença", afirma ela, que, em meados de abril, acabou se contaminando e precisou ficar afastada do trabalho. Além dela, o filho de 9 anos, o sobrinho, de 18, e a sobrinha, de 14 anos, que está grávida de quatro meses, também se infectaram, mas agora estão recuperados.

"Começamos a ficar com medo quando vimos a situação na Itália e, em seguida, quando o vírus chegou no Brasil. Aí a gente recorreu aos nossos conhecimentos tradicionais para cercar o nosso povo, para a gente não pegar o vírus ou não ser muito afetado por ele. E, em seguida, começamos a articulação para proteger as pessoas, principalmente com informação", conta.

Quando, em março, o Amazonas confirmou o primeiro caso de Covid no estado, Ednéia disse que chegou a pensar em não sair de casa. "Eu tinha muito medo de ficar doente, de passar isso para minha família, ainda mais porque convivo com profissionais de saúde. Mas, em seguida, pensei que o meu papel poderia salvar vidas. Então, segui em frente."

A federação em que Ednéia atua é responsável por apoiar os indígenas de outros dois municípios, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, ambos na divisa com a Venezuela.

Divulgação

Salvação via rádio

"Em março, a gente começou a se preocupar com a chegada do vírus. A gente acompanhava as informações da Organização Mundial da Saúde e do próprio ministro da saúde na época, o Luiz Henrique Mandetta, que diziam para a população ficar em casa. Foi então que vimos que precisávamos organizar uma comunicação. A radiofonia aqui é a única forma de falar com as comunidades indígenas da região. Então preparamos informativos, passamos a enviar mensagens educativas traduzidas para quatro línguas indígenas."

Vidas indígenas importam

Apesar da proteção espiritual, o coronavírus vem dizimando vidas indígenas. Pelos cálculos oficiais, 1589 pessoas foram infectadas e 21 morreram naquela região. Mas imagina-se que esse número seja ainda maior. Isso porque, justamente pelas dificuldades de comunicação e deslocamento, muitos casos acabam não sendo notificados ou notificados só muito tarde.

E, se para parte dos não-indígenas o fato de que o vírus é mais letal entre as pessoas mais velhas é um atenuante, para os indígenas, esse é um motivo de maior preocupação. "Nossos idosos estão morrendo e eles são os grandes conhecedores dos nossos costumes tradicionais, são pessoas muito importantes para o nosso povo, é tudo muito triste", lamenta.

Ednéia conta também que a pandemia já alterou a forma de vida das comunidades. "São pessoas que vivem da caça, da pesca, da roça. Com a Covid se espalhando, não podem mais realizar essas atividades", diz. Até mesmo na cidade, os hábitos estão mudando. "Antes da pandemia, tínhamos toda a liberdade de compartilhar coisas. Se você chegasse na minha casa, eu ia lhe receber com uma cuia com água e farinha, que você passaria para os demais. Também fazíamos questão de cumprimentar a todos, sempre com, pelo menos, um aperto de mão. Isso acabou."

Nem mesmo a comunicação nas aldeias chega da mesma forma. Antes da pandemia, o responsável por ouvir as mensagens que chegam via rádio organizava reuniões com outros moradores para transmitir as informações. "Agora ele precisa ir de casa em casa", conta Ednéia.

René Cardillo/UOL René Cardillo/UOL

"Acredito no poder das florestas e dos nossos ancestrais"

Ednéia nasceu em uma comunidade semelhante às que ela apoia atualmente, em Paraná Jucá. Quando ela tinha 2 anos de idade, seus pais, hoje já falecidos, resolveram se mudar para a cidade. "A vida não era fácil no interior, assim como não é até hoje. Então, com o intuito de nos dar uma oportunidade de vida melhor do que eles tiveram, eles nos trouxeram para São Gabriel."

Ali, ela cresceu, foi à escola e se formou como técnica em nutrição para diabéticos, mas nunca exerceu a profissão. Há três anos, atua na federação. Nunca casou e vive em uma casa com o filho e o sobrinho. "Mas meus parentes moram todos muito perto, na mesma rua. Nunca ficamos sozinhos."

Nos momentos em que não está trabalhando, conta que fica imaginando como será depois que a pandemia passar. Tem medo de deixar o filho ir à escola quando as aulas voltarem, mas espera que, em 2021, a vida consiga começar a voltar ao normal. Até lá, ela sabe que tem muito trabalho pela frente.

"Aqui as coisas são mais difíceis. Mas a luta é de todos: esse vírus não escolhe pessoa, religião, etnia, cor, raça. Ele escolhe vidas para para tirar. Penso muito em tudo isso, mas acredito no nosso bem-estar como povos indígenas, no poder das nossas florestas, dos nossos ancestrais que têm nos dado força. É isso tudo que que vai nos ajudar a virar essa história."

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