Hélia Souza não existe mais

Fofão, a garota insegura que virou campeã olímpica de vôlei e usou um apelido para vencer na vida

Fofão Em depoimento ao UOL, em São Paulo Lucas Seixas/UOL

Eu quero sempre fazer as coisas da melhor maneira possível. Às vezes eu não conseguia ser igual às minhas irmãs que tinham outros objetivos. Enquanto eu joguei vôlei, eu não consegui aproveitar a vida. A minha cabeça era voltada 24 horas por dia para o meu corpo, alimentação, descanso.

Talvez tenha sido a maneira como meu pai me criou. Eu não relaxava, não aproveitava e, quando vi, o tempo tinha passado. Parei um ano da minha vida, aos 39, para pensar se queria ficar no vôlei, se sentiria saudades. Naquela época, não passou na minha cabeça planejar ter um filho. É uma coisa que a gente, eu e meu marido, deixou acontecer.

Eu fui campeã olímpica com 38 e parei de jogar com 45. As coisas aconteceram muito tarde na minha vida. Quando parei de jogar, aos 45, a gente tentou e não aconteceu. Então foi algo que a gente desencanou e acabou não sendo mais prioridade na nossa vida. Quando conheci o João Márcio, deixei claro que minha prioridade na vida era o vôlei.

Eu tive que fazer escolhas e entender o que estava acontecendo comigo deixando claro para o meu marido. Quando não aconteceu, a gente também ficou bem resolvido em relação a isso É uma escolha que tive que fazer. E eu tive filhos de todas as idades. Meus sobrinhos supriram essa fase de não ter filho. Acabou que esse sentimento eu passei tudo para meus sobrinhos.

Meu nome é Hélia Rogério de Souza Pinto, mas ninguém me conhece assim... nem eu mesma me reconheço por esse nome. A Hélia não existe mais, eu tive que tirá-la de dentro de mim quando minhas bolas começaram a virar na quadra. Deixei de ser a Helinha insegura e anêmica. Eu virei a Fofão, a levantadora, a campeã olímpica.

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Eu sou assim por causa da minha família. Quando você tem vários irmãos, é difícil achar qual é o seu lugar no meio de tanta gente. E eu tinha de procurar no meio de sete! Mas sempre falo que os dedos das mãos não são iguais. São sete filhos e cada um tem uma personalidade diferente. A única coisa em comum foi o esporte. Todos poderiam ter ido pra um time profissional, mas o foco de cada um não era o mesmo.

Meu foco e minha dedicação eram diferentes. Eu me cuidava, fazia de tudo pra comer direito, dormia cedo e seguia à risca a cartilha de seriedade do "seu Sebastião", no caso, meu pai. Até por medo de não cumprir algo dessa cartilha, eu fui me fechando.

Parecia que sempre que eu resolvia fazer algo errado, eu era descoberta. Eu não era perfeitinha, bem longe disso, mas pra dar um exemplo: uma vez eu fui colar na escola e o caderno caiu de tanto que tremia, foi um desastre. Se eu saía com os amigos, contava as horas pra voltar e ir dormir logo. Eu não vivia, só pensava em fazer o certo para dar certo. E eu ainda nem sabia o que era "dar certo".

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Meu pai era sapateiro de profissão. Minha mãe, dona de casa. Nós morávamos numa casa com cozinha e um quarto. Um dia, ela e meu pai estavam em casa e começaram a ouvir estalos. Só deu tempo de dizer "sai daqui que a casa vai cair". E caiu. A maior parte. Pegou a cozinha toda.

A gente ficou sem teto. Perdemos muitas coisas. Naquele dia, a gente foi chegando em casa sem entender nada. Um dos meus irmãos entrou na casa do vizinho sem querer porque não percebeu que nossa casa tinha caído. Ficamos só na parte onde a gente dormia, os nove improvisados, mas felizes porque ninguém se machucou.

Eu lembro de já estar jogando no Centro Olímpico na época, com 13 para 14 anos. Meu pai não deixou ninguém colocar a mão na massa pra ajudar a reconstruir a casa. Começou a obra no dia seguinte e fazia tudo sozinho. Mesmo sem entender nada de obra. Não deixava que meus irmãos ajudassem. Se eles bobeassem, até as vigas ele erguia sozinho. Foi difícil reerguer tudo, mas depois que terminou, poderia vir o que fosse na casa que não cairia mais de tão firme que ficou.

