Ver com o coração

Mari Palma, jornalista da CNN, revela lições de superação do pai, que perdeu a visão quando ela era criança

Mari Palma, em depoimento a Ana Bardella Marcus Steinmeyer/UOL

"Mãe, por que o papai não enxerga?"

Eu era adolescente e estava no sítio da minha família, ao lado dos meus pais, irmãos e parentes, comemorando a chegada do Ano Novo. Como em toda virada, estava aquela festa, né? Todo mundo vestido de branco, num clima super gostoso. Só que quando chegou a meia noite e a queima de fogos, me afastei um pouco e me bateu uma vontade de chorar... Minha mãe estava perto, aí eu lembro de ter feito uma pergunta parecida com essa: "Mãe, por que o papai não enxerga?"

Ela me abraçou e disse: "Filha, olha para o papai. Olha como ele é feliz". De fato, meu pai sempre foi uma pessoa que soube como aproveitar a vida. Mas, naquela época, eu queria que ele pudesse aproveitar muito mais.

Por isso, durante o final da minha infância e em quase toda a adolescência, sempre que um novo ano começava, eu fechava os olhos e fazia o mesmo pedido, cheio de esperança. Que o meu pai voltasse a enxergar.

"Explico baixinho no seu ouvido quem fez o quê"

Papai descobriu que poderia perder a visão quando ainda era muito jovem. Aos 18 anos, foi diagnosticado com uma doença chamada retinose pigmentar, que não tem cura. Naquela época, o médico avisou sobre as possibilidades: o quadro poderia evoluir causando danos na visão, ou estacionar. Infelizmente, o caso dele piorou e causou, pouco a pouco, a perda da visão lateral. Era como se os seus olhos fossem se fechando em formato de círculo — até que, por volta dos 50, não me lembro exatamente, ele parou completamente de enxergar.

Quando eu — a caçula dos seus três filhos — nasci, ele já tinha uma perda de visão, mas ainda conseguia enxergar e levar uma vida mais ativa. Tenho até memórias de vê-lo dirigindo, por exemplo.

De vez em quando, assisto a algumas fitas antigas e vejo que ele era capaz de me procurar pela casa, me pegar no colo. É muito especial ver isso depois de tanto tempo.

Depois de alguns anos, ele saiu do banco do motorista e passou para o do passageiro. Minha mãe então assumiu a função de dirigir com a família. Por volta dos meus 10 anos, foi quando as coisas pioraram e ele precisou cada vez mais da nossa ajuda.

"Minha mãe precisou assumir as rédeas da nossa vida financeira"

Apesar da minha pouca idade, senti uma mistura de tristeza e preocupação. Os papéis se inverteram dentro de casa: meu pai, que foi um jovem com espírito aventureiro, jogava futebol, gostava de andar de carro e se divertir, ficou cada vez mais recolhido, se esforçando para assimilar e se adaptar à nova realidade. Enquanto isso, minha mãe precisou assumir as rédeas da nossa vida financeira.

De um dia para o outro, minha mãe teve que tomar conta do escritório de despachante que os dois tinham aberto havia pouco tempo, caso contrário, nossa família iria quebrar. Ela também foi - e ainda é - um exemplo de força e determinação para mim.

Nesse período, a gente já tinha passado por situações muito pesadas, financeiramente e emocionalmente também. Alguns anos antes, havia perdido dois tios e duas primas da minha idade em episódios muito tristes de violência e precisei aprender a lidar com aquela perda mesmo sendo muito nova. Só que como eu era a caçula, era poupada de muita coisa.

Hoje, mais velha, eu entendo que a gente procurava encarar a perda da visão do meu pai como um problema que precisava ser superado. Ele mesmo fez questão de levar as coisas assim.

"Aprendi com ele a não sentir vergonha das minhas emoções"

Nossa relação, que já era próxima, ficou muito mais intensa depois que ele perdeu a visão. Parte disso veio do nosso processo de adaptação: meu pai não podia mais andar na rua sem a nossa ajuda, então foram surgindo códigos entre a gente, que aparecem nos detalhes, de um jeito muito natural. Por exemplo, ele sempre anda do nosso lado apoiando as mãos no nosso ombro - se aparece um degrau na frente, levanto o ombro uma vez. Se são dois, levanto duas.

Tem outro truque que meu pai usa na hora de se vestir. No armário dele, separa as roupas em duas pilhas: a da direita, que são as de ficar em casa e a da esquerda, que são as de sair. Sempre que ele se arruma, virou uma piada dizer que ele caprichou na pilha da esquerda.

Com tudo isso, eu também fiquei muito mais cuidadosa. Se a gente vai a um restaurante, por exemplo, fico de olho no garçom chegando com o cardápio e já peço para ele entregar para mim, não para o meu pai.

Se o ambiente está muito barulhento, o que ele brinca que deixa ele "três vezes mais cego", eu tento ou diminuir o barulho ou levá-lo para um lugar mais calmo. Ou se a gente está perto de várias pessoas e todo mundo começa a rir de algo que aconteceu, minha reação é automática: explico baixinho no ouvido dele quem fez o quê, para ele fazer parte do momento.

Meu pai é corintiano roxo e continua acompanhando aos jogos com o fiel radinho de pilha dele. Se a gente está junto e sai um gol, ele me pergunta como foi. E aí de tanto narrar os jogos do lado dele, acabei desenvolvendo essa vontade de ser jornalista, esportiva inicialmente. Depois, a vida me levou para outros caminhos, mas contar os fatos virou algo natural para mim — e foi justamente por isso que escolhi essa profissão.

