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Rio Grande do Sul: como dar uma força para o povo do livro

"Sei muito bem que não se comparam com as vidas e os sonhos levados pelas águas. Mas eles também são uma forma de vida e de sonho. Refiro-me aos livros, tomados e destruídos pelo enxurro, aos milhões, no Rio Grande do Sul", escreveu Ruy Castro numa bonita e dolorosa coluna.

Todas as notícias e relatos vindos do sul são repletos de tristeza. Não é diferente com nosso universo em particular, o dos livros. Com a água cobrindo diversas cidades, editoras e livrarias já compartilhavam uma certeza: o prejuízo seria enorme. Podendo acessar escritórios, depósitos e lojas, começam a contabilizar a desgraça.

A Livraria Taverna tomada pelo rio foi uma das primeiras imagens impactantes desse mundo. Agora, pilhas de livros encharcados, destroçados, enlameados, transformados em uma massaroca de barro e páginas indistinguíveis pululam pelas redes. Ao lado do sebo Só Ler, calhamaços parecem entulho. Tanto faz, tudo virou lixo.

Nesse cenário, perdas atenuadas despontam com certo alívio. O estoque da L&PM ficou inundado durante semanas, mas caixas de livros ficaram a salvo. As perdas foram menores do que esperavam, compartilharam nas redes.

É uma exceção. No geral, em meio a animais mortos e ruas irreconhecíveis, o pior cenário vem se confirmando. Na editora Jambô, onde livros boiavam em água podre, a grana de um financiamento coletivo servirá para ajudar vítimas da hecatombe.

O pessoal da Tag, que já vinha colhendo doações por meio de uma parceria com a Livraria Martins Fontes, de São Paulo, encontrou situação parecida quando conseguiu acessar a sala do clube por assinatura no Instituto Caldeira.

Seguir em frente parece ser a única coisa possível. Limpar toda a sujeira, contabilizar as perdas e tocar o trabalho, tentar se reerguer — e torcer para a chuvarada não voltar. Não será nem um pouco fácil. Como em outras áreas, ações relacionadas aos livros têm surgido para dar uma força aos gaúchos.

O Clube dos Editores do Rio Grande do Sul lançou uma campanha para tentar fazer com que a retomada seja possível. Sugerem quatro movimentos. É leitor? Então compre livros de editoras gaúchas, e se possível em livrarias gaúchas, mesmo que a entrega não seja imediata. Indique títulos publicados por essas editoras.

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Viu que alguma editora querida perdeu boa parte de seu estoque? Então dê uma força comprando livros digitais. E aos livreiros de todo o país fica um pedido: destacar nas estantes e vitrines obras de editoras gaúchas, além de oferecê-las aos clientes. Acrescento um ponto a tudo isso: se possível, privilegie escritores que vivem no Rio Grande do Sul.

Fazem parte do Clube dos Editores do estado as seguintes editoras: Arquipélago, Artes e Ofícios, Avec, Besouro Box, Cassol, Cirkula, Concórdia, Coragem, Dublinense, Edelbra, EdiPucrs, Artmed, L&PM, Libretos, Metamorfose, Piu, Projeto, Sulina, Tomo, Vivilendo e Zouk. Deixo a lista como referência. Ela não esgota o cenário local, vide a ausência da Jambo, mencionada acima.

Há outros movimentos. Um conjunto de ações do pessoal dos quadrinhos arrecadou quase meio milhão de reais. No começo do mês, enquanto ainda buscávamos entender toda a dimensão do horror, foi bonito de ver escritores donos de newsletters ministrando um aulão beneficente. A iniciativa foi da Vanessa Guedes e levantou mais de 30 mil.

Estão nas newsletter alguns dos relatos mais impressionantes e das reflexões mais pertinentes sobre essa espécie de fim do mundo que tanta gente tem vivido.

"Acho que eu seria capaz de incendiar todos os brinquedos de infância da próxima pessoa que me disser que perdemos apenas coisas", escreve Julia Dantas.

Irka Barrios, outra escritora, relata sua versão do horror: "Tia, parece que estamos naquele filme O impossível', meu sobrinho disse no sábado, às seis da manhã, enquanto tentávamos vencer uma correnteza que atingia os nossos joelhos".

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O editor João Varella não conseguiu chegar ao Sul e teve que acompanhar de longe a angústia de sua família. O avô de 90 anos, dependente de cuidadora, não conseguiu deixar o apartamento onde vive. "A enchente não entrou na residência, mas ele ficou ilhado, recebendo comida e remédios por bote, sem energia elétrica, sem internet, pouca água".

Também de longe que Carol Bensimon viu o estado onde cresceu e passou boa parte da vida submergir. "Nos primeiros dias das enchentes do Rio Grande do Sul, a mídia do centro do país não tem a mais vaga noção da dimensão do desastre: os portais não colocam um peso especial nas notícias relacionadas e, ainda por cima, usam um vocabulário constrangedoramente modesto. Palavras como 'alagamento' fazem parecer que estou lendo notícias de trânsito".

Destaco esse trecho porque também penso muito sobre quais palavras escolher na hora de abordar o assunto. Como denominar o que se passa no Rio Grande do Sul? Muitos jornalistas falam em tragédia.

Não me satisfaz. Para se referir a dramas particulares, sim, milhões de pessoas estão vivendo tragédias íntimas e familiares. Mas tragédia é uma palavra que transmite a sensação de algo imprevisível, imponderável. E desastres climáticos, definitivamente, só surpreendem terraplanistas.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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