Luz e sombra

Silvia Pfeifer recorda como enfrentou a síndrome do pânico nos anos 80, quando pouco se falava em saúde mental

Silvia Pfeifer em depoimento a Ana Bardella De Universa

Eu tinha 28 anos e estava no Rio de Janeiro, dirigindo até a casa dos meus pais. Logo que entrei no Túnel Rebouças, que liga o Rio Comprido à Lagoa, comecei a me sentir mal. O trânsito estava impossível: andava um pequeno trecho e passava no mínimo mais cinco minutos parada. Sozinha no carro, me vi naquele lugar escuro, fechado, claustrofóbico, poluído. Não sabia quanto tempo levaria para conseguir sair. Meu coração disparou, estava com dificuldade de respirar e cada segundo parecia uma eternidade.

Comecei a me sentir cada vez pior, até ter certeza de que iria morrer. Precisava fazer algo. Com o carro parado, abri as portas e desci ali mesmo, no meio do trânsito

Por sorte, havia um veículo com um casal dentro logo atrás do meu. Fui até eles pedir socorro.

-- Desculpa a pergunta, mas a moça que está do seu lado sabe dirigir? -- questionei o motorista.
-- Sabe sim, por quê? -- ele respondeu, percebendo meu estado alterado.
-- É que eu estou passando muito mal, preciso que alguém leve meu carro pelo menos até o fim do túnel.

A mulher que estava no banco do passageiro aceitou e lhe entreguei as chaves, que estavam na minha mão.

Enquanto isso, continuava desesperada. Precisava sair dali o quanto antes. Então, parei uma moto e expliquei ao rapaz o que estava acontecendo.

Não pensei duas vezes antes de subir na garupa do desconhecido e ir de carona até o outro lado. Hoje entendo o risco em que me coloquei, mas na ocasião, não conseguia raciocinar

Mais uma vez tive sorte: ele foi muito gentil comigo. Assim que saímos do túnel, ele sentou no meio fio ao meu lado e esperamos juntos meu carro chegar. Só então consegui me acalmar.

Semanas depois, comentei com o psiquiatra que estava me acompanhando havia pouco tempo sobre este episódio. Ele me parabenizou por não deixar o medo me dominar, por conseguir reagir mesmo em meio a uma crise de pânico. Mas me alertou também de que havia outros meios — bem mais fáceis — de lidar com esses sintomas, que já vinham me atormentando há tanto tempo.

"O cenário mudou depois que me tornei mãe"

Logo que comecei a trabalhar como modelo, sentia certa angústia antes dos desfiles, mas conseguia lidar bem com isso. Os problemas maiores começaram aos 21 anos, quando iniciei as viagens internacionais a trabalho. Lembro de me sentir ansiosa enquanto estava no avião. Uma vez, o desconforto foi tão grande que chamei a aeromoça e perguntei se havia algum médico a bordo que pudesse me atender.

Em outra ocasião, em Paris, esperava para pegar minha mala na esteira do aeroporto quando fiquei desesperada, morrendo de vontade de voltar. Às vezes dava um jeito de ligar para a minha mãe ou para o meu namorado da época e compartilhar sobre esses sentimentos. Eles eram bastante compreensivos.

Se eu comentava sobre isso com alguém fora da minha família, no entanto, ouvia logo que era 'coisa da minha cabeça'. Nos anos 80, não se falava em ansiedade, nem em síndrome de pânico

Mas sempre fui uma pessoa que encara os próprios medos: sou do tipo que dá um jeito e vai. Então, não deixei que os sentimentos ruins me impedissem de seguir com a carreira.

Porém, percebi o quanto era importante buscar ajuda, aos 28 anos, quando me tornei mãe. Tive um descolamento de placenta que me causou sangramento e precisei passar longos períodos em repouso. Até banho de álcool tomei, porque não conseguia chegar até o chuveiro. Depois do parto, o estresse continuou: minha filha teve icterícia duas vezes e precisei parar de amamentar.

