Lucidez e loucura

Cláudia Abreu gosta de ter o controle da vida enquanto entra em transe no palco, agora como Virginia Woolf

Nina Rahe Colaboração para Universa, em São Paulo Mariana Pekin/UOL

Cláudia Abreu tem na maternidade uma das razões de sua vida. "Sou mãe de quatro e isso me define muito. Realmente foi um grande acontecimento, poderia ter sido só isso e já teria valido a pena", diz.

Ainda assim, a atriz de 51 anos faz questão de se desvencilhar do rótulo que a define como "aquela, a mãe de quatro", algo que hoje em dia a deixa quase em estado de exceção. "Eu sou muito isso, mas não sou só isso. São aquelas pechas que vão botando e a vida pessoal acaba contaminando o olhar do público sobre você."

E é justamente para evitar que isso aconteça que Cláudia fala sobre sua vida pessoal somente até certo ponto, procurando preservar a sua intimidade, e a de quem está à sua volta, mas, principalmente, para manter um mistério no ar. Sua maior decepção, ela conta, foi quando descobriu que a sueca Ingrid Bergman, uma de suas atrizes preferidas, não era uma boa mãe. "Isso me cortou", diz Cláudia, que preferia não ter ficado sabendo que, após a separação dela e do diretor italiano Roberto Rosselini, os filhos do casal ficaram longe dos pais. "Ela foi viver um caso na França, ele foi fazer um filme. Não quero julgar, mas de alguma maneira eu a admirei um pouco menos", confessa.

E é isso que ela não quer que aconteça com quem a vê no palco em "Virginia", espetáculo sobre os últimos momentos da escritora Virginia Woolf —a peça passou por São Paulo, Belo Horizonte, e estreia em 21 de outubro no Teatro XP, no Rio de Janeiro. Ali, mesmo que soe utópico, tudo que Cláudia deseja é que as pessoas embarquem na ficção. "Preciso manter um mistério, senão, o que sobra para o público descobrir?", questiona a atriz. A seguir, ela conta sobre como é criar quatro filhos sem abandonar a vida profissional e, sobretudo, a importância de tomar as rédeas para manter o controle das coisas.

Suspender os sedativos

Casada com o diretor José Henrique Fonseca e mãe de Maria, de 21 anos, Felipa, de 15, Joaquim, de 12, e Pedro, de 11, Cláudia Abreu jamais imaginou que a maternidade iria atravessar sua vida "de maneira tão avassaladora".

Hoje já diz, no entanto, que criar quatro filhos é mais fácil do que criar um. Durante seis anos, ela vivenciou a dificuldade de educar uma criança sem outra por perto para brincar. "Acho que eles aprendem com o exemplo. A dificuldade de um é o que ensina o outro."

Foi a presença de uma família grande, ainda, que fez com que sua casa se tornasse um lugar sempre animado, onde a festa "já está estabelecida". "Ou o hospício, também, porque quando uma criança começa a brigar com a outra é uma doideira", diz. Ter quatro filhos, para ela, é "dessas loucuras que levam a gente para frente". Um sentimento diferente daquele que capta nas entrelinhas dos comentários que recebe, coisas como "quatro filhos, nossa, que corajosa".

O limite entre a lucidez e a loucura é algo que sempre a interessou —um dos motivos, inclusive, para que tenha decidido escrever e encenar Virginia. No espetáculo sobre a escritora que se suicidou em 1941 ao entrar no rio Ouse, no Reino Unido, com pedras no bolso do casaco, ela preenche o palco sozinha, alternando entre momentos que vão do sonho à realidade, do pranto à gargalhada, da dança ao colapso mental.

Já na vida pessoal, a atriz gosta de brincar que, de vez em quando, "suspende os sedativos para enlouquecer", que é quando sai do "coma induzido" que a mantém no controle da vida pessoal e profissional para ir a uma festa e vivenciar a loucura de uma maneira saudável. "Para dar conta de tudo, você precisa ficar muito controlada. Não tomo sedativos, digo isso de uma maneira divertida, mas sempre que posso enlouquecer de um jeito bacana, eu adoro. Adoro dançar."

