A 1ª executiva trans do país

Diretora da área de seguros da KPMG, Danielle Torres fez a transição dentro da empresa e virou referência

Débora Miranda Colaboração para Universa
Mariana Pekin/Universa

Os ternos incomodavam demais. Os assuntos tipicamente masculinos --churrasco, bebida e futebol-- também. Quando Danielle Torres entrou na empresa de consultoria KPMG, em 2005, ela ainda vivia como homem, mas já sentia dificuldade para se encaixar em alguns padrões.

A afirmação de gênero levou cerca de cinco anos para acontecer e, em muitos pedaços, foi sofrida. Danielle se cobrava para ter posturas masculinas porque queria se adequar. Começou a sofrer com crises de ansiedade e pânico e precisou de ajuda psicológica para se descobrir mulher trans.

Assumir-se no ambiente de trabalho não foi um processo simples, apesar de a empresa ter dado amparo e segurança para que ela fizesse a transição --tanto internamente quanto junto aos clientes. Danielle se tornou a primeira executiva trans do Brasil só no ano passado, quando já ocupava um cargo de direção na KPMG. Atualmente, é sócia-diretora da prática de seguros da companhia.

Aos 35 anos e recém-casada, ela diz que poder viver como mulher aumentou muito sua produtividade na empresa. Já que não tinha mais que pensar em como se encaixar nos padrões masculinos de comportamento, podia se concentrar apenas no trabalho. Afirma ainda que no ambiente corporativo nunca enfrentou situações de preconceito abertamente, mas que socialmente os desconfortos são frequentes.

Danielle virou referência para profissionais transgêneros que buscam espaço e afirmação no mercado de trabalho. Dá palestras em empresas quando sua agenda apertada permite e responde a mensagens em suas redes sociais.

Em entrevista à Universa, ela conta como ascendeu na carreira, mesmo enquanto enfrentava dificuldades na vida pessoal, e destaca a recente abertura das empresas ao universo LGBT.

Quando entrou na KPMG já havia na empresa uma abertura para a diversidade?
A gente está falando de 13 anos atrás, quando o mundo era um lugar bem diferente. Honestamente nunca tinha discutido até aquele momento a questão da diversidade, até porque eu mesma não tinha muita consciência do que era exatamente a minha intimidade. Sabia que eu tinha comportamentos lidos como femininos, mas eu não sabia os porquês daquilo. Nos meus relacionamentos, eu sempre me envolvi com mulheres. Algumas pessoas até faziam brincadeiras sobre uma eventual homossexualidade, só que eu simplesmente não sentia que fazia parte desse universo.

Como foi seu caminho profissional?
Aos 18 anos, comecei a trabalhar numa seguradora e fiquei lá por outros quatro. Entrei na KPMG aos 22, recém-formada em administração, e visando a essa área de auditoria de seguros. Na época, precisei cursar também contabilidade, porque esse é um pré-requisito para a carreira de auditor. Subi para o cargo de supervisora e fui transferida para os Estados Unidos. Trabalhei dois anos lá como senior associate, e voltei para cá já promovida a gerente senior. Depois disso, virei diretora. Foi nesse período que comecei a me assumir. 

Como foi o processo de se assumir dentro da empresa?
Eu tinha comportamentos femininos e essa questão começou a pegar porque eu não conseguia mais disfarçar. Tive crises de ansiedade, pânico, e busquei acompanhamento psicológico. Começou a ficar muito evidente que não era só um sentimento, que era algo muito maior. Quando eu percebi que a afirmação do meu gênero estava relacionada à minha saúde, vi que não teria escolha. As pessoas falam: "Nossa, por que você escolheu esse caminho?". Mas não é uma escolha.

Entendi que eu era transgênero quando já estava ascendendo a um cargo de diretoria. E, óbvio, fiquei pensando: "Assumo ou não assumo?". Decidi que não era o momento de discutir aquilo. Como faria essa comunicação na empresa? Além disso, eu estava num momento de muita experimentação pessoal e vendo o tamanho que era essa questão para mim. 

E quando decidiu finalmente se transformar?
Fui então promovida e, alguns meses depois, houve uma palestra sobre diversidade na empresa. Vi uma palestra do Ramon  Jubels, que é sócio-líder do pilar Voices do Comitê de Inclusão e Diversidade da KPMG no Brasil. Ele é homossexual e contou um pouco sobre como foi o processo dele [de se assumir profissionalmente]. A essa altura, eu já tinha certeza de quem eu era. Falei: "Bom, tenho duas opções: ou escondo isso e vivo assim só aos finais de semana --o que não ia dar, porque já estava num ponto em que eu mesma utilizava pronomes femininos para me referir a mim --ou vou ter que encarar a consequência que for. E decidi seguir por esse caminho. Mas as alterações físicas só começaram a acontecer algum tempo depois. O processo todo durou mais de cinco anos. Nas minhas primeiras fotos já assumida, apareço com uma barba enorme. Ninguém entendia nada. As pessoas me perguntavam: "Mas como assim? Você se assumiu trans e tem essa barba enorme?". Mas eu decidi que ia por partes. Eu sou trans, agora vou ver até onde eu vou assimilar o meu próprio corpo. 

