Pioneira

1ª mulher faixa coral do jiu-jitsu exalta herança indígena e ensina defesa pessoal na ONU

Adriano Wilkson Do UOL, em São Paulo Diego Bressani/UOL

Em março de 2016, o estudante de biologia Vinicius Neres chamou uma colega de curso para uma conversa em um dos laboratórios da Universidade de Brasília (UnB). Inconformado com a recusa de Louise de manter um relacionamento com ele, Vinicius a agarrou pelo pescoço e pressionou contra seu rosto um pano com clorofórmio. Depois que ela desmaiou, Vinicius abriu sua garganta e a fez ingerir 200 ml da substância, uma dose fatal.

Vinicius levou o corpo de Louise a um matagal perto da faculdade, jogou álcool e incinerou uma parte de seu rosto e sua genitália. Ela tinha 20 anos. No dia seguinte, Vinicius, de 19, confessou o crime com uma tranquilidade que chocou a polícia e os jornalistas.

Chocou também Yvone Duarte, que assistia atônita a mais um caso de feminicídio na cidade. Quando professores da UnB começaram a pensar em formas de combater a violência contra as alunas, que vinha aumentando nos campi da universidade, o telefone de Yvone logo tocou. Do outro lado da linha, uma professora do curso de psicologia a convidava a formatar um curso de defesa pessoal para as acadêmicas. "Quando tudo dá errado, a luta física é a última chance que temos de escapar de uma situação dessas", disse Yvone.

Desde então, ela vem ensinando mulheres e pessoas LGBTQIA+ a se defender da violência, com técnicas que desenvolveu em quatro décadas treinando jiu-jitsu. O curso chegou à ONU, onde ela orienta funcionárias que vão trabalhar em zonas de conflito. Nascida em Boa Vista, Roraima, e descendente de macuxis e wapichanas, Yvone foi a primeira mulher a se tornar, em 1990, faixa preta de jiu-jitsu, um esporte centenário que sempre repeliu a participação feminina.

Agora, aos 58 anos, avó e feminista, ela se tornou a primeira a vestir a faixa coral (vermelha e preta), a maior graduação já conquistada por uma mulher na história da modalidade.

"Já vivi o jiu-jitsu de várias formas, como atleta, como mãe, como professora. Hoje vejo o jiu-jitsu como uma forma de empoderar as mulheres, torná-las mais seguras e confiantes. Isso virou uma espécie de missão pra mim."

Yvone Duarte, primeira faixa coral do jiu-jitsu

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Superou veto dos Gracie e virou a 1ª faixa preta em 1990

A trajetória de Yvone no jiu-jitsu começa na primeira metade dos anos 80, quando ainda adolescente saiu de Roraima para viver no Rio com os irmãos. A academia do mestre acreano Osvaldo Alves, antigo aluno de Carlos Gracie, um dos fundadores do esporte, abriu um espaço para as mulheres treinarem, e Yvone fez parte da primeira equipe feminina de jiu-jitsu de que se tem notícia.

A participação feminina na luta era um tabu, mantido principalmente pelos patriarcas da família Gracie, que não permitiam que as mulheres Gracie praticassem o esporte a sério. Em 1985, Rickson, filho de Hélio Gracie, conseguiu vencer a resistência do pai e anunciou o primeiro campeonato feminino da modalidade no Rio. As atletas de Osvaldo Alves ganharam em todas as categorias. Campeã, Yvone começou a pavimentar seu caminho no esporte.

Cinco anos depois, ela se tornou a primeira mulher, de acordo com os registros da Confederação Brasileira de Jiu-jitsu, a conseguir a faixa preta.

"A nossa academia tinha um espaço legal pra gente e sempre foi muito democrática. Iam desde os motoqueiros dos Hell's Angels ao Luiz Fux, atual presidente do Supremo."

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No Rio, treinou com Luiz Fux e depois o encontrou no STF

Na época, Fux ainda não era o presidente do STF e nem ministro da corte, mas já era magistrado. "Ele era o cara que discursava nas nossas festas de final de ano", lembra Yvone. Aos 68 anos, Fux é um dos 17 brasileiros portadores da faixa vermelha e branca, um grau acima da coral.

Anos depois, os ex-parceiros de treino se encontraram em Brasília. Funcionária do Conselho Federal de Psicologia, Yvone marcou uma audiência com o ministro. Ao chegar ao Supremo, foi barrada por uma secretária de Fux porque estava sem o dress code habitual dos interlocutores do juiz. "Diz pro Fux que é a Yvone e que o meu terninho é o quimono", lembra ela, divertindo-se. "Ele me ouviu lá da sala dele e autorizou minha entrada."

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Em Brasília, deu aula pra PM e carona para Fernando Gabeira

Durante muitos anos, Yvone Duarte conciliou a carreira de atleta e professora com a de assessora parlamentar. Deu aulas no curso de formação da Polícia Militar do Distrito Federal, o que ajudava a complementar sua renda da Câmara. Formada em serviço social, ela trabalhou no gabinete de dois deputados, ex-militantes da luta armada contra a ditadura: Sidnei de Miguel e Fernando Gabeira, do PV (Partido Verde).

