Mulheres fortes

Músculos. Veias saltadas. Força. Se você pensou em corpo masculino, chegou a hora de atualizar seus conceitos

Marcos Candido Do UOL, em São Paulo

O corpo feminino passa por uma revolução. A magreza das passarelas é questionada, a palavra "gorda" está deixando de ser ofensa para ser entendida apenas como uma descrição física. Nesse cenário, mulheres fortes e musculosas, ampliam o debate sobre padrões de beleza, que é bem mais complexo do que "questão de gosto". É sobre autoestima e aceitação. 

Adeptas da musculação pesada e do crossfit, que malham usando cordas, barras e pneus em busca de uma silhueta vigorosa, estão redefinindo esses modelos. Elas descartam a magreza, a delicadeza e uma certa fragilidade como características esperadas para o corpo feminino.

Se no passado esse tipo de físico era admirado apenas nos concursos de fisiculturismo, hoje ele é popular no Instagram e fonte de inspiração para milhares de seguidoras. Mas como toda beleza idealizada, ela muitas vezes aprisiona, exige sacrifícios e coloca a mulher na mira de julgamentos. Como já aconteceu com a empresária Michelly Crisfepe, 34.  

Já fui ofendida por causa do meu corpo. Dizem que fiquei parecendo um homem, que passei da medida

E quem define essa medida? No caso de Michelly e das outras mulheres fortes entrevistadas para essa reportagem, foram elas mesmas.

Passou do ponto?

Musculosas rebatem críticas e padrões do 'corpo feminino'

Michelly trocou corpo "capa de Playboy" por músculos

Michelly surpreendeu seus seguidores quando começou a postar no Instagram as primeiras fotos com a silhueta altamente modelada pelos treinos de musculação. A empresária já era conhecida pela participação no "Big Brother Brasil", em 2011, quando tinha o corpo bem mais seco. "Reagiram de um jeito negativo. Diziam que minhas costas estavam bizarras."

Ela nunca se arrependeu de ter trocado o antigo corpo de capa objetificado de revista masculina - ela posou para duas edições da Playboy - pelo atual, ainda que tenha o fator das críticas. "Não sou forte apenas pelo meu corpo. Sou uma mulher forte ao não ligar para a opinião alheia e ao decidir o que fazer da minha vida."

A empresária conta que sempre malhou, mas decidiu ficar mais musculosa ao receber um convite para desfilar em uma escola de samba. "Adotei o 'método bodybuilder' [a dieta e o treino dos fisiculturistas]. Gostei tanto do resultado, que comecei a me preparar para as competições." 

Para se manter musculosa, Michelly é regrada. Além da alimentação balanceada, livre de gorduras, também pode pintar uma agenda de "desidratação", comum no meio bodybuilder, para evitar a retenção de líquidos. Na prática, a estratégia consiste em diminuir drasticamente a quantidade de água bebida, indo de seis, cinco, quatro litros até não beber uma gota em dia de uma competição.

As pessoas ficam chocadas quando digo que fico até 12 horas sem beber água

Palpite é parte da rotina de "advogada crossfiteira"

Há dois anos Priscilla Albuquerque, 29, começou a praticar a modalidade da moda para quem sonha com um corpo sarado: o Crossfit. Na academia, ela se habituou a levantar pneus, sustentar o corpo em cordas e a fazer exercícios como agachamento e abdominais em versões de alto impacto. Tudo de uma só vez, e no menor tempo possível.

Mas o exercício é só a primeira fase. Além da rotina de "crossfiteira", Priscilla também faz uma dieta ingerindo doses de gordura, proteínas e carboidratos controlada com a ajuda de um aplicativo. Por dia, se permite apenas uma colherada de doce de leite. Além disso, há abdominais para fortalecer a região lombar.

Dessa mistura saiu o primeiro "quadradinho" do que seria o futuro (agora atual) abdômen trincado. "Eu pensei: opa! Se isso está funcionando, vou continuar". E continuou - o resultado é a barriga toda trincada.

Saindo da academia, porém, a coisa é um pouco diferente. O ar-condicionado, o escritório, a papelada. Priscilla trabalha como advogada de uma incorporadora. E acaba chamando a atenção pelo corpo cheio de músculos. 

Amigos me aconselham a 'não passar do ponto'. De que estou bonita, mas se exagerar... 

Os palpites alheios, entretanto, não abalam a reflexão sobre si mesma que construiu junto com a dedicação ao corpo. "Me sinto poderosa por me sentir bem comigo mesma."

Na pré-história, mulheres tinham braços musculosos

Você pode não acreditar, mas as mulheres robustas retratadas pelos pintores do Renascimento e as modelos supermagras que posam para os editoriais de moda de hoje têm características em comum. Cada uma ao seu tempo ajudou a definir como parte do conceito de "belo feminino" a delicadeza e uma suavidade que beira à fragilidade. Segundo esse padrão, músculos e força são elementos físicos masculinos.