E como a empresa reagiu?
Tive muita preocupação se eu receberia respaldo. Mas soube que a KPMG estava assinando o pacto do fórum das empresas que apoiam os direitos LGBT, o que me deu tranquilidade. Vi que o assunto estava sendo discutido em um nível muito alto, que não era algo que eu ia fazer de forma isolada. Depois, formou-se o comitê de diversidade da KPMG. A empresa me deu todo o apoio, distribuiu comunicados internos dizendo que havia uma pessoa --não me identificaram-- que estava realizando uma transição de gênero. E aí foi estabelecida a regra do jogo interno, que funcionou muito bem: "Na dúvida, pergunte. Continuou na dúvida, respeite". Nunca pedi benefícios, sempre fui uma profissional de altíssima performance e continuei sendo. Mas sabia que ia precisar de apoio para realizar o meu ciclo. Tive a oportunidade de fazer algumas palestras e de me apresentar. As pessoas me perguntavam muito sobre aparência, mas eu dizia que isso não era o principal. Meu objetivo não era ser reconhecida como uma mulher transgênero, mas me olhar no espelho e me reconhecer. Depois que me assumi, procurei ao máximo me concentrar no trabalho, pois sabia que ele seria o meu grande alicerce. 

Me candidatei para uma vaga em Londres, passei, e foi muito bom para a minha transição. Até que chegou o momento em que eu enfim comecei a aparar a barba e mudar as roupas. Era engraçado, porque o pessoal foi acompanhando tudo isso ao vivo. 

Você sofreu preconceito?
Diretamente, não. Mas não sei o que as pessoas falam, isso não está no meu controle. Agora, é bem importante ter em mente que o preconceito é inerente à pessoa transgênero. Ainda mais porque a gente não tem uma discussão ampla a esse respeito. Eu sofri muito preconceito do ponto de vista social, mesmo tendo um ambiente profissional seguro. Sofri e ainda sofro.

Assumir-se influenciou no seu trabalho?
Certamente! A minha produtividade aumentou muito. Tente imaginar como era difícil para mim ter que me preocupar em usar pronomes masculinos, me segurar para não fazer nenhum gesto mais feminino e prestar atenção na minha voz. A partir do momento em que eu não precisava mais ter esse tipo de embate comigo mesma, foi bem mais fácil me concentrar no meu trabalho. Comecei até a dormir melhor.

Que erros cometeu na sua carreira e o que aprendeu com eles?
No começo, errei muito por querer que as pessoas tivessem determinadas performances. Tinha muita dificuldade de liderar, respeitar e entender o outro. Precisei aprender que cada indivíduo tem um valor dentro da equipe. Outro grande aprendizado foi entender que o universo do outro pode ser completamente diferente do meu e mesmo assim, não deixo de ter uma conexão com ele. Eu sempre trabalhei em ambientes muito masculinos, em que os assuntos giravam em torno de futebol, churrasco e bebidas. Eu sou vegetariana, não bebo e não jogo futebol. Mas aprendi que sempre temos algo em comum com as pessoas.

Demonstrar fraqueza atrapalha?
É importante saber ler os ambientes em que você está inserida. Há lugares que exigem maior retração pessoal e outros mais abertos. A questão pessoal não pode se tornar o limitador ou a desculpa da profissional, mas eu sempre procurei ser o mais transparente possível.

Todos os problemas pessoais que eu enfrentei e que senti que estavam influindo no meu trabalho levei à minha liderança. Nunca enxerguei isso como fragilidade.

Quais são os seus principais feitos como líder?
Eu acho que a minha afirmação de gênero não deixa de ser um feito. Em muitos momentos, me questionei se ainda teria viabilidade depois de me assumir. E o fato de ter tido, sem dúvida, é um feito. Mas não considero que seja o meu maior e não quero que seja o único. A minha atuação principal é em auditoria de seguradoras no Brasil e sou membro de um grupo global de contratos de seguros que fica sediado em Londres. Esse grupo se concentra em pesquisas de normas contábeis de seguros. Compartilho conhecimento adquirido por meio das minhas pesquisas, realizo seminários para o mercado brasileiro e também criei um programa de formação executiva em conjunto com nossa área de universidade corporativa, que é a escola de negócios da KPMG. 

Acha que o ambiente corporativo está preparado para receber profissionais transgêneros?
A pauta da diversidade vem ganhando muita força, felizmente. De forma geral, eu acho sim que o mercado está mais preparado para lidar com profissionais transgêneros. Participo bastante, com o Ramon, de fóruns de discussão de empresas que estão com políticas para pessoas trans e LGBT. E recebo no meu Linkedin muitas mensagens de profissionais que estão se assumindo nas empresas.

Tem dificuldade de conciliar sua vida pessoal e profissional?
É corrido, mas eu consigo administrar bem. Sou recém-casada, então, estou vivendo muito o relacionamento, fazendo passeios e viagens. Além disso, estudo violão clássico aos finais de semana e gosto de escrever poesias, ir a museus e de ver a Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de são Paulo]. Também vou muito a shows e ao teatro.

Agora, de segunda a sexta-feira, eu não marco nada. Estou 100% disponível para o trabalho. Se der tempo de chegar em casa cedo, que bom.

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