COZINHA FANTASMA

Um dia em uma das unidades da maior rede de dark kitchens do Brasil, microcosmos da metrópole onde diferentes histórias de vida se cruzam

Texto e fotos

Dubes Sônego

Daniela Soares Pires, de 21 anos, deixou a casa dos pais, em Vitória da Conquista (BA), "em busca de melhores oportunidades de trabalho" e do sonho de fazer faculdade de nutrição.

Em São Paulo, virou auxiliar de cozinha em uma das unidades da ATW Delivery Brands, a maior rede do Brasil de dark kitchens (os lugares de produção de refeições oferecidas nos aplicativos de delivery, também conhecidos como "cozinhas fantasma").

Mas Daniela ainda não conseguiu começar os estudos. "Ainda não dá", diz. "Preciso escolher o curso e estudar, e termino o dia muito cansada."

Os aplicativos de delivery aproveitam o que há de mais moderno para facilitar a vida de quem pede comida. Do outro lado do balcão, porém, quase todo o trabalho é manual. E quem o faz é gente em busca de um sonho fora do ambiente da cozinha.

A rotina começa às 9h com a limpeza geral. Lucimara Gonçalves Bento, de 30 anos, líder de cozinha, é quem inicia os trabalhos. Moradora do Capão Redondo, em dias que dobra o turno, sai de casa às 7h e só volta depois das 23h. O dinheiro extra alimenta a vontade de ter uma casa própria.

Os pedidos começam a chegar ao meio-dia e são recebidos pela gerente, Maria de Fátima Pires, de 60 anos. Paulistana, é ela quem abre o sistema no computador, faz o controle dos estoques e a ponte entre a cozinha e os motoboys.

Ao contrário do que acontece em restaurantes tradicionais, onde o burburinho toma conta do salão, o silêncio predomina. Não há garçons que entram reclamando do atraso de um pedido ou do ponto da carne.

O auxiliar de cozinha Márcio Gonçalves, de 26 anos, é um dos que empana e frita as carnes, a batata, a polenta e a mandioca usadas para compor os pratos.

Irmão de Lucimara, começou como motoboy. Quando surgiu uma vaga da porta para dentro, viu a chance de guardar dinheiro para montar um segundo salão com a mulher, no Capão Redondo. "No primeiro eu tinha um sócio e não deu certo", conta, a voz baixa, quase inaudível mesmo no silêncio da cozinha.

Em dias de trabalho normal, as vendas oscilam de 30 a 100 refeições. Em datas especiais, como Black Friday, podem chegar ao dobro. "É uma loucura. O pessoal do segundo turno chega e a gente ainda está terminando os pedidos do almoço", diz.

O pedido com as refeições prontas é então finalizado para entrega. Uma vez completo e embalado, é deixado no largo parapeito da janela.

No parapeito também está a campainha acionada por Fátima para avisar um dos motoboys, do lado de fora, sobre a nova entrega.

Passado o horário de pico do almoço, os pedidos rareiam, mas o trabalho não para. Há compras para subir ao estoque, no mezanino da loja; molhos a preparar; carne para guardar e marinar em leite e outros temperos...

Só depois a equipe almoça, por volta das 15h30. Quase sempre a comida é a do próprio restaurante. "Mas às vezes a gente traz de casa ou pede fora, para dar uma variada", diz Márcio. É quando ele tem tempo de assistir ao vídeo do filho, de dois anos, jogando bola na sala de casa.

Depois de almoçar, a equipe ainda faz uma limpeza geral para preparar o ambiente para os colegas que chegam para o segundo turno.

Às 17h, fim de expediente. No pequeno espaço ao lado do banheiro, onde ficam guardadas mochilas e materiais de limpeza, é hora de se arrumar para partir.

Para o segundo turno, a rotina é ainda mais agitada. O número de pedidos costuma ser maior, diz Kaio Nathan Rosalves Barbosa, de 29 anos, um dos ajudantes de cozinha que trabalham à noite, na mesma unidade.

Goiano, pai de duas crianças, Kaio conta que quer mesmo é ir morar em Portugal e ser fotógrafo de moda. "O Brasil não dá mais, não. Muita desigualdade social", diz.

"Em Portugal, ficar rico, não fico. Mas dá para viver bem. Já tenho um irmão e um sobrinho por lá. Só me falta dinheiro para ir."

Pai de três filhos crescidos, o auxiliar de cozinha José Adilson Palmeira dos Santos, de 58 anos, já não tem as mesmas preocupações.

O alagoano chegou a São Paulo em 1989 com emprego garantido "na firma de pintura de um parente" e, de lá, saiu para trabalhar em restaurantes tradicionais de comida árabe.

"Já atendi o Antônio Fagundes, o Romeu Tuma, a Sula Miranda, o Odair José, o Jô Soares..."

Sua preocupação maior hoje é tocar as obras da "casinha lá no norte", em Arapiraca, sua cidade natal, para descansar na aposentadoria. É para onde vai parte do salário de auxiliar de cozinha e o dinheiro de bicos de pintura e pequenas obras que faz durante o dia.

Assim como José, Amauri Ribeiro Loureira, 40 anos, também usa o tempo do contraturno para levantar dinheiro extra. De manhã, trabalha como motoboy. Às 16h, começa o turno da dark kitchen.

Natural de Lorena, Amauri ficou por lá até se casar, há cerca de três anos. Comprou um apartamento na Água Branca, "já quitado", e espera vendê-lo "por um bom preço". Mas, por ora, as economias vão para o leite especial do filho, intolerante à lactose. "Até os dois anos, o Estado fornece. Agora, temos que pagar."

O expediente vai se aproximando do fim por volta das 23 horas.

Mas o motoboy João Paulo Soares da Silva, de 30 anos, ainda tem as últimas entregas a fazer. Fora dos horários de pico, ele trabalha para aplicativos de entrega.

"Aqui é bom, porque temos comida, água e banheiro disponível. Mas os aplicativos rendem mais"

Nas paredes, frases coladas por Lucimara lembram que, longe do hype da tecnologia que embala as startups dos aplicativos, manter a cabeça erguida e sonhar ajudam a encarar a rotina

Até a hora de ir embora.