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Mortos em abril

Documentário sobre quatro assassinatos que abaralam o funk de São Paulo


Mortes de MCs Boladão, Duda, Primo e Careca estão há mais de dez anos sem respostas

Guilherme Lucio

Do UOL, em São Paulo

10/11/2022 03h55

Na tarde de 28 de abril de 2012, Cristiano Carlos Martins, o MC Careca, trabalhava em seu salão de cabeleireiro, no bairro Jardim Castelo, em Santos, quando homens armados invadiram o local e efetuaram mais de dez disparos contra ele - três tiros de calibre .12. O assassinato de Careca - alertado em uma ligação anônima (leia abaixo) -- foi o quarto de uma série de mortes de funkeiros na Baixada Santista, todos no mês de abril de 2010, 2011 e 2012, que continuam sem solução depois de mais de dez anos. Além dele, foram assassinados MC Felipe Boladão, MC Duda do Marapé e MC Primo.

As mortes receberam poucas explicações do sistema de justiça e das polícias Civil e Militar. Entre as principais linhas de investigação da Polícia Civil para o assassinato do MC Careca, por exemplo, estão:
1) Execução por um grupo de extermínio motivada pelas composições do MC com críticas ao trabalho da Polícia Militar;
2) Vingança pela relação de Careca com Jonas dos Santos Júnior, o MC Pixote, seu ex-companheiro de música e que está preso por tráfico de drogas.

MC Careca fez sucesso no início do século, principalmente quando fez dupla com MC Pixote. Com letras ácidas, a dupla relatava as disputas territoriais que existiam na Baixada Santista entre o crime organizado e a polícia. Em muitas dessas letras, o personagem principal, que narrava em primeira pessoa algum acontecido, era o criminoso. Pixote foi preso duas vezes. Na segunda vez, Careca se dissociou e iniciou carreira solo, mas continuava amigo do companheiro que estava atrás das grades.

A desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, explica a diferença entre um homicídio e uma execução. "No homicídio, a reação é sempre maior que a situação em que você tira a vida de uma pessoa. Na execução, o dolo do executor vem de casa já imaginando que ele vai te dar vários tiros. Ele quer matar e matar muito".

Dez anos depois do último crime, a Justiça não tem resposta sobre a morte de Careca ou dos outros três MCs mortos. "A gente tem medo. A gente não sabe quem foi, quem deixou de ser, o motivo. Ouço muita gente me perguntar sobre os meninos e digo que eles cantavam. Eles faziam cultural", diz DJ Digão, que trabalhou com os MCs Careca, Primo e Felipe Boladão.

As histórias desses músicos estão no documentário "Mortos em Abril: Quatro Assassinatos que Abalaram o Funk em SP", disponível no Youtube de MOV.doc. Os dois episódios foram produzidos por MOV, a produtora de vídeos do UOL, e têm entrevistas com produtores, DJs, familiares, especialistas em segurança pública, juristas e músicos - entre eles, Kondzilla, MC Hariel, MC Guimê e MC Neguinho do Kaxeta. A narração é de MC Barriga.

O primeiro cantor assassinado foi Felipe Wellington da Silva Cruz, aos 21 anos, conhecido como Felipe Boladão. Em 10 de abril de 2010, ele estava com seu DJ, também chamado Felipe, na cidade de Praia Grande, quando os dois foram mortos. Os dois artistas se preparavam para fazer um baile na Grande São Paulo quando foram surpreendidos pelos executores.

Assim como no caso de Careca, a profissão e as músicas de Felipe foram uma das linhas de investigação.

No ano seguinte, em 12 de abril de 2011, Eduardo Antônio Lara, o MC Duda do Marapé, então com 27 anos, voltava de um show em Santos quando foi alvejado. "Eu era fã do Duda e estava cantando com ele em uma casa noturna de Santos. Eu saí e ele continuou por lá. Pouco depois, recebi a ligação do meu empresário falando que o Duda tinha tomado uns tiros", lembra MC Boy do Charmes.

