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"E esse shortinho?": Maior parte das atletas já sofreu assédio no treino

Marina foi assediada no dia em que faria a graduação em Muay Thai Imagem: Arquivo Pessoal

Talyta Vespa

Do UOL, em São Paulo

08/03/2020 04h00

A designer Marina, de 32 anos, lembra com detalhes do dia em que passou, pela primeira vez, por um exame de graduação no Muay Thai. O evento aconteceu há sete anos e a lembrança, ela conta, tem pouco a ver com a alegria da formatura. Durante a prova, cujo aquecimento era uma corrida de rua de oito quilômetros, ela e duas colegas foram assediadas por dois homens.

"Éramos vinte lutadores fazendo a prova. Só que o percurso, para iniciantes, era um pouco menor. Então saímos para correr em grupo, ainda no aquecimento. Em um determinado momento, eu e mais duas atletas ficamos para trás, já que o resto do grupo deveria fazer o caminho mais longo e, depois, alcançar-nos. Foi aí que o pavor começou", relembra.

"Eu vestia um shorts larguinho e um de lycra colado, mais comprido, por baixo. E regata por cima do top exatamente por medo de sair só de top na rua. De repente, um carro com dois homens saiu da faixa da esquerda e se aproximou da calçada. Os dois começaram a seguir a gente, em velocidade reduzida, e a gritar 'Gostosas, hein? E esse shortinho? Vem lutar comigo'. Foi daí para baixo, por alguns minutos", diz.

"Eu senti um medo muito grande e demorei muito para assumir isso. Acho que é a primeira vez que assumo, porque, para mim, é um parto assumir fragilidade. Sinto que tenho obrigação de ser forte, e nem sempre é assim. Aquilo me deixou com tanto medo que, até hoje, lembro de todos os detalhes desse dia: os dois dirigiam uma Fiorino, daquelas com baú atrás, que eu achava o tempo todo que seria jogada ali dentro. O motorista tinha barba, e ambos vestiam uma camisa azul com uma faixa vermelha no braço. Foi apavorante. Assim que os demais atletas nos alcançaram, esses caras voltaram para a faixa da esquerda e foram embora. Foi horrível".

O caso de Marina não é isolado. Segundo uma pesquisa da Opinion Box encomendada pela rede de academias Smart Fit, 54,4% das atletas já sofreu assédio durante ou a caminho dos treinos.

"Quer leitinho?"

Tatiana Moreira, 25 anos, jornalista Imagem: Arquivo Pessoal

Foi o que aconteceu com a jornalista Tatiana Moreira, de 25 anos. Ela, assim como 61,3% das mulheres, deixa, constantemente, de usar roupas confortáveis e frescas por medo de, mais uma vez, ser violentada durante o treino. "Eu fazia meu treino de corrida, um cooper, mesmo, em uma praça perto da minha casa, em São Paulo, quando um caminhão-baú passou por mim", relembra.

"Nele, havia dois homens. Eles começaram a dizer coisas horríveis para mim, a comentar sobre o meu corpo. Como sempre que isso acontece, continuei correndo e fingi que não estava ouvindo. Eles continuaram me seguindo, dentro do veículo, até que um deles se irritou e gritou: 'Quer leitinho? Então toma', e arremessou uma caixinha de leite em mim. Sujou toda a minha perna e meu tênis, eu fiquei sem reação. Me senti suja, um lixo. Eu só queria treinar em paz", conta.

"Era sempre isso: parava para me alongar, vinha algum cara 'alonga aqui comigo'. É muito difícil, cara. Dentro da academia, pelo menos, é um ambiente fechado, então a gente espera que aconteça menos. Ainda assim, não é o caso. Com frequência, um homem me olhava de forma desrespeitosa na academia em que treino; tirava a aliança quando eu chegava, me chamava de 'linda' sem que eu tivesse dado qualquer intimidade. Passei a treinar com uma blusa amarrada na cintura de tanto desconforto", afirma.

"Vai, gostosa"

Jéssica Rossi, 29 anos, advogada Imagem: Arquivo Pessoal

Foi por causa de um constrangimento similar que a advogada Jéssica Rossi, de 29 anos, ficou quase dez sem praticar jiu jitsu —ela voltou há dois anos e, hoje, é faixa azul na modalidade. O motivo que a afastou do esporte por tanto tempo foi o assédio que sofreu por parte de seu treinador, quando tinha apenas 17 anos.

"Era o meu primeiro dia na academia. Eu nasci no interior do Rio de Janeiro, tinha acabado de chegar em São Paulo, era bastante inocente. Durante a aula, o professor me chamou para fazer uma técnica com ele e pediu que eu sentasse na montada [posição em que o atleta se senta sobre a barriga do outro, que está deitado de barriga para cima]. E ele foi pedindo que eu descesse mais até que chegasse na região íntima dele", relembra.