Como o ambientalista Gabeira só andava de bicicleta, quando precisava fazer uma viagem mais longa, pedia carona à assessora. "Te dou carona, mas tem um problema: meu carro é um Fusca e a placa está presa com uma corrente", ponderava ela. "Ô Yvone, não tem problema, eu sequestrei o embaixador com um Fusca", respondia Gabeira.

Em 1969, Gabeira e outros 11 militantes sequestraram o americano Charles Elbrick no Rio, um dos mais duros golpes no regime militar.

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Nos 15 anos como assessora na Câmara dos Deputados, a faixa preta viveu situações desagradáveis. "Eu estava subindo uma escada, e um deputado passou a mão na minha perna", conta. "Eu empurrei e falei: 'Não faça isso'. Ele disse: 'Nossa, você não precisa ser tão violenta'. E jogou a violência pra mim, que estava me defendendo."

Ela acredita que sua capacidade de reagir rapidamente a um assédio foi construída ao longo dos anos de treino no tatame, em que ela aprendeu a ter uma relação diferente com o próprio corpo.

"Essa tentativa de sempre nos colocar nesse lugar de que não podemos responder, de que o nosso corpo não é um instrumento de defesa, esse conceito o jiu-jitsu pode contribuir pra destruir. Como ferramenta de empoderamento de mulheres e pessoas LGBT, o jiu-jitsu cumpre essa função educativa. O deputado nunca mais fez nenhuma tentativa."

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Tempo de serviço e mérito definem cor das faixas

O sistema de graduação do jiu-jitsu não é trivial. Crianças e adolescentes de 4 a 15 anos evoluem da branca à verde. A partir dos 16 anos, o praticante começa com a azul e pode chegar à preta. Ao conseguir a preta, o atleta sobe sete graus até chegar na vermelha e preta, onde está Yvone. O oitavo grau é a vermelha e branca. Depois disso, há a faixa vermelha de nono grau e de décimo grau, essa última ostentada apenas pelos patriarcas dos Gracie: Carlos, Gastão, George, Hélio e Oswaldo.

Diferente do judô, onde há um exame de troca de faixas, no jiu-jitsu o mestre tem a atribuição de decidir quando um aluno está preparado para avançar na graduação. São levados em consideração critérios como participação em campeonato, títulos, contribuição para o esporte e tempo de prática.

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Avó e feminista, combate assédio no tatame

Mãe de Pedro (35 anos) e Flávia (24), e avó de Felipe (2), Yvone se considera feminista e defende que atletas e professores acusados de violência contra a mulher sejam afastados de suas funções.

Nos anos 90, ela viveu uma situação que nunca esqueceu. Yvone foi uma das lideranças responsáveis por reorganizar a federação de jiu-jitsu do Distrito Federal, a pedido de Carlinhos Gracie. Grávida, estava reunida com outros membros da federação quando chegou uma denúncia de que um professor havia estuprado uma aluna. Enquanto os lutadores homens faziam pouco caso da denúncia, Yvone levantou a voz.

"Não é porque eu sou mulher, mas esse professor no mínimo tem que ser suspenso, não pode inscrever aluno no próximo campeonato e não tem condição de dar aula", disse ela. Os outros concordaram, mas não encaminharam a suspensão. No dia seguinte, Yvone deu à luz sua filha e acabou se afastando da política da federação.

O professor acusado de estuprar uma aluna nunca foi punido. "Outro dia soube que ele está dando aula nos Estados Unidos", disse ela.

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Macuxi, Wapichana e orgulhosa de ser indígena

Em seu perfil no Instagram, Yvone Duarte costuma exaltar sua ascendência macuxi e wapichana, dois povos indígenas que habitam o extremo norte do país. No Kuarup, festejo fúnebre das etnias que habitam as margens do rio Xingu, em Mato Grosso, Yvone vê semelhanças com o jiu-jitsu. Em especial no rito do Huka Huka, em que guerreiros se enfrentam tentando derrubar uns aos outros.

"Na minha família todos sabemos que somos macuxi e wapichana. Roraima é uma grande aldeia, onde os brancos tentam fazer com que a gente assuma outra cultura. Mas na verdade os brancos bebem da nossa cultura. Todos tomam açaí na cuia e aprendem a nadar no igarapé. Eu andava de canoa nos afluentes do Rio Branco, pescando com meu pai. Meu avô colhia castanhas pra sobreviver."

"Quando eu fui parir, minha avó disse: 'Minha filha, imagine que você está segurando um pé de ingá. Eu tive 12 filhos e sempre imaginei que estava segurando um pé de ingá. Pense nisso e expulse esse menino que ele nasce com saúde.'"

Yvone pensou no pé de ingá. O parto de Pedro durou apenas 45 minutos.

"Somos todos índios, tudo parente. Uma das forças que sinto quando eu entro no tatame é minha ancestralidade."

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