O estilo das brabas

Com elementos do funk e do hip hop, a moda produzida na periferia ganha as ruas e impulsiona estilistas

Rute Pina De Universa, em São Paulo Mariana Pekin

"Rotina de quebrada e eu neguinha posturada, sentada com a de time e Kenner rosa na calçada. Cê fica obcecado com a minha coxa tatuada", manda MC Luanna, na música "Set AJC", feat com a rapper Júlia Costa. Em "Kit Rosa", ela chama: "Pode vir de bonde que aqui cê num arruma nada, sigo de cabeça erguida e dart na cara. Filha, eu sei que tu gosta quando o bonde passa trajando o kit rosa".

O estilo da braba —que pode ser "a mina chavosa" ou mandrake, em São Paulo; a da estética de cria, no Rio de Janeiro; ou a tchuca, em Minas Gerais— engloba uma moda produzida na periferia para a periferia e que vem impulsionando uma geração de estilistas, em sua maioria mulheres negras.

No look delas, não faltam camisas de time, saia curta, tênis e acessórios grandes, como brincos de argola, muitas correntes e óculos dart da Oakley. Para finalizar, um caprichado baby hair nos cabelos, unhas de gel e alongamento de cílios.

Esses elementos marcam presença em muitas músicas, a exemplo da faixa "Lui Lui", das rappers paulistanas Tasha & Tracie, ícones no cenário do hip hop atual: "Plasma 911, comprei meu jaco da Onbongo Staff, agora uso Ivy Park com saia da Cyclone". As gêmeas concluem a ideia na letra de "Tang": "Essas são as meninas que os menino gosta".

No fluxo no Centro de São Paulo, música e moda andam juntas; a estudante Natália Gabriela (acima) usa um vestido da Planet Girls para curtir o rolê

No fluxo no Centro de São Paulo, música e moda andam juntas; a estudante Natália Gabriela (acima) usa um vestido da Planet Girls para curtir o rolê

As referências delas

Numa sexta-feira de fluxo na Rua Dom José de Barros, point do rap e outros gêneros no centro de São Paulo, a estudante de enfermagem Natália Gabriela, 22 anos, usava um vestidinho curto e justo da Planet Girls com as cores do Brasil, tênis branco e brincos de argola. "Uma mina braba, para mim, é aquela que sustenta seu estilo, sustenta a sua postura de braba, sabe? É aquela que trabalha, faz todo o seu corre e está sempre tentando melhorar", descreve a estudante.

"Desde pequenininha, sempre gostei de me arrumar e de usar roupas bem chamativas", diz. Hoje, Natália busca referências de moda no TikTok e no Instagram e se espelha em artistas como a cantora Rihanna. "Para mim, ela é o ícone da moda e uma das minhas maiores refs [referências]."

Curtindo o mesmo rolê, a recepcionista Mariana Araújo, 22 anos, conhecida como Maru, conta que começou a se interessar por moda por influência da música.

"O hip hop sempre esteve presente na minha vida, desde muito nova me identifiquei com as roupas e tênis que o pessoal do movimento usava. Além do rap, o funk também. Sempre desejei ter roupas de marcas específicas por causa dessas músicas. A partir daí, criei minha identidade", conta a jovem, que mora no Jardim Maria Beatriz, em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo.

O interesse dela por moda levou-a a criar um brechó online no Instagram. "Nem sempre consegui me vestir da maneira que quis por questões financeiras. Foi aí que comecei a consumir roupa de brechó. Meu recurso foi começar a comprar roupas usadas, mas com isso eu ampliei muito mais meu estilo e minha criatividade."

Como Natália, ela cita Rihanna e as gêmeas Tasha & Tracie como suas principais referências. "Me inspirei acompanhando todo o corre das gêmeas na moda e vestindo roupas usadas e doadas."

