Do próprio bolso

Único brasileiro tricampeão olímpico no vôlei, Zé Roberto é treinador e patrocinador de time da Superliga

Demétrio Vecchioli Do UOL, em São Paulo Igor Amorim/saopaulo.net

José Roberto Guimarães abre a caçamba da picape e puxa uma raqueteira da linha Novak Djokovic. Tira uma raquete de dentro dela e vai logo avisando: "Essa aqui é especial. Sabe a quem pertenceu?". O interlocutor não pesca a dica. "Ao Djokovic. As cordas são chumbadas, então ela é mais pesada", explica o treinador, fazendo movimento com o punho para arriscar: "Deve estar com umas 360, 365 gramas".

A filha Anna Carolina já ligou duas vezes para perguntar se ele não vai almoçar, uma vez que todo mundo já comeu, mas Zé Roberto quer continuar papeando. Ao lado da raqueteira há uma manta para hipismo, sua nova paixão. Estreou em setembro na modalidade e, de cara, foi vice-campeão brasileiro na categoria Master B. Para transportar ele mesmo os cavalos, tirou carteira de motorista para dirigir caminhão.

Aos 66 anos, o técnico, único brasileiro tricampeão olímpico, poderia estar montando a cavalo, trocando experiências com a molecada que joga tênis no seu centro de treinamento, cuidando dos netos ou concentrado em estudar as rivais da seleção brasileira feminina de vôlei nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Mas continua acordando todos os dias às 6h20 para treinar as meninas do São Paulo/Barueri, equipe que, segundo o próprio, tem 99,99% de chances de não ser campeã da Superliga.

O pior é que não é que Zé Roberto está trabalhando de graça, como acontece desde o início do projeto em 2016. Como o São Paulo até agora não honrou seu compromisso de patrocinador e nenhuma empresa coloca dinheiro direto no time, é o treinador quem paga todas as contas do São Paulo/Barueri desde o início da temporada. Todos os salários, almoços, jantas, banhos, todos os lençóis limpos. Tudo.

Igor Amorim/saopaulo.net

Jogadoras de Barueri estavam migrando

A derrota para a China nas quartas de final da Olimpíada do Rio-2016, diante de um Maracanãzinho lotado, semanas antes, ainda tirava o sono de Zé Roberto quando ele foi a Uberaba assistir a um treino da seleção sub-20 que jogaria o Campeonato Sul-Americano da categoria. Se interessou por algumas jogadoras e perguntou sobre elas para o técnico Hairton Cabral.

Na conversa, Zé Roberto descobriu que sete jogadoras formadas em Barueri, cidade na Grande São Paulo, onde ele mora e tem um centro de treinamento desde 1994, estavam nas seleções de base do Brasil. Mas nenhuma jogava pela cidade, que um ano antes havia encerrado o projeto de base no vôlei. A maioria havia migrado para o Bradesco, projeto longevo de formação de atletas que funciona na vizinha (e rival) Osasco. No primeiro dia útil seguinte, o treinador estava no gabinete do então prefeito de Barueri, Gil Arantes, pedindo que o projeto fosse retomado e se comprometendo a coordená-lo.

Atualmente, jogam a Superliga pelo time Diana, Jack e todas as demais titulares da campanha do título sul-americano sub-20 de 2016: Karina, Glayce, Lorena, Nyeme e a MVP (jogadora mais valiosa) Lorrayna. E também Jheovana, Kisy, Daniela e Larissa, campeãs do mesmo torneio dois anos depois.

Washington Alves/COB

Inspiração italiana

Zé Roberto gosta de precisão. Ensina à exaustão a mecânica de cada movimento e, quando conta uma história, não quer correr o risco de sua memória falhar. Recorreu a Jack para lembrar de todas as meninas do time que estiveram em Uberaba com ela e, depois, interrompeu a sobremesa do preparador físico Fernandinho para que ele me confirmasse que as seleções de base passavam pelo menos quatro meses por ano treinando e excursionavam pela Europa e pela Ásia para ganhar rodagem.