Tomar o controle

Ativa desde os 16 anos, até se estabelecer na profissão, Cláudia fez muita coisa ao mesmo tempo, misturando papéis no teatro, no cinema e na TV. Aos 21, após interpretar Heloisa, um dos principais papéis da minissérie "Anos Rebeldes" (1992), a atriz percebeu que, para atuar bem, precisava ter bagagem suficiente para emprestar a seus personagens.

"Naquele momento, não quis renovar contrato [com a Globo], decidi voltar para o grupo de teatro da [diretora] Bia Lessa e quis fazer grupos de estudos porque eu tinha saído da escola e não tinha nem sequer feito vestibular", lembra. "Desde cedo me deu uma sensação de que eu precisava tomar o controle da minha vida, fazer minhas escolhas e dar atenção às coisas importantes, como é a minha formação."

Foi quando, aos 30 anos, ela decidiu prestar vestibular para cursar filosofia, e acabou engravidando da sua primeira filha. "Eu sentia necessidade de me alimentar de outras maneiras e não só gastar, gasta, gastar, porque meu trabalho é sobre o ser humano. Eu tenho que entender outras pessoas, me transportar para elas e tenho que ter para dar. Não posso ficar vazia, tenho que me alimentar."

A atriz, que sempre teve bons papéis, com personagens que deixaram sua marca na história da TV, como a vilã Laura, de "Celebridade" (2003), e Chayene, de "Cheias de Charme" (2012), precisou aprender cedo a dizer não e passou a aceitar menos e escolher ainda mais. "É sempre uma escolha, mas comandar as rédeas da minha vida, da minha carreira, acabou sendo uma coisa positiva para mim. Essa consciência me bateu cedo e ajudou a direcionar a minha carreira para onde eu gostaria de poder estar, com a minha voz e minha opinião à frente", afirma.

"Fala de sexo quem está a fim"

Apesar de ter criado uma peça em que vida e obra de Virginia Woolf se misturam, Cláudia evita saber sobre a biografia de seus ídolos para que possa embarcar totalmente na ficção. "É utópico, mas não quero ficar o tempo todo pensado que aquele ator era assim ou assado, se batia na mulher, sabe? Eu não quero essa interferência", explica

Em relação à Virginia Woolf, a atriz diz ter assumido o risco de acessar algo que pudesse ter atrapalhado sua leitura. "Mas foi uma conjunção feliz, porque faz todo sentido que ela tenha escrito aquela obra, com toda aquela sensibilidade."

No entanto, ela prefere evitar, na medida do possível, que sua vida pessoal interfira na recepção. "Não quero que isso seja uma coisa antipática, do tipo: 'Leave me alone', 'não quero que saibam da minha vida'. Mas há um mistério que precisa ser preservado. Você já é tão exposta na vida profissional, já te veem tão em carne viva em todas as situações, então poder preservar sua vida é bom para o seu equilíbrio e para o público, porque sobra algum mistério para ele tentar descobrir em um novo personagem", argumenta.

"Se o público já sabe tudo de você. já sabe o que aconteceu no seu casamento, do jeito que você gosta de fazer isso, ou aquilo, para onde você viajou nas férias, não sobra nada."

Além disso, a atriz acredita que a sua vida não pertence só a ela, mas às pessoas que partilham da sua intimidade, como os filhos e o marido, a quem deve preservar. "Seria muito ruim para eles se eu ficasse falando como eles são, como sou como mãe, ou expondo minha vida sexual. É algo nosso e isso só importa à gente", explica.

