Um angolano no pedaço

Como Manuel José Nicolau, o Gree, fundou um império no funk que fatura R$ 1 milhão por mês

Guilherme Lucio da Rocha De Splash, em São Paulo Diego Padgurschi / UOL

É a Gree Cassua, neguinho! Respeita.

Versada por uma voz infantil, essa vinheta esteve presente em vários hits do funk paulistano que acumulam cerca de meio bilhão de visualizações no YouTube. Gree Cassua é uma das principais produtoras dedicadas ao gênero e pertence ao angolano Manuel José Nicolau, de 36 anos.

Nascido em Luanda, capital de Angola, Manuel é filho de uma obreira da Igreja Universal do Reino de Deus e de um influente professor e advogado tributário. Ele chegou ao Brasil em 1999 para estudar —e construiu um império. Num ano conturbado como foi 2020, sem a renda dos shows presenciais por conta da pandemia do novo coronavírus, a Gree Cassua faturou cerca de US$ 200 mil por mês com plataformas digitais (Spotify, Deezer, Apple Music e YouTube). Ou seja, cerca de R$ 1 milhão.

Mas esse negrão de cerca de 1,85m e conhecido por revelar grandes nomes do funk como MC Kekel, MC Lipi, DJ Matt-D não teve moleza. O sorriso fácil —que não saiu de seu rosto em 1h30 de conversa com Splash— foi a arma para driblar a xenofobia num país que tem uma imagem pré-concebida de imigrantes angolanos.

Diego Padgurschi / UOL

Sim, eu sofri preconceito. Mas no Brasil, você vale o que tem na mão. Hoje, quando o Gree chega nos lugares, as portas se abrem.

Manuel José Nicolau, o Gree

Diego Padgurschi / UOL

O império de Manuel

Manuel entrou para o funk em 2013 para ajudar o cantor angolano Mister K, que queria gravar um videoclipe por aqui. Como a KondZilla era muito cara para o bolso do amigo, Gree indicou a KL, que na época cuidava de artistas como os MCs Bin Laden, Brinquedo e Pikachu.

Gree, que intermediou a negociação, ficou encantado pelo universo da música e pediu US$ 100 mil (cerca de R$ 250 mil à época) emprestados para o pai. Com o dinheiro, ele fez uma proposta de sociedade para Emerson Martins, dono da KL.

Oito meses depois, o angolano decidiu abrir sua própria produtora.

O funk é um universo encantador, as pessoas vivem e respiram essa cultura. No tempo em que trabalhei com Emerson, aprendi muita coisa, mas chegou uma hora em que entendi que poderia seguir o meu caminho, ter a minha própria empresa.

Hoje, a Gree Cassua emprega cerca de 25 funcionários e agencia 60 artistas, entre MCs, produtores e DJs. Só no YouTube, a plataforma mais usada por quem consome funk, suas faixas somam quase 1 bilhão de visualizações.

A sede da produtora fica numa casa em São Bernardo do Campo. O térreo conta com o setor administrativo, no segundo andar há uma piscina para o cenário de videoclipes e, no terceiro, um lounge. Nos fundos, são nove estúdios para gravação e produção —três são bem espaçosos, e as outras seis cabines têm tamanho para MC, produtor e microfone.

No funk de São Paulo, não é comum ver empresários dentro do estúdio, dando pitaco no resultado final. Mas se você der uma passada pela sede da Gree Cassua, provavelmente vai encontrar o dono enfurnado em algum dos estúdios —mesmo nas gravações que varam a madrugada.

Tento respeitar o espaço do artista. Se ele diz que não quer opinião, não falo. Mas sempre que dou alguma direção, a coisa dá certo. Consigo enxergar lá na frente.

Gree Casua

Sem história triste

Gree não tem melindres para falar do seu passado: ele veio de uma família rica. O apelido de infância, Gregório, veio de uma tradição familiar e virou nome artístico —Gree é uma abreviação e Cassua é o sobrenome de sua mãe.

Com uma juventude abastada, ao completar o ensino básico teve a oportunidade de escolher fazer faculdade entre três países: Estados Unidos, Inglaterra e Brasil. A única condição era o curso: Ciências Contábeis. Em 1999, ele chegava em terras brasileiras.

Eu queria realizar o sonho do meu pai. Como já tinha primos e tios morando no Brasil e o idioma era o mesmo, decidi vir para cá. Terminei a faculdade no começo dos anos 2010 e não quis voltar para a Angola, gostei daqui. Graças a Deus, conheci o funk.

Manuel diz que o país africano e sua segunda casa têm muita coisa em comum, principalmente a alegria e a musicalidade do povo pobre que, lá, se manifesta por meio do kuduro.

Acho que tem a coisa da dança, do gingado, de demonstrar felicidade, do sorriso. Não sei se musicalmente o funk e o kuduro são ritmos próximos, mas essa questão cultural é bem parecida. Acho, que tanto na Angola, quanto no Brasil, o povo vê na música um caminho para a felicidade.

Diego Padgurschi / UOL Diego Padgurschi / UOL

'O angolano vendedor de órgãos'

Manuel diz ter sido bem acolhido no Brasil, mas que a visão dos paulistanos sobre imigrantes angolanos é de que são "pessoas subalternas". E, no funk, a impressão foi de ser um intruso na cultura local.