Esse tempo de vacas gordas acabou. A CBV (Confederação Brasileira de Vôlei) continua tendo um orçamento anual que beira os R$ 100 milhões, mas o dinheiro que sobra para a base é pouco. Como consequência, as horas de treino foram reduzidas pela metade. "E aí a gente não teve mais tão bons resultados, mas isso é óbvio. Se não treina, não tem resultado."

"É preciso aumentar o número de meses de trabalho, que é o que vai melhorar nossa qualidade e nossa competitividade lá fora. A Itália fez o Club Italia, que joga hoje a Série B do Campeonato Italiano, só com jogadoras jovens", conta Zé Roberto sobre a inspiração para o projeto em Barueri.

O Club Italia é um projeto de mais de 20 anos idealizado pelo argentino Julio Velasco, que se senta ao lado de Zé Roberto no Olimpo dos treinadores de vôlei. O projeto do treinador brasileiro, porém, tem uma diferença gritante da sua inspiração europeia: o dinheiro. Na Itália, a federação nacional paga a conta. No Brasil a verba está saindo do bolso de Zé Roberto. Ele não fala publicamente em valores, mas o custo do time, por temporada, chega na cada de milhão de reais.

Wander Roberto/Inovafoto/CBV

Pandemia tirou dinheiro do projeto

Quando o projeto começou, em 2016, Zé Roberto também era técnico e financiador. A ideia era começar a jogar, conquistar os primeiros resultados e passar a receber apoio. Por algum tempo, aos trancos e barrancos, deu certo. O time fechou parceria com o São Paulo, clube do coração do treinador, e teve patrocinadores como a Hinodê.

Os problemas começaram com a pandemia. A temporada e o dinheiro acabaram antes do previsto. Zé Roberto tirou do bolso para quitar os salários e permitir que o clube se inscrevesse para a atual temporada. Desde então não pingou nenhum real na conta da equipe, que recebe material esportivo da Hummel e fechou contrato com a Prevent Senior, que zera os custos com a saúde das atletas em meio à pandemia.

"Eu vejo que a saída é da iniciativa privada, mas hoje as empresas estão com seus problemas, principalmente por causa da pandemia. Tiraram um pouco o pé. Os clubes de futebol, que são times de camisa, todos estão com problemas", analisa, ressabiado e pouco esperançoso.

Segundo ele, as contas fechariam se o São Paulo tivesse honrado o compromisso firmado antes do início da temporada. O clube é, na prática, um patrocinador da equipe, mas não está pagando o acordado. Zé diz que confia que a situação será resolvida, mas já prevê "entubar" parte do prejuízo.

O São Paulo Futebol Clube foi contatado e disse que não se manifestará sobre a reportagem.

Esse projeto está vivo por uma questão de amor ao esporte, por uma questão de acreditar que um dia tudo vai ser melhor, por acreditar nas pessoas, por trabalho, dedicação, atitude. Eu não ganho nada do projeto. Boto do bolso. Estou aqui porque eu gosto, vejo os olhos de cada uma. Levanto cedo porque sei que eu preciso estar aqui."

Zé Roberto, sobre a condição de patrocinador do São Paulo/Barueri

Eu não quis incomodar o (presidente Julio) Casares em função do time de futebol, de toda essa pressão que ele está vivendo: começa 2021, time perdendo, manda o treinador embora... enfim. Por ser são-paulino eu não quero ir para as vias de fato, quero conversar com o Casares, esperar a resposta."

Zé Roberto, sobre acordo não cumprido pelo São Paulo

Reprodução/Instagram @saopaulo_barueri/Igor Amorim Reprodução/Instagram @saopaulo_barueri/Igor Amorim

"Não posso ficar bancando o time"

Zé Roberto diz que não liga para dinheiro e nem sabe quanto tem na conta corrente. Até comprou o cavalo que o levou ao vice-campeonato nacional master, mas pechinchou e parcelou em três vezes. Ao contar que deu uma palestra uma semana antes, vira os olhos para cima como quem agradece a Deus pelo dinheiro que fará diferença no fim do mês. O treinador mais vitorioso do esporte brasileiro sabe que não precisa estar passando por isso.