A recepcionista Mariana Araújo (no alto) escolheu um boné da Cyclone, calça jeans e um cardigã semiaberto, para mostrar o piercing no umbigo. "Meu lema é: não é o que você tem, é como você usa"; acima, outras frequentadoras da balada Marco Zero

A recepcionista Mariana Araújo (no alto) escolheu um boné da Cyclone, calça jeans e um cardigã semiaberto, para mostrar o piercing no umbigo. "Meu lema é: não é o que você tem, é como você usa"; acima, outras frequentadoras da balada Marco Zero

'Tive de empreender por necessidade'

"Tá no labirinto, esquece. Guettosa que nem Valérie", cantam Tasha & Tracie na música "Diretoria". Ícones da moda ao misturar elementos do hip hop, do funk e do trap em um estilo próprio, elas mencionam no hit de 2021 a estilista e designer Valérie Anaua, 34 anos.

Na zona leste de São Paulo, ela fundou, em 2017, a marca Guettosa —nome inspirado em uma gíria do dancehall que brinca com os termos "gueto" e "gostosa".

As saias curtas, tops e vestidos recortados conquistaram nomes como a atriz e cantora Maria, que participou do "BBB 22", e a cantora Jojo Todynho, que pediu por DM no Instagram um modelo exclusivo da marca.

A estilista começou a trabalhar aos 17 anos como vendedora em uma loja de jeans no shopping Aricanduva, em São Paulo —foi o jeito que encontrou para atuar na área de moda. "Eu não via como trabalhar com isso sem um ensino superior. Então fui para o shopping, como muitas meninas da periferia", conta ela, que passou pela Riachuelo e pela Forever 21.

Mãe solo, Valérie engravidou de sua primeira filha em 2017. Enquanto estava amamentando, descobriu que estava grávida novamente. As portas do mercado de trabalho, então, se fecharam. "Tentei voltar para o varejo, mas foi muito difícil. Davam várias desculpas, como 'você tem duas filhas e mora longe"", lembra. "Tive depressão, pensava que ninguém me aceitaria."

A estilista conta que queria ter uma marca na qual ela e suas amigas se enxergassem. "Quando eu era adolescente, olhava os lookbooks e nunca havia ninguém parecida comigo, com as minhas amigas, com as minhas primas", diz.

A questão do corpo também era importante. "Sou uma mulher grande, né? Depois que eu tive minhas filhas, tentei resgatar minha autoestima. Nenhuma roupa ficava legal em mim. Senti que precisava usar meu trabalho para isso."

Na gringa, é muito forte essa moda de mulher grande e gostosa. No Brasil, temos muitas marcas plus size. Mas eu faço uma moda glam para se sentir gostosa, para ir pro baile ou colocar uma saia, um top e um tênis para um show. Trago essa estética para a Guettosa.

Valérie Anaua, estilista

O estilo delas está nos detalhes: unhas de fibra de vidro, correntes, óculos e bonés não podem faltar

O estilo delas está nos detalhes: unhas de fibra de vidro, correntes, óculos e bonés não podem faltar

Mandrake, chave ou cria?

A fotógrafa, jornalista e stylist de moda Fernanda Souza, conhecida por seus registros fotográficos de bailes funk em São Paulo, trabalha com direção de arte e pesquisa sobre cultura funk.

No ensino médio, ela passou a perceber as diversas subculturas da cidade, principalmente ao sair do extremo sul da capital, no bairro do Grajaú, onde cresceu. "Música e moda andavam juntas e eu curtia observar isso. Notava que o funk também tinha relação com moda, só que isso era pouco discutido e muito criminalizado."

Fernanda evita nomenclaturas para caracterizar estilos. "Conheço chave como sinônimo de mandrake. Hoje muitas pessoas usam mandrake, mas um tempo atrás era chave e, antes disso, simplesmente funkeiro. Às vezes, as pessoas nem usam esses termos, tem gente que não acha daora porque estereotipa demais."

No ano passado, o estilo mandrake viralizou no TikTok quando influenciadores, como a cantora Juliette Freire, usaram um filtro dos óculos juliet para seguir a hashtag do momento. Neste ano, foi a vez do "brazilcore" virar tendência, com nomes como Malu Borges usando looks com a camisa da seleção brasileira.

