Do chão ao topo de fábrica

Ela abandonou saia e sorrisos para subir na carreira. Mas hoje acolhe mulheres como diretora global da BRF

Natália Eiras de Universa Keiny Andrade/UOL

Filha de um casal de retirantes nordestinos, Fernanda Moura, 45, ficava intrigada, durante a infância, em descobrir como o iogurte que comia chegava até a mesa de sua família, no bairro Cidade Patriarca, na zona leste de São Paulo. "Queria saber exatamente como eles haviam fechado aquele pote", conta para Universa.

A curiosidade a fez entrar para a indústria alimentícia, onde começou a trabalhar na linha de produção. Estudante de engenharia química, ela usava botina e macacão branco. Como qualquer funcionário do chão de fábrica. "Meu pai não compreendia as minhas decisões de carreira. Não entendia como uma filha super bem encaminhada podia ser funcionária em uma fábrica."

Única mulher entre quatro irmãos, Fernanda cresceu em um ambiente machista, apesar de amoroso. "Tirei minha carteira de motorista aos 21 anos porque meu pai achava que era desperdício de dinheiro, que dirigir era coisa de homem. Balada? Nem pensar." Por isso, casou relativamente cedo e levava uma vida "dentro dos padrões." Mas isso não era o bastante para a engenheira.

"Eu tinha sonhos, queria investir na minha carreira." Do chão de fábrica, ela vislumbrava o topo. Foi quando decidiu parar de tentar "caber" no que a sociedade e a família esperavam dela. "Virei mulher aos 34 anos, quando me separei."

No caminho até o cargo de diretora de qualidade global da BRF, a gigante empresa de carnes, dona das marcas Sadia e Perdigão, Fernanda já chorou no banheiro por causa de assédio sexual e chegou a abriu mão de usar saia para alçar voos mais altos. "Tive que me masculinizar. Achava que uma calça era o segredo para conquistar tudo o que conquistei." No início deste ano, a executiva assumiu a liderança de uma equipe composta por mulheres. Apesar de ter tido problemas com chefes do sexo feminino, a engenheira espera fazer diferente. "Quero acolher. Porque uma mulher acolhida rende muito e bem."

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Como foi o início de sua carreira?
Estava estudando para o vestibular de medicina e, aos 19 anos, comecei a trabalhar como promotora de vendas, que basicamente é aquele trabalho de modelo, em que a gente ficava em supermercado apresentando lançamentos. Também fui atendente de laboratório, fiz parte da equipe de treinamento. Ao longo dessa trajetória, fui fazendo amigos, gosto de falar com pessoas que estão fora da minha realidade. Passei quatro anos em banco, quando senti a necessidade de fazer cursos, de estudar línguas. Depois, percebi que o sonho de ser médica não era meu, mas do meu pai. Por isso fui fazer faculdade de engenharia química.

Trabalhar com alimentos foi uma decisão de carreira?
Sempre tive essa paixão por alimentos. Desde criança, eu tinha interesse em saber como os alimentos chegavam à mesa. Olhava o pote de iogurte e ficava pensando em como eles eram fechados. Quando era pequena, fui visitar uma fábrica de alimentos e atrasei a excursão porque escapei e fiquei passeando. Sou consumidora, a minha família também. Ter uma carreira em que eu possa entender como as coisas são feitas e, ainda por cima, possa colaborar, seja com inovação ou segurança, é o que me leva para frente.

No início da carreira, você trabalhou no chão de fábrica, implantando novos formatos de produção. Qual foi o principal desafio?
Eu tinha 27 anos, estava no penúltimo ano de faculdade e assumi a supervisão de produção no turno da madrugada. O desafio era liderar uma equipe toda formada por homens mais velhos que trabalhavam à noite. Vários fatores deixavam isso tudo mais desafiador. Foi difícil,porque eles me testaram no ponto de vista de assédio, de pressão em apresentar resultados. Mas, com muito traquejo, eu fui quebrando barreiras de relacionamento. Tentava não levar para o lado pessoal, entender que eles fariam aquilo com qualquer mulher da minha idade que assumisse aquela posição. Com o tempo, eles perceberam que estávamos ali para ser uma equipe.

Você disse que foi bastante testada. Lembra de alguma situação marcante?
Teve um rapaz da manutenção que me falou que, dependendo do que ele ganhasse em troca, o trabalho sairia mais rápido ou não. Hoje em dia, eu tenho consciência de que o que ele fez era assédio, mas, na época, eu me tranquei no banheiro e chorei. Fui pedindo para outros funcionários resolverem isso para mim. Ignorei completamente o comentário dele, mas fiquei muito alerta.

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Como assim?
No sentido de não sorrir tanto em algumas situações. Deixar claro, em qualquer lugar, que eu era casada. Tive que passar por cima disso de alguma forma. Ao longo da carreira, recebi muitas cantadas porque as pessoas acham que uma moça bem vestida está ali para ser cantada. Mas a gente está ali porque tem uma família, sonhos para realizar. E quero estar bem vestida porque gosto de me olhar no espelho e me achar bonita. Não estou ali para ser cantada.

Você fala que sorri menos, mas mulheres costumam ser educadas para serem amáveis. Teve que abrir mão da sua feminilidade para ser líder?
Sim, voltei a usar saia no ano passado, depois de 15 anos sem vestir uma. Antes, tinha uma atuação extremamente masculina porque foi assim que consegui conquistar muitas coisas da minha vida. Fui menos cantada, menos assediada e comecei a crescer. Achei que o segredo era colocar calça, bota, não usar muitos acessórios. Fui me masculinizando porque não queria dar brecha. Mas hoje estou em um movimento em que decidi que vou, sim, usar rosa e falar o que preciso. A maturidade e ver outras mulheres usando saia me fizeram perceber que não precisava abrir mão disso para ser líder.