Ainda falando de futebol, a nossa família ia sempre aos jogos. Mas depois que meu pai perdeu a visão, a gente acabou parando de ir. Eu tentei por muito tempo convencê-lo a pisar em um estádio de novo, mas ele dizia que não queria.

Quando consegui levá-lo na Arena Corinthians, depois de quase 20 anos, foi uma das maiores emoções da minha vida. Não sei nem o que aconteceu no jogo: passei o jogo todo olhando para a carinha dele, para a felicidade dele, que estava emocionado e arrepiado ouvindo e sentindo o grito da torcida.

Claro que ele se emocionou e chorou - meu pai, inclusive, nunca teve medo de chorar em público e foi com ele que aprendi a não sentir vergonha de demonstrar minhas emoções.

"Já precisei defendê-lo da falta de empatia dos outros"

Mesmo administrando melhor a situação, não dá para esperar muita racionalidade quando o assunto é amor. E como sou uma pessoa muito tímida, não sou muito de falar ou me posicionar. Foram poucas as vezes em que perdi a paciência, mas já precisei defendê-lo da falta de empatia dos outros.

Uma vez, em um cartório, a atendente pediu para meu pai assinar um papel duas vezes. Em seguida, ela disse que não poderia aceitar a assinatura, porque uma tinha saído diferente da outra. Fiquei muito incomodada. Chamei o supervisor para explicar que eles não podiam fazer um deficiente visual passar por esse constrangimento.

Então, para evitar esse tipo de coisa, a gente é muito cuidadoso quando sai com ele.

Depois que eu cresci, eu sinto que comecei a lidar com a deficiência dele de uma forma mais madura. Foi nesse período que entendi e aceitei que não temos controle sobre a vida e que não adianta lamentar - foi ele, inclusive, que me fez perceber isso. Ficar brava com o trânsito, com o e-mail que não chegou, é uma bobagem perto do que realmente importa. Ter saúde e ter pessoas especiais como ele por perto é o que faz a vida valer a pena.

"Estreei na TV, mas meu pai não conseguiu me ver"

Mas claro que essa minha parte irracional ainda sente algumas coisas. De vez em quando penso, por exemplo, que estreei na televisão [Mari começou na Globo, apresentando o boletim jornalístico "G1 em 1 Minuto", em 2015. Atualmente é uma das âncoras do programa "CNN Tonight"] mas meu pai não conseguiu me ver, não soube o que era me assistir. Mas isso nunca o impediu de me acompanhar - desde o começo. Ele ficava em pé na frente da televisão esperando a hora de eu entrar no ar.

Meus sobrinhos nasceram e ele não sabe como é o rostinho deles. Às vezes, pergunta. A relação dele com os netinhos, aliás, é linda de ver. Eles já aprenderam que o vovô não enxerga, então chegam e vão direto dar a mãozinha para ele. É meu pai quem dá banho neles muitas vezes também. Ou seja, ele participa de tudo.

Agora tem outro momento chegando: vou me casar [Mari está noiva do jornalista Phelipe Siani]. E claro que gostaria que meu pai me visse vestida de noiva.

Mas sei que ele vai estar lá, do meu lado, sentindo meu vestido e esse momento junto comigo. E, como eu e minha família fazemos toda vez, vou pegar a mão dele e vou fazê-lo tocar em tudo, descrevendo cada cantinho da festa e da decoração do casamento.

Quero que meu pai viva essa experiência da forma mais completa possível. São coisas que eu penso, mas podem ser dores muito mais minhas do que dele.

Arquivo pessoal

"Viver é fácil com os olhos fechados"

Hoje eu vejo muito do meu pai em mim. Mesmo quando estou sozinha, por exemplo, diminuo o volume da música porque o barulho alto demais também me incomoda. Ou quando vou dormir, não gosto de ficar totalmente no escuro, só consigo dormir com pelo menos uma luz acesa.

E esse amor que eu sinto foi para a minha pele também. Aos 16 anos, fiz minha primeira tatuagem: um trecho da música "Strawberry Fields Forever", dos Beatles. A frase é 'living is easy with eyes closed', que quer dizer: "Viver é fácil com os olhos fechados".

No fundo, eu sei que não é, mas ele faz parecer ser. Anos depois, tatuei um leão de olhos fechados nas costas, também em sua homenagem, já que ele é leonino.

Às vezes penso que ele pode se sentir 'menos pai' por não poder ter feito tudo o que queria fazer. Mas, quando escuto sobre pais de conhecidos meus que abandonaram, fugiram ou nunca estiveram presentes, tenho certeza de que isso não é verdade. Ele sempre esteve ali, me ensinando a ver com o coração.

Toda proteção que eu e minha família desenvolvemos é um reflexo do que ele sempre plantou: amor e respeito.

Hoje, nas viradas de ano, não peço mais para o meu pai voltar a enxergar, porque sei que esse é um pedido um pouco maior do que o universo é capaz de me dar. Mas não deixo de pensar nele: sempre que esses novos ciclos se iniciam, fecho os olhos e peço, com toda força, que estejamos juntos novamente no próximo Réveillon. Para mim, isso é tudo o que importa.

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