Talento como herança

Cristine não planejava carreira na empresa da família, mas começou no chão de fábrica e hoje lidera Piccadilly

Cláudia de Castro Lima Colaboração para Universa Carine Wallauer/UOL

Ainda durante a faculdade de publicidade, Cristine Grings Nogueira conseguiu um estágio na produção de uma empresa de calçados, a Piccadilly Company. Embora a empresa tivesse sido criada por seu avô, fosse presidida pelo tio e tivesse seu pai como diretor, ela se inscreveu no processo como uma universitária comum, sem contar para ninguém da família - tampouco para alguém da empresa.

"Decidi não dizer que era filha de um dos donos para não ficarem resistentes comigo", disse. "Na empresa, eu era estagiária da Universidade Feevale e não a filha do Tibúrcio, e isso facilitou um pouco o aceite das pessoas a meu respeito." Ela fez o que todo filho, neto ou bisneto de empresário deveria fazer. "Fiquei um ano no chão de fábrica, aprendendo como fazer cada etapa do processo produtivo", diz.

Terceira geração dos Grings, Cristine cresceu apaixonada pela Piccadilly, mas decidida a não trabalhar na companhia. Não queria que pensassem que ela estava lá porque era parte da família. Como todo mundo, queria mostrar que tinha talento e competência.

Aos 24, porém, não conseguiu mais negar a empresa e assumiu o posto de gerente de marketing, depois de algumas experiências fora - que, aliás, ela recomenda para a quarta geração, que está sendo preparada para a sucessão. "Elas foram muito importantes porque me senti muito mais segura, senti que podia contribuir com a empresa mesmo, não estava ali só porque eu era filha de um dos sócios", conta. "Queria buscar um outro caminho para que pudesse ter o orgulho de dizer: fui capaz de construir algo, não ganhei pronto."

Hoje, aos 39 anos, com duas filhas, ela é a primeira presidente mulher a assumir o comando da empresa, que já conta com 50% do corpo diretivo composto por mulheres. Morando na pequena Igrejinha, no interior do Rio Grande do Sul, onde fica a sede da Piccadilly e onde nasceu e cresceu, Cristine está firme no propósito de quebrar o paradigma que recai sobre a terceira geração das empresas familiares.

Ela sabe que só a inovação salva - e é o que conta estar fazendo com sua companhia. "Tenho uma clareza muito importante do nosso papel de reinvenção do negócio." Com a pandemia, acelerou a transformação digital. "Mares calmos não formam boas marinheiras", ela diz.

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3 dicas para mulheres que querem ser chefes

Não espere demais de todos. Temos que ter as expectativas certas das pessoas e das circunstâncias. Esperar muito acaba nos frustrando.

Sobre ter clareza do que se quer

Cuide das sutilezas. Temos que manter humildade e empatia e executar a escuta ativa, para perceber detalhes daquilo que muitas das vezes não é dito.

Sobre uma competência-chave

Mantenha a resiliência. Precisamos ter equilíbrio emocional para lidar com adversidades e desafios, porque boas marinheiras não se treinam em águas calmas.

Sobre resistir e seguir em frente

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Você faz parte dos herdeiros da terceira geração da Piccadilly Company. Como você via a empresa quando era pequena?

Meu pai foi muito sábio em introduzir a mim e a meu irmão de uma forma positiva na empresa. Tenho várias memórias de estar na sala dele, no ambiente de trabalho. Ele tinha uma mesa com um tampo de vidro e eu fazia desenhos, botava por baixo e deixava lá, para serem vistos. Tenho duas meninas, uma de 12 e uma de 8, e quero fazer com que elas vejam meu trabalho como algo bom, e não como algo que tira meu tempo com elas. Isso meu pai soube fazer muito bem. Tenho também memórias especiais do meu avô, que foi um dos fundadores e o grande líder do início da empresa. Não tive a oportunidade de trabalhar com ele, então não tenho lembranças no ambiente profissional, mas algo que me marcou muito foi quando ele faleceu, há 20 anos. Ele era uma celebridade na nossa cidade, Igrejinha, que tem 35 mil habitantes. A empresa tem uma quadra bem grande, que foi inteira cercada por coroas de flores, de tanta gente que mandou.

Trabalhar na empresa fazia parte dos seus planos?

