Flavia Guerra

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Opinião

'Assassinos da Lua das Flores': heroína indígena e Scorsese em combustão

Incapaz. Assim Mollie (Lily Gladstone) é classificada logo de início em "Assassinos da Lua das Flores" ("Killers of the Flower Moon"), novo filme de Martin Scorsese que estreia em 19 de outubro e, em breve, na AppleTV+.

A definição, quase uma legenda, aparece rapidamente na tela enquanto Mollie, que pertence ao povo indígena Osage, do estado de Oklahoma, nos EUA, tenta levantar uma quantia com o tutor de sua conta bancária para gastos do dia a dia e o "gerente" questiona que a mãe dela anda gastando muito com carne. Filmada com rapidez em tom corriqueiro, a cena é tão "normal" quanto ultrajante.

Aparentemente banal, esta cena é emblemática e diz muito sobre como Scorsese retrata cada micro e cada macroviolência em "Assassinos". Entender como o diretor expõe a "normalidade do absurdo" é uma das chaves para também se entender como ele enxerga a banalidade da brutalidade que gestou cada sociedade contemporânea, não só dos EUA, mas de todas as "colônias".

Para além do estilo sempre preciso, elegante e seguro do cineasta de obras-primas como "Taxi Driver" e "Touro Indomável", o que mais surpreende em "Assassinos" é onde está o olhar (ou o eixo da câmera) de Scorsese. Não que seja uma completa inversão de eixo, obviamente, uma vez que destrinchar as entranhas dos jogos de poder, a banalidade do mal e da brutalidade, traições e a violência sempre estiveram na pauta de seu cinema.

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Ao adaptar para o cinema um livro que já no nome prometia contar a história do nascimento do FBI, Scorsese preferiu focar a história de um povo indígena que foi, como tantos, sistematicamente enganado, violentado e dizimado. Assim, aos 80 anos, o diretor revela que seu cinema não envelhece.

"O livro em questão é 'Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI' ("Assassinos da Rua das Flores: Petróleo, Morte e a Origem do FBI") no qual o autor David Grann conta justamente o caso real de uma série de assassinatos ocorridos na região de Osage Nation, em Oklahoma nos anos 1920.

Como já dito, poderia ser mais uma história do policial diante de um caso quase insolúvel que, com sua astúcia, desvenda esta série de crimes. Mas não é. "Assassinos", o filme, parte da história de um limitado Ernest Burkhart (Di Caprio), que, ao voltar do front da Primeira Guerra Mundial, vai viver com seu tio Wiiliam King Hale (De Niro), um poderoso fazendeiro da região de Osage.

Robert De Niro é King, tio que funciona como figura paterna de Ernest (Leonardo Di Caprio) em "Assassinos da Lua das Flores"
Robert De Niro é King, tio que funciona como figura paterna de Ernest (Leonardo Di Caprio) em "Assassinos da Lua das Flores" Imagem: Divulgação/ Apple Original Films
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King (Rei), como gosta de ser chamado, é uma autoridade local. Ele tem uma fazenda, dinheiro, influência e o respeito dos Osage. Até fala o idioma e tem amigos indígenas. Figura paterna do sobrinho Ernest, King está de olho na fortuna dos conterrâneos indígenas. Eles estão entre as pessoas mais ricas do mundo, depois que foi encontrado petróleo em suas terras ancestrais. Obviamente, os demais brancos estão de olho na riqueza e uma forma de controlar os Osage é os declarando incapazes de gerir suas próprias fortunas.

Outra forma é se casar com eles, especialmente as mulheres Osage, e, assim, abocanhar boa parte de suas posses. A terceira forma é a que justamente funciona como o gatilho para que não só o livro no qual o filme é inspirado exista, mas também a história de um dos crimes em série mais chocantes da recente história norte-americana.

JaNae Collins, Lily Gladstone (Mollie), Cara Jade Myers e Jillian Dion em "Assassinos da Lua das Flores"
JaNae Collins, Lily Gladstone (Mollie), Cara Jade Myers e Jillian Dion em "Assassinos da Lua das Flores" Imagem: Divulgação

Os Osages vão caindo um a um. Ora de morte morrida, outras vezes de morte matada. Um suicídio mal explicado em que a pessoa se dá um tiro no peito, uma doença misteriosa jamais diagnosticada (nem mesmo na autópsia), um acidente suspeito? Dia após dias a população vai sendo silenciosamente dizimada sem a menor indignação dos brancos locais. Nem mesmo o poderoso e aparentemente aliado King parece se revoltar ou pelo menos surpreender.

Ele limita-se a dizer ao sobrinho que os Osage têm saúde frágil e que, em geral, não passam dos 50 anos. "Uma hora, vão desaparecer". O sobrinho que ouve tudo atento, na medida que sua inteligência permite, e vai pouco a pouco aprendendo a também tirar vantagem da situação. Ele se torna motorista e passa a fazer corridas para a misteriosa, calada, mas fascinante, Mollie.