No pedido de arquivamento do caso, o Ministério Público sugeriu que a morte do funkeiro estava ligada com sua dependência química e que não era possível chegar a um autor do crime.

Após as duas primeiras mortes, MCs, DJs e produtores passaram a viver sob um medo constante, que só cresceu após a morte de Jadielson da Silva Almeida, o MC Primo, no dia 19 de abril de 2012. "Eu e meu irmão estávamos na hora. Minha mãe viu meu pai no chão e se jogou em cima dele, porque iam atirar na cabeça também", conta Layssa Almeida, filha do cantor.

Nove dias depois, Careca foi assassinado. Os assassinatos no mês de abril e o histórico das vítimas com o funk fez com que diversas teorias surgissem, mas nenhuma foi efetivamente comprovada pelo Poder Judiciário. Desde março, o UOL fez diversas tentativas de entrevistas e acesso aos inquéritos das quatro mortes, sem sucesso.

A equipe do documentário visitou as delegacias que investigaram as quatro mortes presencialmente e entrou em contato com Manoel Gatto Neto, diretor-geral da Polícia Civil na Baixada Santista. Também tentou contato com Ministério Público para ter acesso às investigações do órgão, mas só conseguiu como retorno os pedidos de arquivamento feitos ao Tribunal de Justiça - documento que já está público. Nenhum representante do MP ou Polícia Civil aceitou dar entrevista para o documentário.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, 77,9% das vítimas de mortes violentas intencionais no Brasil são negras. Entre os mortos pela polícia, os negros representam 84,1% do total.

"Pesquisas também indicam que metade dos homicídios no Brasil não é esclarecido e que, de cada dez casos, oito não se transformam em um processo, portanto não chegam à Justiça. Esses dados indicam que não é raro uma investigação dessa natureza acabar sendo arquivada, mas o acesso aos autos e às informações coletadas ajudaria na compreensão do que houve de fato", diz Flávia Rahal, advogada criminalista entrevistada no documentário.

Clima de terror

O ano de 2012 foi marcado pelo medo entre os MCs da Baixada Santista, além de ameaças a eles. No velório do MC Primo, diversos colegas de profissão foram ao local e pediram um basta de violência, dando entrevistas para TVs locais. Entre os funkeiros estavam os MCs Careca, Bola e Neguinho do Kaxeta.

De acordo com Bola e Kaxeta, Careca, que seria assassinado dias depois, recebeu uma ligação anônima durante o velório, com um interlocutor dizendo que ele "seria o próximo".

"Não sei se era brincadeira, se era uma ameaça real. Lembro que logo depois ficou todo mundo com muito medo, o Careca entrou num carro com os amigos e saiu do velório bem rápido. Foi a última vez que o vi", diz Bola.

Kaxeta diz que após o velório de Primo, por ter aparecido na TV pedindo o fim das mortes de MCs, seu rosto ficou marcado e ele passou a receber diversas ameaças. Em junho de 2012, ele foi vítima de um atentado a tiros e o carro onde ele estava foi alvejado 11 vezes - sete disparos atingiram o cantor, que sobreviveu.

Delegado na investigação de Careca

No dia 13 de maio de 2006, o delegado João Octávio de Mello estava escalado para fazer plantão no 1º Distrito Policial de Cubatão, mas acabou não indo à delegacia. O policial civil acabou dando sorte, pois naquele dia criminosos invadiram e atiraram contra o local, ferindo três agentes. A ação marcaria um dos diversos ataques que o Primeiro Comando da Capital (PCC) faria em todo o Estado de São Paulo naquele mês de maio.

Um dos criminosos que estava na ação do 1º DP de Cubatão era Pixote, o ex-parceiro de Careca no funk.

Em 2012, o mesmo João Octávio de Mello era o delegado responsável pelo 5º Distrito Policial de Santos, que investigava os crimes da Zona Noroeste de Santos. Entre esses crimes, estava o assassinato do MC Careca. Após investigação, o caso foi encerrado.

O UOL solicitou entrevista ao delegado, mas o pedido foi negado pela cúpula da Polícia Civil.