Eu tinha uma grande admiração pela empresa e uma grande admiração profissional por meu pai, mas não queria trabalhar lá. Não queria que dissessem que estava lá por ser neta do dono. Tinha uma certa aversão inclusive a estar na empresa. Meu início profissional foi fora da Piccadilly. Mas tive uma experiência profissional nela: fiz um estágio na área de produção mesmo. Vários de nós, da terceira geração, vivemos essa experiência. Na época decidi não dizer que era filha de um dos donos para não ficarem resistentes comigo. Na empresa, eu era estagiária da Universidade Feevale e não a filha do Tibúrcio, e isso facilitou um pouco o aceite das pessoas a meu respeito.

Fiquei um ano no chão de fábrica, aprendendo como fazer cada etapa do processo produtivo. E, mais do que aprender a fazer o calçado, minha maior lição foi ver como as pessoas podiam ser felizes com pouco. Depois disso, fiquei um bom tempo sem vínculo direto com a Piccadilly.

E que caminhos profissionais você traçou até voltar a ela?

Trabalhei alguns meses num banco, vendia plano de previdência privada. Em cidade pequena, todo mundo conhece a gente. E a gerente falava para o cliente: 'Tu não vais comprar um plano de previdência privada da Grings?' Eu odiava aquilo, então não durou muito. Fiz depois um intercâmbio, tranquei a faculdade de publicidade e morei um tempo nos Estados Unidos. Quando voltei, com 20 anos, pensei que era hora de ir para a minha área. Fiz um estágio numa agência de publicidade e surgiu uma oportunidade de me tornar sócia de outra. Tinha 21 anos, era muito inexperiente tanto nos aspectos técnicos da área quanto para virar empresária, e foi uma mega experiência.

Fiquei três anos nela, e comecei a fazer um MBA em Marketing pela Fundação Getulio Vargas. Em uma construção de um projeto, me dei conta de que eu não o fazia sobre minha nova empresa, e sim sobre a Piccadilly. Aquele amor existia, embora de alguma forma eu negasse. Num determinado momento, então, meu tio, que era o presidente da Piccadilly e responsável pela área comercial e de marketing, me chamou pra uma conversa e me convidou pra assumir a gerência de marketing da empresa. Não consegui mais dizer não. Tinha 24 anos quando fui para lá.

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Essas experiências fora da Piccadilly aplacaram aquele sentimento de achar que seria olhada apenas como a filha do dono?

Elas foram muito importantes porque me senti muito mais segura, senti que podia contribuir com a empresa mesmo, não estava ali só porque eu era filha de um dos sócios. Foi muito relevante isso para mim.

Sempre fui uma pessoa com autoconfiança, boa autoestima, destemida. Mas tinha esse sentimento de não querer que pensassem que eu estava aqui só porque tive essa oportunidade que muitas outras acabam não recebendo - e que, inclusive, podiam ser mais competentes que eu. Queria buscar um outro caminho para que pudesse ter o orgulho de dizer: fui capaz de construir algo, não ganhei pronto.

Hoje já temos um trabalho sendo iniciado para preparar nossa quarta geração, e algo que recomendamos é que existam experiências profissionais externas anteriores. Elas preparam de uma forma muito importante tanto nos aspectos comportamentais quanto nos técnicos. Em experiências externas, a gente é mais um na história, não tem algumas regalias nem pressões extras.

E, dentro da empresa, como foi a ascensão de gerente de marketing até a presidência?

A segunda geração da empresa são seis pessoas, todos eram diretores na época: três filhos do meu avô, meu pai incluído, e outros três sócios minoritários. Eles tomaram a decisão conjunta de começar um processo de sucessão. Na época eu tinha 27 anos, mas eles queriam que a gente começasse a assumir as responsabilidades, e isso num processo de transição. Então assumi a diretoria de marketing, como diretora júnior, e fui ali galgando o meu espaço, conquistando realmente a autonomia até chegar a diretora realmente da área. Assumi mais tarde a vice-presidência da empresa.

Um pouco depois disso, tivemos um conflito familiar, uma situação que aconteceu dentro da segunda geração e culminou com a saída de alguns diretores. Meu tio, que era o presidente, tomou a decisão de também sair da gestão da empresa. E foi um tabu, todo mundo pensando quem ia substituir meu tio. Fizemos um trabalho de governança muito importante para poder lidar com tudo aquilo que vivíamos como família - e tudo fico muito bem resolvido a partir desse trabalho.