Mas será que sempre foi assim?

Um estudo da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, divulgado em 2017, mostrou que não. As mulheres pré-históricas tinham braços mais fortes que as campeãs de remo atuais. Nossas antepassadas eram participantes ativas na agricultura e ajudavam a moer os grãos que alimentavam a família manualmente.

Segundo a socióloga especializada em história da arte Ana Paula Simioni, da USP, a representação do corpo da mulher nas artes -- mais forte, mais magro ou mais gordo -- mostra padrões de comportamento de gênero ao longo história. "As representações femininas dominantes na tradição renascentista tiveram matrizes religiosas. Muitas vezes elas apareciam em atividades domésticas".

Isso significa que cada cultura sofreu influências que criam imagens aceitáveis e esperadas do papel e do corpo feminino. "Entre as mulheres do Brasil, busca-se um corpo jovem, magro e, acima de tudo, sensual", analisa a antropóloga Mirian Goldenberg, uma das principais estudiosas da relação entre corpo e sociedade do país. "As musculosas contemporâneas não querem o espaço de força bruta relegado aos homens, muito menos se parecerem como um. Elas querem ter o braço, a coxa e o corpo mais forte que dão a sensação de poder".

Reprodução Reprodução

Quadrinho "Fortona" questiona "pacifismo da fêmea"

A quadrinista brasileira Gabriela Masson, conhecida como Lovelove6, lançou a história em quadrinhos "Fortona", no qual explora personagens femininas cheias de atitude e muita massa muscular. Aqui, ela fala sobre essas mulheres. 

Por que decidiu criar a HQ?
É perturbadora para mim essa ideia de "pacifismo natural" da fêmea humana. As mulheres não são violentas contra homens, aceitam o lugar de submissão física, mas é comum que usem sua força contra os filhos ou outras mulheres rivais. Me intriga que reproduzimos essa mentalidade masculina do uso da força, de bater para reprimir seres mais vulneráveis, mas que não usemos essa mesma força para revidar agressões dos homens. Mulheres que desenvolvem seus músculos e aptidões físicas são observadas com estranheza nas ruas e às vezes lhes é dito que não são mulheres.

As musculosas questionam padrões estéticos aos quais o corpo feminino ainda é submetido?
A norma para um corpo ser reconhecido como feminino é que seja um corpo menor que o dos machos. Mais fraco, mais delicado. As pessoas acreditam que a mulher é menor e mais fraca especificamente por uma questão biológica. A existência de mulheres musculosas por si só desafia esse preconceito

Vamos imaginar um cenário hipotético, no qual a mulher valorizada na sociedade fosse a musculosa e mais forte que o homem. Qual efeito isso teria?
Hoje nós valorizamos mulheres magras. Seria a mesma coisa se fossem mulheres musculosas: uma minoria de mulheres conseguiria se adequar a esse novo padrão estético e a maioria de nós continuaria frustrada com o próprio corpo. As mulheres têm um problema cultural com o uso da violência física, por isso é totalmente possível que existíssemos como uma sociedade de fortonas submissas, vivendo as mesmas dinâmicas de gênero que existem hoje. Apesar das "fortonas" desafiarem a heteronormatividade machista num sentido estético, os músculos não são fatores determinantes para uma transformação política e cultural que efetivamente emancipe e beneficie as mulheres como um todo.

Renata levanta 400 kg. E diz que forte é na personalidade

Renata Spallicci, 36, ocupa um cargo de liderança em uma empresa farmacêutica, em São Paulo. Os braços musculosos ficam cobertos sob a roupa de alfaiataria. Nos treinos, porém, a executiva empurra 400 quilos com as pernas para tonificar os membros inferiores e sustenta mais 100 quilos sobre a costa em agachamentos. 

Na infância, Renata foi sofreu bullying das meninas do colégio devido à aparência - que iam dos cabelos à barriga. Na adolescência, se encantou pelas fisiculturistas. "Eu enxergava o corpo dessas mulheres como obras de arte. E decidi que iria me dedicar para ficar assim também."

O bullying pelo corpo, no entanto, não cessou. Renata ainda topa com comentários ruins. "Sofro preconceito sim. Tem homem que fala que 'passei do ponto', que 'exagerei'". Renata, no entanto, dá de ombros. Nos últimos tempos, aliás, o jogo virou. Dos funcionários da sua empresa, recebeu um quadro da Mulher-Maravilha. Forte e musculosa como ela. 

Meu corpo faz parte do que sou e do que expresso ao mundo. Eu me sinto poderosa 

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