Acho ótimo que se tenha espaço hoje em dia para a gente falar, mas fala de sexo quem está a fim, isso não pode virar uma obrigação de que toda pessoa pública tem que falar da sua vida sexual e de como atinge o prazer

Cláudia Abreu

Espelho

A atriz relembra 3 personagens com as quais se identifica

CEDOC/ TV Globo

Heloísa, da minissérie "Anos Rebeldes" (1992)

"Uma mulher solar, que foi criada em um mundo de privilégios, mas que não fechou os olhos para a realidade. Teve a coragem de se insurgir contra a ditadura e defender seus ideais. A admiro por ser alguém de coragem."

Divulgação/Sony Pictures

Luisa, do filme "Guerra de Canudos" (1997)

"Ela sofreu por ser uma mulher forte e por querer ser livre. Assim como ela, também tenho necessidade de liberdade. E como as outras duas personagens que escolhi, me identifico com a Luisa por sua alegria e senso de justiça."

Divulgação/Globo Filmes

Rose, do filme "O Caminho das Nuvens" (2003)

"É uma pessoa marcada pela pobreza, mas ainda assim terna e amorosa com os filhos. Algo que, como mãe, me toca. Além do fato de que ela encontra poesia e refúgio cantando as músicas de Roberto Carlos."

Anotações no banheiro

Cláudia conta que, para conseguir levar em frente seus projetos pessoais, ela aproveita cada minuto de silêncio —minutos que incluem anotações no banheiro, em hotéis durante viagens ou mesmo dirigindo, quando a atriz se vale da privacidade para gravar pensamentos em áudio.

"Para escrever, você precisa de um teto todo seu, de espaço, e em uma casa com quatro filhos isso é muito difícil. Eu costumo ter bastante tempo com eles e esses momentos são preciosos, mas estou conseguindo cada vez mais fazer meus projetos pessoais porque uma mãe feliz é também a mãe que se realiza e tem sua individualidade preservada", afirma.

Entre os projetos que tem realizado, está "P.I. - Panorâmica Insana", peça dirigida por Bia Lessa em 2018 e na qual Cláudia, sem dizer uma palavra, dá vida à personagem que tenta encontrar um parceiro no baile. Já "Virginia", sua empreitada atual, surgiu a partir do desejo de trabalhar com fluxo de consciência a partir de uma ideia de que os tempos pudessem ser coexistentes. Nessa pesquisa, ao se deparar com a obra de Virginia Woolf, a atriz encontrou detalhes que iam ao encontro da sua própria essência". "Foi como se ela me conhecesse através da literatura dela, falando de outras coisas, mas que de alguma forma eu me identificava", diz Cláudia, que inseriu na dramaturgia temas que atravessam a condição da mulher, o desejo pelo conhecimento, a dor da criação, além dos abusos físicos e psicológicos que a escritora sofreu.

"Não posso ser uma boneca de cera"

Na opinião da atriz, a maturidade artística —e também pessoal— foi o que fez com que ela se dedicasse aos próprios projetos, algo "natural com o passar do tempo", "quando você vai buscando o que quer dizer".

A idade, para ela que está agora com 51, nunca foi um problema. "Tem esse lugar de Hollywood, que mulheres mais velhas têm menos oportunidades, mas será que elas se limitam a Hollywood? Será que ficaram muito em uma caixinha? Acho que é um pouco também de você se mexer. Você terá convites interessantes no cinema, na televisão e no teatro, mas o que você quer dizer? Não se trata somente de aceitar convites, mas de ter a sua opinião e chegar para o público com o que quer dizer."

Talvez por essa postura ela nunca tenha se visto como refém da pressão estética do meio artístico. "Procuro não cair nessa armadilha porque preciso ter uma idade. Estou na televisão desde os 16 anos, as pessoas sabem quanto tempo eu tenho de carreira. Não posso ser uma boneca de cera, preciso ter credibilidade para a minha imagem ser condizente com o personagem que tenho que fazer", diz. "Não gosto de ser refém de uma histeria estética porque acho que isso só vai se voltar contra mim."

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL
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