Uma das filhas do meu tio falou que ele não ia escolher o sucessor, e que isso teria que ser feito por nós mesmos. Foi tão especial pra mim, porque nunca imaginava ser a presidente da empresa e a terceira geração me escolheu de forma unânime. Foi uma grande surpresa e também um desafio gigantesco. Assumi então a presidência com 34 anos - e isso faz agora 5 anos e meio, no momento que a Piccadilly fez 60 anos. Meu tio sabia que era um momento delicado, mas conclui que estávamos preparados.

Estatísticas mostram que, de cada 100 empresas familiares que são abertas, 30% chegam à segunda geração e só 5% à terceira, grande parte em função de conflitos familiares pelo poder. Como vocês lidam com isso?

A gente sempre diz aqui que quer quebrar o paradigma. É uma busca, e temos muita consciência de que é um desafio muito grande. Isso pra mim ficou muito marcado em uma palestra que tive a oportunidade de ver do John Davis, que é o guru das empresas familiares no mundo. Ele fez uma correlação entre o ciclo de vida das empresas e as gerações, e mostrou que as empresas vão nascer, vão ter o seu ciclo de crescimento, vão atingir a maturidade. E é aí que ou elas se reinventam e entram num novo ciclo de crescimento ou então começam a entrar no declínio, até que deixam de existir. E normalmente entre a segunda e a terceira geração é que as empresas entram na maturidade. Tenho uma clareza muito importante do nosso papel de reinvenção do negócio para podermos entrar no ciclo de crescimento.

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Você sente algum tipo de pressão por reinventar o negócio?

Acho que essa não é exatamente a palavra. Sinto desejo, e é isso que me move, de poder realmente ajudar a empresa nessa transformação. Tenho muito claro que, por um lado, a gente precisa preservar nossa essência, nossos valores, independentemente de quem esteja na liderança da empresa - obviamente, como toda empresa familiar, a gente tem um olhar de perenidade para o negócio. Mas, por outro lado, é claríssimo para a gente que o que nos trouxe até aqui não vai nos levar aos 100 anos. Há a necessidade de uma reinvenção, de uma transformação, de um novo ciclo de crescimento.

Embora a Covid-19 tenha nos trazido muitas dores, nós potencializamos esse viés de transformação do negócio de uma forma muito interessante a partir de tudo o que estamos vivendo.

A pandemia nos trouxe um senso de urgência como empresa. Um dos desafios de uma empresa maior é a gente ser um transatlântico, mais lento para se mover. Muito se fala de cultura de startup. Mas somos uma empresa de 65 anos e temos muito a perder. Então ter cultura de startup não é bem assim, né? Mas a gente sabe que precisa se reinventar, que não fazer nada nessa hora é a pior escolha.

E, nesses seus 5 anos na presidência da Piccadilly, quais são as inovações das quais você mais se orgulha?

Como eu venho da área de marketing, inevitavelmente acredito no valor de marca, na relevância disso. E, como a mulher tem rejuvenescido, a marca também precisava passar por esse processo. Fizemos então uma revisão do posicionamento, entendendo que o tema do propósito precisa estar na mesa. Hoje, o propósito da Piccadilly é o de revelar a verdadeira mulher através do encorajamento feminino. Isso, para nós, tem muita verdade, faz parte da nossa essência. A gente precisa que a marca acompanhe a transformação da mulher. Também entendemos que precisávamos ter um domínio maior do canal e interação mais direta com a consumidora. Então demos início a um processo de franchising.

É uma inovação criar uma loja, e hoje nós estamos com sete em operação e temos um plano de expansão importante pela frente. Isso nos permite conhecer muito mais profundamente a mulher e vai nos retroalimentar como indústria, para também criarmos produtos, ofertas de valor. Isso sem contar o processo de governança.

Para você ter uma ideia, há menos de 10 anos todos os acionistas da empresa eram diretores. Hoje, a grande maioria dos acionistas está fora da gestão, e isso é uma mudança muito significativa e que tem trazido uma demanda de profissionalização muito importante. Uma empresa familiar pode e deve ser profissional, e para ser profissional não precisa necessariamente que os profissionais não sejam da família.

Qual foi o impacto da pandemia nos negócios?