"Como eu nunca tinha treinado e era nova, obedeci, não entendi o que estava acontecendo ali. Até que ele começou a falar 'Vai, gostosa, nossa, que delícia, isso aí, mexe'. Eu fiquei transtornada, desbaratinei. Deveria ter denunciado e enchido a cara dele de porrada, mas me senti tão coagida que nem pensei nisso. Se acontecesse comigo hoje, eu, certamente, o faria. Na hora, saí de cima dele, inventei uma desculpa e nunca mais voltei para a academia", conta.

Depois de um tempo, enquanto conversava com uma amiga que era faixa roxa de jiu jitsu, Jéssica percebeu que podia voltar para a luta sem ter que passar pelo constrangimento que passou. "Eu insistia para ela que tatame não era coisa de mulher. E, finalmente, contei o que tinha acontecido. Por sorte, ela me mostrou que poderia ser diferente e eu decidi tentar de novo. Treino todos os dias, há dois anos, com um time majoritariamente masculino. Sou muito respeitada e não penso mais em largar o esporte".

Na pele da instrutora de esporte

Em entrevista ao UOL Esporte, a professora de Educação Física Letícia Ferreira, de 25 anos, conta como é o assédio da perspectiva do instrutor. As situações, ela garante, são incontáveis. Contudo, uma delas foi especialmente constrangedora:

"Eu trabalhava em uma academia como instrutora de natação. No período da tarde, entrava na água para dar aula para crianças e, logo em seguida, começava a aula dos adultos. Era o tempo de eu jogar uma água no corpo, rapidinho. Os vestiários eram integrados à piscina e, num dia em específico, acabei não levando toalha para a área da piscina. Mas, não me preocupei, afinal percorreria apenas uns 50 metros até chegar ao vestiário", conta.

"Mas fui surpreendida. No caminho, um aluno, que é médico e tem uns 50 anos, me abordou e disse: 'Nossa, professora, você de camiseta não parece ter tanto peito assim. Tá de parabéns'. Fiquei super sem graça; disse que estava atrasada e corri para o vestiário. Quando voltei para a aula, que era com a turma dele, ele passou a aula inteira pedindo ajuda, pedindo que eu fosse mais perto dele. Quando acabou, ele me procurou e disse que eu era muito bonita e gostosa para ser uma profissional de Educação Física, que eu deveria investir em outra profissão", relembra.

"Fiquei em choque e, por ter sido pega de surpresa, não soube muito o que dizer. Falei que amava minha profissão e que precisava sair para registrar alguns dados no computador. Me senti muito mal. E pior ainda por saber que essa foi uma entre diversas situações desrespeitosas. Avisei à minha coordenadora, que me mudou de horário. Com ele, não aconteceu nada".

"Te chupava inteira"

Karoline Coimbra, 28 anos, analista de operações Imagem: Arquivo Pessoal

Além de ter que aguentar os olhares "incisivos" de um colega de malhação, a analista de operações Karoline Coimbra, de 28 anos, foi abordada e desrespeitada pelo mesmo homem, na rua, durante o percurso até a academia. "Eu estava chegando e, na hora de atravessar a rua, esse cara passou por mim e disse bem baixinho 'Nossa, que gostosa. Se eu pudesse, te chupava inteira'", conta.

"Fiquei muito, mas muito puta. Comecei a gritar, falei um monte de palavrão, bem alto para que todo mundo ouvisse. Quando cheguei à academia, só conseguia chorar. Contei para o meu instrutor, mas ele não fez nada. Ninguém me defendeu, e o cara não sofreu nenhuma punição", relembra.

"Daí em diante, encontrava com ele sempre que ia malhar. Aquilo começou a me fazer tão mal que parei de malhar. Me sentia mal só de olhar para ele. Na hora, quando ele falou aquilo, a primeira coisa que passou pela minha cabeça foi analisar a roupa que eu vestia: uma camisa larga e um shorts compridinho de corrida. É inacreditável que a gente ainda se sinta culpada pelo assédio. A culpa não é nossa, nem da nossa roupa".

Reagir para constranger

Gabriela Dutra, 22 anos, promotora de vendas Imagem: Arquivo Pessoal

Cada mulher reage de uma forma diferente ao assédio, conta Gabriela Dutra, que não consegue ficar calada. "Voltava da academia em uma tarde. Quando cheguei no portão de casa, demorei um pouco para encontrar a chave e abrir a porta. Dois homens vinham na minha direção e, quando vi pela sombra se aproximando, percebi que um deles estava prestes a apalpar meu bumbum", afirma.

"Quando ele tentou passar a mão em mim, virei correndo e comecei a gritar, a dizer que ele ia me tocar. Ele, claro, disse que eu era louca, que estava inventando. Depois, passou a me chamar de vagabunda e pedir que eu me enxergasse, afinal, ele jamais passaria a mão em uma mulher como eu. Fui para cima dele e, ele, para cima de mim, para me agredir. Alguns comerciantes ao redor o contiveram, por sorte, senão ele teria me agredido".

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