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Feminismo é questionado em colégio no Rio: "Me senti em Handmaid's Tale"

Colégio Santo Inácio, no Rio Imagem: Reprodução

Carolina Farias

Colaboração para Universa

26/08/2021 04h00

Um grupo de pais de alunos do colégio Santo Inácio, tradicional instituição católica do Rio, distribuiu entre seus membros uma pesquisa sobre feminismo, "doutrinação progressista" e questões de gênero. Entre as perguntas: "O que acha da ideologia de gênero?"; "O feminismo está de acordo com a fé católica?"; "Acha que há doutrinação política e ideológica de esquerda, progressista, marxista, comunista e semelhantes?"

Quem as recebeu, por um grupo de WhatsApp, foram alguns responsáveis por alunos da escola, que tem 118 anos e onde estudaram personalidades como Cazuza, Vinicius de Moraes e Pedro Bial. As mensalidades custam em média R$ 3.000.

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Entre os membros do grupo CSI Raiz e Tradição, está o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL), pai de um aluno. Ele foi candidato a vice-prefeito na chapa encabeçada por Flávio Bolsonaro (Patriota), em 2016, e aparece em uma foto, ao lado de Daniel Silveira, deputado federal do PTB-RJ, que está preso, e Wilson Witzel, ex-governador que teve o mandato cassado, exibindo uma placa em memória à vereadora Marielle Franco quebrada. A parlamentar foi assassinada em março de 2018, e no mesmo ano Amorim foi eleito o deputado estadual mais votado do Rio.

Universa ouviu quatro mães, três delas pediram para serem identificadas apenas pelo primeiro nome. Todas afirmam que esse grupo de pais, o Raiz e Tradição, é pequeno, porém, barulhento. O colégio ainda não recebeu o questionário oficialmente.

"Esse questionário foi para um grupo de pais específico. Para quem eles sabem que são progressistas e não bolsonaristas, eles não distribuem. Precisamos fazer um coro contrário. Me senti na série Handmaid's Tale", disse Patrícia, mãe de dois alunos. Ela não recebeu a pesquisa, mas o assunto se disseminou após ser publicado pelo colunista Ancelmo Gois, do jornal "O Globo".

A série "Handmaid's Tale", em português "O Conto da Aia", é uma distopia ambientada em um país fictício na América do Norte, onde mulheres não estudam, não trabalham e não tem nenhum direito. Elas são tratadas ou como escravas (inclusive sexuais) ou esposas silenciosas e diligentes.

A polêmica no Santo Inácio ocorre na esteira de uma denúncia de assédio a alunas, em 2020, por parte de dois professores. Descobriu-se que não se tratava de algo isolado e acontecia há anos. Depois de chegar ao conhecimento do Ministério Público Estadual, professores e membros da diretoria da instituição —acusados de omissão foram afastados.

Após o caso, um coletivo de alunas do colégio ganhou destaque e chamou a atenção do grupo de pais que realizaram o questionário. O Coletivo Medusa surgiu em 2018, quando meninas da escola promoveram o Protesto das Bermudas, para que pudessem usar a peça do uniforme não somente na educação física. O foco do grupo é ser um mecanismo de comunicação entre a coordenação do colégio e alunos, principalmente as meninas, e as pautas são ligadas aos direitos delas.

Em 2020, o coletivo atuou para garantir justiça para as vítimas de assédio. Mas o esforço das alunas parece não agradar a essa ala conservadora de genitores. "Você julga aceitável a atuação de coletivos do movimento feminista dentro do colégio?" É uma das perguntas do questionário.

"Em um grupo de WhatsApp maior eles deturpam as informações. Disseram: 'Esse coletivo é um grupo feminista, não é contra o assédio'. Eles trataram o assunto como 'cortina de fumaça' e chamaram os participantes de 'comunistas'", conta Patrícia.

Até pessoas que não se identificam como progressistas ou se dizem conservadores se incomodaram com a abordagem da pesquisa. É o caso de Roberta, também mãe de alunos no Santo Inácio.

"Me causou um desconforto imenso. Esse grupo já tentou influenciar outras decisões da escola. Quando soube da existência da pesquisa, vi que está na hora de quem, como eu, que não tem convicção política, nem direita, nem esquerda, nem Lula, nem Bolsonaro, fazer algo. Para mim, deu. Pensei em montar um grupo de centrão silencioso. Estamos à procura de mais gente sem viés político, mas que queiram resolver questões da escola", salientou a mãe.

Já Mariana acompanhou as aulas on-line da filha durante toda a pandemia e, por isso, afirma categoricamente que não há doutrinação na instituição.

"Assisti a muitas aulas com ela. Tem professor de direita e esquerda, mas não tem doutrinação. Minha filha não participa de coletivos, mas não tenho medo."

Quero que minha filha tenha acesso à diversidade, que conheça posturas políticas e ideológicas e faça sua escolha. Defendo a democracia, que todos digam o que estão pensando. Que esse coletivo exista, assim como outros também.