Depois desses episódios, passei a ter muito medo de ficar sozinha com o bebê em casa. Cheguei a ligar algumas vezes para o meu irmão e pedir que ele me fizesse companhia. Percebendo que eu não estava bem, minha mãe sugeriu que eu me consultasse com um psiquiatra e me passou o nome do profissional com quem ela já se tratava há algum tempo. Sabendo que agora eu era responsável por ela, decidi ir.

"Eu não tinha depressão. Era medo, uma agitação interna"

Refleti um pouco antes de ir. Já tinha passado por situações de mal-estar muitas vezes e me sentia vulnerável, mas sabia que não tinha depressão. Eu estava feliz. O que eu sentia era medo e uma agitação interna muito intensa. Sabendo disso, aceitei marcar uma consulta. Durante a nossa conversa, o médico me pediu uma lista detalhada do que costumava me incomodar. Assim que acabamos, ele me mostrou uma folha com os sintomas da síndrome do pânico e quase todos batiam com os meus.

Só então entendi a origem das minhas angústias. Recebi uma explicação científica do que acontecia no organismo a cada vez que me desesperava e por que aquilo me causava tanto mal.

A partir dali, compreendi que por mais que eu tivesse a sensação de que estava morrendo, aquilo não iria realmente me matar

Analisei o cenário: eu era uma pessoa saudável, sempre pratiquei exercícios físicos e cuidei da alimentação. O risco de morrer subitamente era muito pequeno.

Ele também me receitou um remédio para as situações mais críticas, mas eu disse logo de cara que não queria tomar. Quebrei essa resistência com o passar do tempo: conforme fazia o acompanhamento, aprendia mais sobre os processos metabólicos e fisiológicos que envolvem a crise e também sobre a importância da medicação.

"Quando você acalma a mente, tudo muda"

Mesmo depois de iniciar o tratamento, tive outras crises. Uma vez, organizei um desfile de moda completo mas não pude ir de tanto que estava me sentindo mal. Mas o que me ajudou a aumentar o intervalo entre as crises foi compreender o real motivo dos meus medos. O problema nunca foi, por exemplo, o avião em si — mas o que ele representa: me deslocar, ir em direção ao novo, não sentir que "estou pilotando", mas saber que tem alguém pilotando por mim.

Outra ferramenta que me ajudou foi a meditação. Já era ligada às filosofias orientais quando comecei a praticar. Cheguei inclusive a recorrer ao budismo, já que meu marido [o empresário Nelson Chamma Filho] era professor. Nos últimos três anos, muitas coisas aconteceram: minha filha fez uma cirurgia importante, meu pai faleceu. Por causa disso, me desorganizei e parei temporariamente com as meditações, sem que isso resultasse em novas crises. Mas sei que ela tem o poder de acalmar a mente e os pensamentos — e com isso tudo muda.

Hoje, sabe-se que a meditação ajuda a restaurar a paz interior. Ela te reestabiliza e ajuda a reduzir os danos que a ansiedade e o estresse provocam, seja pelo excesso de trabalho, por dúvidas ou preocupações.

"Só de saber que o remédio está na bolsa, fico mais tranquila"

Hoje em dia, sei lidar melhor com os contratempos e é raro ter uma crise — mas não estou imune: em 2016, por exemplo, fui para Portugal gravar uma novela e fiquei até meados do ano seguinte. Era uma carga de trabalho grande e estava sozinha, longe da minha família. Embora tivesse amigos por lá, me sentia descontextualizada. Em alguns momentos, a angústia batia mais forte, mas conseguia controlar a mente, vencer os medos e criar mecanismos de defesa, procurando ajuda das pessoas.

Se eu pudesse dar um conselho para alguém que já se sentiu assim, diria: procure um médico. Busque informações com pessoas capacitadas, não deixe de fazer exercícios, tomar sol, ter uma boa alimentação e, principalmente, não tenha preconceito com os remédios.

Eles funcionam para cortar um ciclo: depois que esse ciclo é rompido, você se sente mais forte. Os meus até hoje estão na bolsa: é raríssimo precisar, mas só de saber que posso contar com essa ajuda, já me sinto mais tranquila.

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