Para Fernanda, esses hypes resgatam momentaneamente elementos que sempre existiram na moda periférica. "A camisa do Brasil nunca foi deixada de lado, esses elementos sempre existiram. O juliet, por exemplo, sempre é usado como um elemento que as pessoas pegam para se aproximar e falar sobre funk. O que acontece é que nunca é aprofundado. É sempre estereotipado", analisa.

O tempo todo pegamos uma peça de roupa que não foi feita para ser moda, mas para nós acaba sendo. É uma originalidade que cabe muito bem para quem é de quebrada, que consegue fazer essas ressignificações.

Fernanda Souza, fotógrafa e stylist de moda

A rapper Júlia Costa (à esquerda, de branco): "Não consigo colocar meu estilo numa caixinha. Ele fala muito sobre mim, sobre meus pensamentos e ideologias"

A rapper Júlia Costa (à esquerda, de branco): "Não consigo colocar meu estilo numa caixinha. Ele fala muito sobre mim, sobre meus pensamentos e ideologias"

Na rua, moda e música andam juntas

A rapper Júlia Costa, 24 anos, se divide entre a carreira musical e o trabalho de estilista da marca ajuliacostashop, ou AJC Shop. "Eu via as roupas e não tinha como comprar. Comecei então a personalizar as peças e isso me deu curiosidade de saber como eram feitas, então passei a desmanchá-las para entender como era a estrutura", lembra a jovem, neta de uma costureira.

Adolescente, vendia roupas para as meninas da sua escola, em Mogi das Cruzes, região leste da Grande São Paulo. Hoje, Júlia conta com mais duas profissionais para fazer a costura, mas ainda trabalha em todas as etapas da confecção —do styling ao pós-venda. "Às vezes preciso que alguém faça um freelance para mim, só para adiantar, para eu ir conseguindo fazer o corre da música, porque estou nesse impasse", diz ela, que começou no rap cedo, aos 14 anos, em batalhas de rima.

Assim como Júlia, a mineira Amanda Gomide criou sua própria marca, a Agomide —que tem como lema "para todas as tchucas".

Ela começou a se interessar por moda por causa da falta de roupas na infância. "Tive problemas na escola por vestir roupa usada e de doação", conta a estilista, que fez um curso técnico de confecção e moda voltado para a área industrial. Para se manter em Belo Horizonte, onde também cursava Teatro na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), ela decidiu empreender em 2018.

A Agomide tem uma relação com a cena local de rap em BH —assinando, por exemplo, a produção de figurino de artistas do selo A Quadrilha, idealizado pelo rapper Djonga. "Se estética e música não dialogam, não tem flow", diz.

Tchuca é uma menina independente, mesmo que às vezes não seja um corre fácil. Isso significa que é uma pessoa que desembola. Mas não aquela coisa romantizada, é uma pessoa de ação.

Amanda Gomide, estilista

A rua Dom José de Barros (no alto) fica cheia de rolês às sextas, do samba ao hip hop; DJ Sophia (acima, à direita) toca em uma das casas da região

A rua Dom José de Barros (no alto) fica cheia de rolês às sextas, do samba ao hip hop; DJ Sophia (acima, à direita) toca em uma das casas da região

O kit delas

O guarda-roupa das brabas é versátil: vai do tênis ao salto, da camisa de time aos vestidos "glam". Os acessórios (e a postura) são fundamentais.

Divulgação/Arte/UOL Divulgação/Arte/UOL

Se tivesse que montar seu kit, Fernanda Souza começaria pelo tênis. "Eu gosto de Mizuno, parça, para mim não pode faltar", diz. "E um dart, que eu gosto pra caramba. Também vários anéis e correntes de prata."

Além das roupas, a stylist não esquece os detalhes: "Piercing no umbigo, uma sobrancelha bonita arqueada, blush, unha grandona, cílios grandes."

Valérie Anaua não dispensa um vestido: "Com aqueles recortes bem bonitos, com um salto maravilhoso. Mas depende da ocasião. Com o mesmo vestido, você pode colocar um tênis e chegar em qualquer lugar. Mas o vestido é alvo. Você colocou, já está pronta".

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