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Essa história da casa explica bem a personalidade dele. Muito fechado e rígido, era sempre do jeito dele. Estudar e treino. Não me deixava namorar. O João Márcio teve que pedir permissão para ele. No final, se davam bem e conversavam bastante. Eu também me dava muito bem com ele. Acho que porque eu era a que mais seguia as regras.

Ele não gostava de apelido, não dava abraço e nem beijo. Quando eu falei que iam me chamar de Fofão, ele quase enfartou. Entre os atletas têm aquela mania de "oi, tio". Ele falava: " tio não, seu Sebastião". Ele me chamava de Hélia, Helinha. Nunca me chamou de Fofão.

Ele só ficou mais relaxado quando eu me firmei como atleta. Eu tinha uns 19 anos e nunca vou esquecer de um dia que eu estava na seleção e cheguei no aeroporto. Ele foi me buscar de terno novo. Terno novo e chapeuzinho. Ele sempre usava chapeuzinho. Naquele dia, me deu um abraço, tamanha era a alegria e o orgulho.

A minha mãe me contou que ele foi comprar aquele terno só para me receber. Porque ele viu que eu estava encaminhada na vida. Foi a partir daí que a gente passou a conversar mais. Eu tinha sempre que pedir a benção. Falava com ele no telefone todos os dias.

Desde o primeiro dia em que virei atleta, meu salário ia todo para os meus pais. Eu queria ajudar na casa e nas despesas. A carreira começou a dar certo. Foi a maior alegria. Do dinheiro que tinha, não ficava com nada. Eu me sentia responsável por todos.

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Quando comecei no Centro Olímpico, no meu primeiro teste, eu era atacante. Só na mudança para o Pão de Açúcar, aos 17, que o Zé Roberto Guimarães quis me fazer levantadora. Foi horrível. O Zé queria me mostrar que para ser levantadora eu não poderia ser a fraquinha que eu era e nesse momento eu pensei: "Se o vôlei é isso, eu não consigo".

Meu pai me convenceu de que era isso ou voltar para a escola e mudar de profissão. Foi a hora que eu aceitei que eu tinha que tirar a Hélia de dentro de mim, porque a Hélia não teria força, mas a Fofão teria.

Por isso eu costumo dizer que o Zé Roberto me lapidou, e o Bernardinho foi quem me deu confiança. Os dois são muito importantes para mim e até foram padrinhos do meu casamento, mas um é bem diferente do outro. Eu tive episódios de discussões com os dois, sabia?

Vou começar pelo Bernardo. Um dia ele me chamou de burra durante um jogo da seleção. Tudo tem um limite e eu não aceitei. Eu retruquei com ele e aí já era.

A minha cabeça saiu do jogo. Isso nunca tinha acontecido comigo. Comecei a ficar com raiva do técnico. Ele deu as explicações dele, mas na hora eu nunca ia aceitar.

Ficou naquilo e acho que ele não queria ter falado daquele jeito conhecendo a pessoa e o respeito que ele tem por mim. Tenho certeza que ele se arrependeu, porque viu que me machucou muito. Acho que ele nunca mais falou aquilo na vida dele pra ninguém.

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Com o Zé Roberto a história foi maior e envolveu eu, ele e dois ciclos olímpicos. Primeiro, eu deixo claro que nunca duvidei da minha qualidade como jogadora e sempre treinei pesado para que ninguém duvidasse também. É que, pra chegar nesse assunto, tenho que lembrar os sete anos em que fui reserva da Fernanda Venturini.

Nós somos do mesmo ano, mas a Fernanda é mais experiente. Passou por seleções infantil, juvenil. Eu, não. A gente foi trabalhar junto mais adultas e eu sempre tive consciência de que ela estava um patamar acima. Fernanda e eu não somos amigas íntimas, apesar de ela ter sido madrinha do meu casamento, ao lado do Bernardo. Se chegar aqui, eu falo "oi" converso, mas é aquela coisa de colegas. Mas profissionalmente, fomos a melhor dupla.

Eu tinha a Fernanda como referência dentro de quadra. Não tenho vergonha de falar que amadureci observando o que ela fazia. Mas também tive poucas chances enquanto isso acontecia. Desses sete anos, tudo bem ser reserva nos primeiros quatro ou cinco.

Depois, eu estava igual, mas as oportunidades continuavam a não aparecer. Esses anos em que eu sentia que estava no mesmo nível foram frustrantes.