"Eu não consigo levar (para a temporada 21/22). Eu não dou conta. Eu não posso bancar de novo. Não posso fazer isso com a minha família. Eu posso trabalhar de graça, posso ceder o espaço, mas não posso ficar bancando o time. Eu não tenho cabeça para isso mais", alerta.

Em Zé Roberto, a pessoa física e a jurídica se misturam. Ele é o proprietário do centro de treinamento Sportville, encravado em um bairro humilde de Barueri, onde as jogadoras treinam e moram (quase todas). Quem cuida das finanças e do marketing administrativo do Sportville é a dona Alcione, sua esposa. Carol, uma das filhas, é responsável pelo time e pelo marketing da equipe. Fernanda, a outra, pela cozinha e pela relação com o Instituto Tênis, que ocupa parte do CT.

O neto Felipe, de 11 anos, frequentava o local para treinar tênis, mas recentemente perdeu o interesse pelos treinamentos. Zé não vê qualquer relação entre a desistência do garoto e suas cobranças para que a criança mantivesse a disciplina e não se atrasasse. A tia Carol discorda.

Alexandre Arruda/CBV

Dor ao ver pupilas nos rivais

No ginásio do Sportville, treinam jogadoras ainda muito jovens. Exceto duas mais velhas (Dani Terra, de 26 anos, e Maira, de 25), todas ali têm, no máximo, 22. O custo do time é baixo perto dos grandes da Superliga. Mas, na quadra, a equipe tem dado trabalho. No returno, venceu três dos cinco rivais em tese mais fortes: Osasco, Sesi/Bauru e Sesc RJ/Flamengo.

"O que mais me inspira é como o time está jogando. Têm me inspirado muito a forma, velocidade, a atitude. Isso me deu uma coisa que você não faz ideia. Não importa o ganhar ou perder. Eu quero que elas joguem bem, que elas tenham atitude e mostrem que têm conteúdo, que elas estão evoluindo. Eu estou super entusiasmado com o que elas estão apresentando", diz Zé Roberto.

Olhar suas pupilas jogando pelo time adversário é a "pior parte" da profissão, diz Zé. "Eu fiquei super triste quando a gente jogou com o Fluminense, de estar jogando contra a Mari. Muito, muito triste. Eu tenho um sentimento pela Mari... Ela começou a jogar comigo (quando) ela tinha 16 anos, idade que muitas meninas chegam aqui. Ela foi comigo muitos anos, eu levei ela para a Itália, depois para a seleção, depois cortei a Mari. A gente teve muita coisa juntos. E hoje a Mari está com 37 anos, eu vejo ela do outro lado, uma mulher, jogando em outro time. Fiquei triste", revela.

Wander Roberto/Inovafoto/CBV Wander Roberto/Inovafoto/CBV

Aposentadoria: "Nem pensar"

Zé Roberto poderia estar infeliz. Seu time é apenas o sexto colocado da Superliga, tem chances pequenas de ser campeão e mantê-lo jogando está consumindo as economias da família Guimarães. Mas a verdade é que ele está em uma das melhores fases da carreira.

"Eu gostaria só de continuar fazendo as coisas. É um projeto que me completa. Se eu puder continuar dando essa oportunidade através do vôlei, eu acho que eu consigo atingir essa plenitude, de ajudar as pessoas através do vôlei. É isso que me faz feliz", ele diz.

"Eu gosto de trabalhar. Hoje eu estou mais tranquilo, mais sossegado. Eu aprendi a conviver melhor, eu aceito mais as coisas. Estou numa fase da minha vida em que eu me sinto uma pessoa melhor", afirma.

Zé só fica "louco", segundo suas próprias palavras, quando alguém quer falar com ele sobre aposentadoria. "Quero continuar trabalhando porque assim eu me sinto vivo", explica. Seu futuro na seleção brasileira depois dos Jogos de Tóquio, porém, é incerto. Não por vontade dele.

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