Como seu povo, ela fala pouco, observa muito e tem a astúcia de entender que Ernest não está só interessado em sua beleza. "Os Osage eram considerados incapazes de gerir sua própria fortuna naquele tempo. Ao ter um cuidador como Ernest como seu marido, eles se tornam independentes. Eles cuidam um do outro.

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Em alguns aspectos, ela tem alguma vantagem com o casamento. Já Ernest tem sentimentos verdadeiros por ela, mas entende que havia uma riqueza tremenda na família", afirmou Di Caprio no material de divulgação do filme (uma vez que, por conta da atual greve dos atores de Hollywood, as entrevistas que ocorreriam para o lançamento foram canceladas).

Lily Gladstone (Mollie) e Martin Scorsese no set de "Assassinos da Lua das Flores"
Lily Gladstone (Mollie) e Martin Scorsese no set de "Assassinos da Lua das Flores" Imagem: Divulgação / Apple Original Films

De fato. Como já dito, a violência é sempre ponto central do cinema de Scorsese, mas jamais banalizada. Ainda que as mortes ocorram em uma sequência quase trivial logo no início da trama, é justamente para escancarar a indiferença da população branca e das autoridades diante do fato de que há algo de podre no reino dos Osage.

Esta podridão, este mal-estar ganha o compasso de um tambor incessante que toca, em passo lento e permeia quase todo o filme. Seu som quase onipresente dá à trama a densidade do lamaçal em que se construiu boa parte não só da história dos Estados Unidos, mas de toda América e, ampliando, toda terra dita "colonizada" pelos "civilizados".

Scorsese, nas mais de três horas e meia que dura o filme, não está interessado em entreter somente. Muito menos preocupado com a falta de atenção crônica e tolerância a narrativas que passam de um minuto e meio dos TikToks atuais. O cineasta toma seu tempo, e o do espectador mais paciente, para imprimir ao filme a combustão lenta que demorou, mas ferveu, inflou e inflamou os Osage diante da indiferença e do silêncio gritante dos brancos e das autoridades locais.

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Robert De Niro e Jesse Plemons em ?Assassinos da Lua das Flores?, estreia dia 19 de outubro nos cinemas e, em breve, na Apple TV+.
Robert De Niro e Jesse Plemons em ?Assassinos da Lua das Flores?, estreia dia 19 de outubro nos cinemas e, em breve, na Apple TV+. Imagem: Divulgação / Apple Original Films

"É uma responsabilidade imensa interpretar Mollie Burkhart. Os Osage, depois de terem que sair de sua terra ancestral e chegado à Oklahoma, compraram as terras, pois entenderam que esta era a linguagem que os brancos entendiam. Quando petróleo foi descoberto em suas terras, se tornaram as pessoas com maior renda per capita do mundo. A riqueza do petróleo trouxe muita atenção indesejada para os Osage", comentou Lily.

"A família de Mollie sofreu extorsão, assassinatos por parte de quem queria sua riqueza", comentou Scorsese, que contou no Festival de Cannes, em maio, quando o filme fez sua première mundial, que foi Di Caprio quem apontou que seria impossível contar esta história pelo viés de sempre. Era preciso atualizar, olhar o mundo, olhar a história e reavaliar seus heróis e heroínas.

"É uma honra e uma responsabilidade viver o papel de Mollie e apoiar o povo Osage", diz Lily Gladstone sobre "Assassinos da Lua das Flores"
"É uma honra e uma responsabilidade viver o papel de Mollie e apoiar o povo Osage", diz Lily Gladstone sobre "Assassinos da Lua das Flores" Imagem: Divulgação / Apple Original Films

"Quando os assassinatos começaram a acontecer, Mollie age. Ela desafia o sistema, a Justiça. Ela decide ir a Washington procurar ajuda. É uma grande honra viver Mollie e poder apoiar a nação Osage. É um filme poderoso", completou Lily.

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Muitas vezes se afirmou que Scorsese faz filmes em que os protagonistas são sempre homens e que mulheres são coadjuvantes, o que procede. No entanto, personagens femininas de seu cinema também marcaram a história, como a Ginger McKenna (Sharon Stone) de "Cassino" (1995), ou até o longínquo "Alice Não Mora Mais Aqui" e sua Alice inesquecível de Ellen Burstyn (que, aliás, teve a ideia do projeto) ou até mesmo a Jenny Everdean (Cameron Diaz) de "Gangues de Nova York"(2002).

"Assassinos da Lua das Flores" chega para, ao menos, atualizar esta filmografia. Ainda que Di Caprio figure como o aparente protagonista, é Mollie quem provoca a grande combustão lenta e irrevogável da história e da História. "Ela é a verdadeira heroína. Ela é o coração e a alma deste filme. Ela realmente é", concorda o ator.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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