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Depois da Olimpíada de Atlanta, em 1996, a Fernanda deixou a seleção e eu virei titular. Jogamos Sydney e ganhamos o bronze, mas aí veio Atenas-2004 e tudo mudou de novo. O técnico era o Zé Roberto Guimarães. A Fernanda voltou para a seleção e eu voltei para a reserva. Foi um momento em que eu me senti mal por ter ido e não ter sido utilizada. Era como se eu tivesse retrocedido no tempo.

Eu não queria mais saber de seleção depois daquela Olimpíada, mas mesmo assim o Zé me convocou de novo, pediu pra voltar. Fiquei "será que é verdade"? Eu estava no shopping quando o telefone tocou. Era o Zé. Lembro de ter pensando "o que esse cara quer comigo"? Mas foi um dos únicos momentos em que pensei em mim e questionei se deveria ir.

Eu aceitei, não porque o Zé estava pedindo, mas porque pensei em mim. "Eu vou e a gente não vai errar". Eu não queria provar nada, eu já era a Fofão, mas eu queria mostrar que eu era a Fofão de 2008 e não a de 2004, reserva daquela seleção que tomou a virada da Rússia mesmo depois de estar vencendo por 24-19 no terceiro set.

O final de 2008 todo mundo sabe que foi bem diferente, com o ouro. Acho que 2004 foi um aprendizado para o Zé e para mim. Eu nunca tive raiva e nem mágoa dele. Eu não posso ter raiva de alguém que me transformou. Atenas foi um momento isolado.
Mesmo antes de 2008 o nome da Fernanda Venturini foi falado novamente. Quando soube, eu só pensei: "Isso é brincadeira, né?". Não era.

O Zé Roberto foi para Espanha, onde eu jogava, e confirmou. É um assunto que, pra mim, não tinha nem que ter chegado. Eu sofri de 2005 a 2008, chorando e ralando com o time embaixo de chuva e de sol, e chega em 2007 e a pessoa fala que quer ir pra Olimpíada? Eu achei injusto. E não só comigo.

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Quando ele falou isso, a única coisa que falei foi que não achava justo e que, se fosse assim, eu estava fora. Quando ele chegou no Brasil, falou que ela não estaria convocada e falou os motivos. Eu não tive influência. O Zé sempre fez o que deu na cabeça dele. Eu dei minha opinião. Se ele quisesse, ele ia fazer do jeito dela.

Eu demorei para ter a atitude de pensar em mim, pensar na pessoa Fofão, ser mais egoísta mesmo. Eu era o vôlei, a atleta, a filha que ajudava em casa, a irmã, a tia. A Fofão foi ficando de lado e eu achava que era muito feliz assim.

Eu sempre tive na minha cabeça que eu fui uma pessoa privilegiada de ter tido uma carreira como atleta e sempre quis ajudar todo mundo. Acabei achando que isso era obrigação. Meu pai falava: "Quando você puder, ajuda seus irmãos". Ver minha família feliz era meu objetivo.

Mas deixar a minha família como prioridade sempre ficou pesado. Eu não tinha a minha própria vida. Abri mão de tudo. Queria viajar numa folga, mas falava "vou pra casa do meu pai" e não viajava. Eu não comprava nada pra mim. Foi difícil me desligar. Foi difícil aceitar que eu merecia aproveitar a vida.

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Só quando fiquei noiva do João Márcio, meu marido, comecei a pensar mais em mim. Eu me casei em 2004 e esse era um dos únicos motivos de discussão entre nós. O fato de eu só pensar nos outros.

Com as redes sociais, comecei a receber muita mensagem de adolescente. Por que não responder um "oi"? Quando você responde, a pessoa se sente importante. Passaram a me mandar coisa de vôlei. Umas querem ser jogadoras, falam que eu as inspirei. Eu converso com elas. Se eu consigo ajudar com uma palavra, por que não?

Eu parei de jogar muito tarde, com 45 anos. Eu não me programei pra isso nunca imaginei que seria assim e, agora é aproveitar e ver o que a vida tem pra me oferecer. Hoje eu tenho 50 anos

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Os Jogos Olímpicos de Tóquio, originalmente marcados para agosto de 2020, foram adiados para o ano que vem. Com todo o mundo impedido de sair de casa, os atletas tiveram de parar, pensar e traçar planos para recomeçar. Para marcar essa etapa, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, vai levar até você relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro que devem brilhar no Japão.

A primeira edição teve o campeão olímpico do salto com vara de 2016 Thiago Braz, que fez um relato sincero sobre relacionamentos, como o que está reconstruindo com seus pais, e amizades, como as com o saltador Augusto Dutra, o treinador Elson Miranda e o fisioterapeuta Damiano Viscusi, que morreu em 2017.

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