Mas abriria mão das mesmas coisas se estivesse começando hoje em dia?
Acho que sim, sabe por quê? A mudança na mente das pessoas é muito recente. Agora existe a Lei Maria da Penha, as empresas colocam ética e compliance acima de tudo. Vieram escândalos que deram uma balançada no ambiente corporativo. Para você ter uma ideia: outro dia, tirei uma foto com nove homens e os dois que ficaram ao meu lado fizeram questão de colocar as mãos em frente ao corpo, sem encostar em mim. Em outros casos, essa é a oportunidade que muito homem usa para puxar a colega pela cintura. Eles disseram que não queriam que ninguém falasse que eles estavam fazendo algo com alguma diretora. É uma ótima ideia eles terem medo mesmo porque para a mulher é muito difícil separar o que é assédio e o que é o toque em uma foto. Falo para os meus colegas perguntarem para filhas e companheiras se já passaram por alguma situação constrangedora. Porque não conheço nenhuma mulher que não tenha um histórico de assédio.

Você saiu do trabalho com atendimento para um cargo estratégico. Qual foi o seu diferencial?
Ouvir menos as pessoas e seguir o que eu achava interessante. As pessoas podiam comentar que não fiz MBA fora do país, mas fui a melhor aluna do MBA que fiz no Brasil. Tive a oportunidade de morar no Canadá e já liderei projetos em vários países do mundo. Posso não ter feito curso fora, mas, dentro das condições que eu tinha, fico muito orgulhosa de ter chegado onde cheguei.

Ao que mais credita o seu crescimento?
O fator de sucesso da minha carreira não saiu do PowerPoint, mas das pessoas. Encontrei nas pessoas a chave que as motiva a irem além. Nos cargos de liderança, tive a oportunidade de estimular as pessoas a estudar uma coisa diferente ou de dizer para alguém que talvez aquela não fosse a área ideal para ela. Esse olhar de entender qual a habilidade natural da pessoa e o que ela pode desenvolver, de juntar o que ela quer para a vida dela com o que a empresa precisa, não tem como não dar resultado.

Sua preocupação em obter resultados não afasta as pessoas?
Sei que, quando eu consigo bater a meta, posso dar uma vida melhor para os meus pais idosos. Minha mãe tem 70 anos, já fez mais de 20 cirurgias. Se posso dar qualidade de vida melhor para eles, por que vou me contentar?

É preciso ser viciada em trabalho para conseguir chegar onde está?
Às vezes, trabalho no fim de semana, trabalho de madrugada. Mas cada vez menos isso acontece porque consegui organizar uma vida pessoal e profissional que faz sentido para mim. A produtividade foi algo que eu desenvolvi no meu trabalho para sobrar mais tempo para eu me divertir. Posso sair de férias e ninguém vai me ligar.

No que você investe para continuar crescendo?
Invisto 15% do meu salário em programas de autodesenvolvimento, para gestão emocional e lidar com diversidades. Pago terapia e sessões de coach porque quero ir dormir como uma profissional melhor do que a que era quando acordei.

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Algo na sua trajetória diminuiu a sua motivação?
Em algumas empresas onde trabalhei, muitas vezes com chefes mulheres, tive alguma dificuldade, pela comunicação ou pela concorrência direta. Ficava me perguntando porque ela estava competindo comigo, porque não estava me dando visibilidade. Já cheguei a ser contratada em empresas com a perspectiva de, em dois anos, assumir determinada posição, mas colocarem outra pessoa no lugar. Isso foi me deixando frustrada, mas também trabalhou a minha resiliência. Então, eu olhava as empresas concorrentes e pesquisava cursos que poderiam melhorar o meu currículo.

Você teve algumas dificuldades com chefes mulheres e, hoje, você desempenha essa função. O que quer fazer diferente para as funcionárias que lidera?
Acolher. As mulheres não se acolhem e os homens não sabem a importância disso. É inegável que, quando você acolhe uma funcionária que é mãe em um momento de amamentação, uma febre na creche, ela volta com uma garra e rende muito. Para a reputação de uma empresa, uma funcionária mulher pode contribuir 25% a mais. E é muito pela postura, pela dedicação. A mulher quer produzir mais para ter mais tempo com o filho, então ela fica mais focada. Não são técnicas de gestão, não é treinamento operacional: o que falta para as mulheres desempenharem melhores papéis como líderes é acolhimento. E, além disso, poder reconhecer que está em um momento de dificuldade. Porque, às vezes, a gente está querendo ser dura o tempo inteiro.

Alguma decisão difícil de tomar mudou sua carreira?
Me divorciar fez bastante diferença. Eu me tornei mulher com 34 anos, quando me separei. Saí de um padrão da sociedade, tinha uma vida certinha. Quebrei isso porque essa não era a Fernanda que eu queria ser nos dez anos seguintes. Queria voltar a estudar, investir na minha carreira. Fiquei quatro anos sem estudar porque queria caber em um modelo de sociedade que não era o que me faria feliz. A minha felicidade pós-separação me fez desenvolver outras habilidades e sair de um cargo de especialista para a posição de diretora.

Casei por pressão familiar. Nunca foi um sonho. O meu sonho é construir um centro de vivência para idosos porque todo mundo deveria ter um fim de vida com dignidade. Esse local seria voltado para a questão dos alimentos, porque vejo com os meus pais a dificuldade que eles têm de adaptar a alimentação à realidade deles.

Fiz uma pergunta profissional e você me respondeu com uma questão pessoal.
É que eu não separo. Para mim, tudo é vida. Quem separa perde um grande tempo da vida. Você pode fazer grandes amigos no trabalho ou fazer uma contratação em um churrasco. Está tudo conectado.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

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