Patrícia também acompanhou as aulas on-line dos filhos e engrossa o coro de que a instituição não doutrina os alunos.

"Falo com conforto. Assisto a todas as aulas. Os professores não poderiam ser melhores. Falam de assunto atuais, mas de jeito nenhum com doutrinação. Professores são muito bons, o que estraga são esses pais."

Lugar de fala

Ex-aluna do Santo Inácio, a relações internacionais Ingrid Glitz é membro do Coletivo Inaiá, grupo formado por ex-estudantes do colégio de épocas diferentes, diz que elas estão em contato com as alunas do Medusa sobre a polêmica do questionário.

"Elas estão preocupadas em perder espaço de fala, de que reduzam no colégio os espaços para organizarem eventos, clubes de leitura e outros projetos. Estamos em contato para basicamente dizer que as apoiamos. Estamos em contato direto com coordenação, que está disposta a ouvi-las. Há um diálogo aberto. Muitos pais também ofereceram apoio", afirmou Ingrid.

As atividades do coletivo de alunas não serão afetadas pelo colégio, apurou a reportagem de Universa.

Para a professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), doutora em direito penal e ex-aluna do colégio e candidata a vice-prefeita pelo PSOL, na chapa de Marcelo Freixo, em 2016, Luciana Boiteux, o grupo de pais conservadores subestima a capacidade das alunas.

"Eles atribuem doutrinação como se as meninas não pudessem pensar por si próprias. O diferencial desse colégio é a formação jesuíta, que inspira espírito crítico de maneira geral. Querem que o combate ao assédio seja visto como doutrinação, quando é um direito nosso", afirmou a professora.

A jornalista e designer Flavia Boabaid, mãe de uma aluna e também ex-estudante do colégio, também diz acreditar que a formação que a instituição oferece é a ferramenta para que os alunos não sejam vítimas de doutrinas.

"Estou satisfeita, confio muito na escola, nos profissionais que são competentes. Não é justo a escola ficar exposta dessa maneira. É um recorte muito pequeno de pais", afirmou a mãe, que também acha que divergências podem acontecer porque o colégio tem um grande volume de alunos —3.000 atualmente.

"É uma escola plural, é normal que haja divergências. Essas manifestações podem acontecer porque é muita gente."

Roberta diz que também vê exaltação em grupos de pais progressistas, mas que os estudantes podem estar alheios a essas questões porque a formação que o colégio oferece os dá mecanismos para formarem a própria opinião.

"Tenho conversado com minha filha, é super importante ouvir as meninas que estão se formando hoje na escola. Adultos criam inimigos invisíveis dos dois lados, mas os meninos e meninas não veem esses inimigos de um lado ou de outro. Minha filha diz que se sente absolutamente capaz de formar opiniões com todas as possibilidades que a escola oferece."

O que diz o Colégio Santo Inácio

Por meio de sua assessoria de imprensa, o colégio afirmou que, com o número de famílias com filhos na instituição, é esperado que coexistam posicionamentos e entendimentos diversos sobre questões da sociedade.

"O Colégio Santo Inácio, alinhado com a proposta educativa jesuíta, acolhe a pluralidade dos estudantes, famílias e colaboradores que fazem parte de sua comunidade escolar, respeitando as diferenças, mas sempre mantendo a fidelidade aos princípios inacianos de formar cidadãos conscientes, competentes, compassivos e comprometidos", diz o comunicado.

A instituição afirmou que grupos de pais de alunos não são de sua responsabilidade, mas a direção busca manter o diálogo com as representações

A instituição ressalta que as atividades do colégio são parte do Projeto Educativo Comum dos colégios da Rede Jesuíta de Educação (RJE) e não sofrem influência alguma de política ou orientação ideológico-partidária.

Sobre as denúncias de assédio a escola afirma que tomou iniciativas como a implantação de um Código de Ética, a estruturação de um setor de compliance, a ampliação da formação continuada de colaboradores, alunos e famílias, o lançamento da Política de Proteção às Crianças e Adolescentes —documento que define as condutas aceitáveis e recomendadas no espaço escolar para garantir a segurança de todos e as relações saudáveis e adequadas.

O que diz o deputado Rodrigo Amorim

O deputado Rodrigo Amorim se posicionou sobre a pesquisa por meio de nota. Ele afirma que se não está à frente de nenhum movimento interno de pais de alunos e até a quarta-feira (25) não havia tomado conhecimento do conteúdo do questionário. Segundo ele, o colégio em que seus filhos estudam está na esfera de sua vida privada.

"Quando pais escolhem o tradicional Colégio Santo Inácio para complementar a educação de seus filhos, é porque fazem a opção, entre tantas linhas ideológicas existentes, de um conjunto de valores cristãos. Daí ser legítima a discussão que se estabeleceu internamente", diz a nota.

Para o parlamentar, o questionário oferece opções de respostas tanto para quem concorda como para quem discorda dos assuntos e "tem o intuito de entender qual a vontade da maioria, como só acontecem em discussões democráticas."

Amorim se diz contra qualquer doutrinação ideológica nas escolas.

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