Vou te falar que até entendo. Quando cheguei ao Brasil, a cultura já estava estabelecida, tinha seus pilares. Eles pensavam: 'vem um angolano e quer mexer na nossa tradição'? Eu entendo essa defesa. Mas sempre digo que quero contribuir, estou aqui para somar.

Como mostramos em outra reportagem, o mercado do funk de São Paulo é "dominado" por duas empresas: GR6 e KondZilla. Elas detêm os principais artistas e os maiores canais de videoclipe no YouTube. Empresas como a Gree Cassua estão numa prateleira abaixo e costumam focar em revelar talentos —que, ocasionalmente, podem parar nas duas outras produtoras.

E a "compra e venda" de MCs funciona como no futebol, com direito a apresentação e tudo mais. Os valores também não ficam muito atrás: Gree diz que vendeu um dos seus principais artistas em 2020, o MC Lipi, por cerca de R$ 1,5 milhão para a produtora Love Funk. Ou seja, a briga pelo passe dos cantores é feroz e, às vezes, tem gente que usa de preconceitos para tentar vencer a disputa.

Certa vez, ele procurou a família de um jovem MC para firmar um contrato de agenciamento. Mas, no meio da negociação, apareceu outro empresário interessado que tentou convencê-los de que Manuel era um traficante internacional de órgãos.

Tem gente que tenta de tudo para levar um artista. Estava negociando com um MC de uns 13 ou 14 anos. Esse outro empresário atravessou o negócio e abordou a família do jovem dizendo que eu vendia órgãos de crianças, que eu era muito mau e perigoso. Percebi que a mãe ficou com receio de uma hora para outra. Foi então que descobri essa mentira. A sorte é que eu tenho pessoas que sabem da minha índole, que podem reforçar quem sou eu de verdade.

Manuel José Nicolau, o Gree Cassua

Diego Padgurschi / UOL

Aí foi que o barraco desabou...

Esse nem de longe foi o único revés em sua carreira artística. Em 2015, Manuel vivia seu melhor momento profissional. A Gree tinha no casting MC Kekel, conhecido pelas músicas "Partiu", "Namorar Pra Quê?" e "Meiota" (que hoje somam 500 milhões de visualizações no YouTube) e DJ Perera, um dos maiores nomes do funk quando o assunto é produção musical.

No fim daquele ano, Manuel foi a Angola visitar a família. Chegando lá, descobriu que era alvo de uma investigação pelas autoridades locais.

Era algo de praxe, porque eles souberam que eu me tornei um empresário de sucesso, queriam entender melhor. Porém, não consegui voltar em um mês, tinha que prestar esclarecimentos e acabei ficando seis meses por lá. Esse tempo mudou a minha vida.

Enquanto esteve exilado em seu próprio país, os responsáveis por cuidar de seus negócios no Brasil [sua então namorada e amigos próximos] acharam que Manuel não voltaria mais ao Brasil e decidiram se desfazer da Gree Cassua. Mas de tudo mesmo. Venderam imóveis, passes de artistas, direitos autorais...

Manuel recorreu ao pai, que novamente estendeu a mão. Ele mandou passagens para Dubai para que seu filho refletisse sobre a vida e depois voltasse ao Brasil para continuar a vida de empresário.

Minha família acredita muito em mim, todos me apoiam. Mas, durante esse tempo, eu fiquei desolado. Eu tinha planos, mas não tinha como realizá-los. Parecia tudo perdido.

Avisa lá que nada mudou!

Já de volta ao Brasil, Manuel recomeçou quase do zero —as únicas coisas que conseguiu manter foram a sede da produtora e a cessão de algumas músicas. Mas tinha a certeza que as lições do passado serviriam para o presente: para ele, o pulo do gato era ter os melhores produtores para atrair outros artistas. Foi assim que contratou o DJ Perera, por exemplo.

Além disso, acredita no fomento de novos talentos. Ele recebe centenas de mensagens diariamente, a maioria de adolescentes de todo o Brasil pedindo uma oportunidade.

Pasme, ele responde uma por uma.

Nem que seja um 'ok'. É o primeiro passo para o artista confiar em mim. Óbvio que ele quer gravar com os grandes produtores, mas se ele acreditar no que eu faço, ele vai produzir aqui e querer ser agenciado pela Gree Cassua. Depois, quando estiver maior, com vários sucessos na pista, ele sente gratidão e retribui. Não existe sensação melhor do que uma boa colheita. E só quem planta consegue.

O processo foi longo, mas ele conseguiu voltar com tudo: 2020 foi um ano de consolidação. A Gree Cassua revelou nomes como DJ Matt-D e MC Lipi, e um dos grandes sucessos foi "Homenagem aos Relíquias", que reuniu vários MCs e ganhou até novas edições —já está na terceira, acumulando quase 200 milhões de visualizações no total.

Não temos medo de arriscar. O Matt-D é um moleque superinteligente. Ele deu a ideia de homenagear sucessos do funk antigo, do hip-hop dos anos 2000. Eu sugeri: 'você gosta tanto de trap, por que não faz algo nessa pegada?' Ele teve coragem de fazer, de sair da caixinha. O resultado está aí, milhões de visualizações.

Um dos bordões de Manuel é: "avisa lá que nada mudou". Não querendo discordar do entrevistado, mas muita coisa mudou no cenário do funk de São Paulo desde que esse angolano chegou.

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