O nosso segmento foi brutalmente impactado. A gente trabalha com mão de obra em massa e a empresa teve uma redução drástica ao longo desse período. Pelo fato de termos um intermediário, que é o lojista, fomos ainda mais impactados. Ele perdeu o consumo e deixou de comprar de nós. Até que essa roda voltasse a girar, ele precisava primeiro vender o estoque que tinha disponível para só então reabastecer. Tivemos que fazer readequações duras. Apesar disso, a gente teve do nosso time um reconhecimento muito grande da forma como conduzimos as coisas sem nunca deixar de nos preocupar com as pessoas. Olhamos também muito para o tema da transformação digital. Criamos o aplicativo Piccadilly Na Sua Casa, de comfort delivery. E criamos ainda o projeto Embaixadoras, que são mulheres que ganham a oportunidade de fazer vendas de produtos digitalmente para sua rede de relacionamentos. Elas são remuneradas por essas vendas - e criamos, assim, um exército de mulheres que pode ter uma renda extra.

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Como vocês se mantêm unidos na família, para que desavenças não prejudiquem a empresa?

Eu diria que nossa união é a grande fortaleza, e é um dos maiores desafios de uma empresa familiar. A relação entre os filhos do fundador é mais fácil do que quando entram mais pessoas [como filhos dos filhos ou cônjuges]. Esse desafio não é só nosso, é de toda empresa familiar. Por isso a governança foi superrelevante para nós. Ela nos ajudou a alinhar as expectativas - que cada um de nós tem as suas, e elas estão na nossa cabeça - e as combinações.

Isso ajuda a minimizar muitas oportunidades de conflitos. Quando a crise existe da porta para fora, e ela existiu muito nesses últimos anos, a gente administra. Mas quando a crise é da porta para dentro, ou seja, quando entra no âmbito familiar, ela é muito mais complexa e impacta diretamente no negócio. Então conseguir ter essa união dentro da família é ouro.

Você é a primeira presidente mulher da Piccadilly. A indústria de calçados é machista?

É muito interessante que, apesar de sermos uma empresa de calçados femininos, ela é ainda muito masculina. Mas aqui temos eu na presidência, tenho uma prima vice-presidente e mais uma diretora mulher. Ou seja, dos seis diretores, metade é mulher. Isso é muito, muito legal, a gente se orgulha bastante. Meu tio, que sempre foi meu líder dentro da Piccadilly, tinha três filhas mulheres, então acho que ele aprendeu a conviver com o sexo feminino intensamente, e nunca senti da parte dele que isso era um problema - muito pelo contrário.

Por parte do mercado, diria que talvez tenha havido uma certa desconfiança porque, além de mulher, tem a questão de eu ser jovem. Um duplo motivo de questionamento, até de dúvida, eu diria. Mas posso dizer que, do meu lado, isso gera estímulo. Sei que infelizmente muitas mulheres não têm essas mesmas oportunidades, não têm a facilidade de não ter sofrido preconceito de uma forma direta ou até sofreram por ter a oportunidade de crescimento tirada. Por isso muitas vezes elas não têm autoconfiança, não acreditam em si.

Você tem duas filhas. Como foi passar por duas gestações enquanto crescia profissionalmente?

Trabalhei muito nas duas gestações. Tive minha primeira no fim de novembro e em janeiro assumi a diretoria de marketing. Brinquei que estava em casa e virei diretora da empresa. Mas eu tive que ficar dois meses em repouso absoluto no fim da gravidez porque trabalhei demais e a médica me disse que ou eu parava ou minha filha nasceria antes da hora e eu teria que parar de qualquer jeito porque ela ficaria na UTI. Foi um choque e entendi que precisava realmente dar um tempinho para ela.

Mas desde que ela nasceu concluí que seria uma péssima mãe se não fosse também profissional. A vida profissional me alimenta de uma forma que sei que, se eu não vivesse isso também, iria inevitavelmente, mesmo que de forma inconsciente, descontar nelas, porque me sentiria frustrada. Acredito muito no tempo de qualidade, então procuro realmente ter momentos em que vivo e curto muito a maternidade.

Minha mais velha teve dia desses que fazer uma redação sobre como ela se imagina no futuro, o que imagina como carreira. Ela me chamou para ver e eu pensei: meu Deus, ela está retratando a minha vida. Que gostoso isso, né? De ver que, apesar de às vezes eu abrir mão de estar junto o tempo todo, ela olha com orgulho e quer se espelhar.

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