Virou passeio

Antes de vencer na Bombonera em 2003, Paysandu visitou museu do Boca pra conhecer barulho da torcida

Adriano Wilkson Do UOL, em São Paulo Pedro Nuin

Os torcedores e os turistas não devem ter entendido nada quando viram um ônibus parar na entrada do museu e dele sair o time que enfrentaria o Boca Juniors pelas oitavas de final da Libertadores, no dia seguinte. Era uma quarta-feira, 23 de abril de 2003, e os jogadores do Paysandu tinham acabado de treinar para o jogo mais importante da história do clube. Entrariam em campo como os azarões em seu primeiro torneio internacional justamente contra o Boca, que àquela altura já havia sido campeão da Libertadores quatro vezes.

Os paraenses vestiam o uniforme de treino e não tinham tido tempo nem de tomar banho depois de sair do campo. Mas o técnico Darío Pereyra, uruguaio de vasta experiência internacional, sabia que se o Paysandu quisesse manter vivo o sonho de vencer o Boca, era preciso entender o Boca.

No "museu da paixão boquense", os jogadores compraram souvenirs, tiraram fotos e passearam como turistas. Entraram em uma instalação no formato de uma enorme bola, onde viram um filme em telas de 360 graus que mostravam os jogadores do Boca entrando no estádio da Bombonera sob o som ensurdecedor da torcida local. Na véspera das oitavas, o Paysandu conheceu o Boca através dessa experiência virtual.

No dia seguinte, o Boca conheceria o Paysandu através da vitória brasileira inesperada, dentro de um estádio lotado, mesmo tendo dois jogadores expulsos, um jogo até hoje lembrado como uma das façanhas mais incríveis da história da competição. A Libertadores-2022 já está acontecendo e para os brasileiros começa na terça-feira que vem, quando o Fluminense enfrenta o Millonarios em Bogotá.

"Isso nos ajudou a tirar um pouco da ansiedade", disse o atacante Iarley, que esteve no museu do Boca em 2003 e fez o gol da vitória na Bombonera. O UOL relembra a trajetória daquele time, que viveu a até hoje única participação de um representante do Norte do país na Libertadores.

Pedro Nuin
Reprodução/La Bombonera é Nossa
Jornais de Belém comemoram classificação do Paysandu para a Libertadores

"O pessoal do Boca dizia que ia meter de 8 na gente"

Além da visita ao museu argentino, o Paysandu se viu motivado pelo clima de "já ganhou" que cercou a partida. Se você olhasse somente a tabela de classificação, o time paraense poderia até ser considerado favorito: estava invicto, tinha se classificado em primeiro de seu grupo com uma rodada de antecedência.

Mas o Boca tinha a camisa mais pesada, como se diz. Classificado em segundo de seu grupo, era empurrado pela empolgação da torcida da casa diante de um adversário menor. "O fator mais importante foi o que se falava na imprensa", disse o atacante Robson, o Robgol, um dos artilheiros do time.

O pessoal do Boca dizia que iam meter uma goleada de 8 na gente, que já iam conseguir a classificação em Buenos Aires. Mas sabíamos da nossa qualidade, do nosso potencial, não chegamos naquela fase por sorte, mas por méritos."

Lucas Nunez/Reuters
Robgol (centro) comemora um dos gols dos 6 a 2 contra o Cerro

Goleada fora de casa tornou Paysandu a sensação continental

O Paysandu conseguiu a classificação ao mata-mata da Libertadores com uma campanha irretocável. Em seis jogos, foram quatro vitórias e dois empates. Contra o Cerro Porteño, no Paraguai, o time paraense venceu por 6 a 2. "Uma goleada histórica", descreveu a Folha de S.Paulo.

"Tudo tende que na outra chave o Boca pegue o primeiro lugar", disse o técnico Darío Pereyra após a vitória. "E aí a gente pode pegar um time um pouco mais fraco e então pode conseguir passar à próxima fase. Por isso queríamos pegar o primeiro lugar."

Mas no outro grupo, o Boca acabou empatando na última rodada e ficou em segundo, se colocando no caminho do Paysandu.

Antonio Gauderio/Folha Imagem
Lecheva comemora o único gol marcado no jogo de volta, em Belém

Torneio extinto levou Norte à Libertadores pela 1ª vez

Mas como o time paraense conseguiu ser até hoje o único representante do Norte em uma edição da Libertadores? A explicação está na Copa dos Campeões, um torneio curto realizado entre 2000 e 2002 que dava ao vencedor o direito de disputar o principal campeonato do continente.

Jogavam a Copa dos Campeões os vencedores dos campeonatos regionais, como o Rio-São Paulo e a Copa Sul-Minas, competições hoje também extintas. Na final da Copa dos Campeões de 2002, o Paysandu venceu o Cruzeiro após um 4 a 3 heroico e uma disputa por pênaltis em Fortaleza.

A base desse time disputaria a Libertadores do ano seguinte, reforçada por alguns atletas escolhidos a dedo no Nordeste e em times menores do Sudeste. O atacante Iarley, que defendia o Ceará, foi um dos reforços daquele ano.

AFP PHOTO/Yoshikazu TSUNO

Algoz do Boca, Iarley foi contratado pelos argentinos

Cearense de Quixeramobim, Iarley tinha 29 anos e passagem pelo time B do Real Madrid. No Paysandu, já vinha se destacando no Brasileiro e na primeira fase da Libertadores, mas foi no jogo contra o Boca em Buenos Aires que seu nome passou a ser falado com sotaque estrangeiro. Naquele dia, o Paysandu teve dois jogadores expulsos (o atacante Robson e o volante Vanderson), o que desorganizou o esquema tático do time.

A pressão dos argentinos em casa aumentou, e a estratégia brasileira passou a ser se fechar atrás e esperar que Iarley encontrasse alguma coisa lá na frente. No meio do segundo tempo, ele encontrou. Recebeu na entrada da área um passe de Sandro Goiano, driblou dois marcadores e chutou rasteiro longe do alcance de Pato Abbondanzieri.

Três meses depois de vencer o Boca, Iarley foi contratado pelos argentinos e jogou o Mundial, vencido pelo Boca contra o Milan. Marcou sua passagem por Buenos Aires com títulos nacionais e um gol em clássico contra o River. Depois seria campeão da Libertadores e do Mundial com o Internacional.

"Aquele gol contra o Boca abriu as portas da minha carreira", disse o atacante, que hoje é técnico de futebol e está sem clube. "Eu estava no Ceará na Série B. Quando o Paysandu me anunciou, a torcida reclamou porque queria uma contratação de primeira divisão, um nome de peso. Mas eu ganhei a posição na pré-temporada. Quando eles me viram jogar os primeiros jogos, eles já se apaixonaram."

AFP PHOTO/Daniel GARCIA
A comemoração do gol na Bombonera

"Nossa ousadia era a cara do futebol brasileiro"

A gente tinha ousadia quando jogava. Era um futebol alegre, bonito. Era um time que gostava de atacar e não sabia se defender, nunca jogava na retranca. Esse jogo ofensivo fez com que o Paysandu conseguisse alcançar seus objetivos. A gente pegou o São Paulo no Morumbi e ganhamos de 5 a 2 [no Brasileirão]. Eram muitos gols. Nossa ousadia era cara do futebol brasileiro".

Iarley, autor do gol do Paysandu contra o Boca na Argentina

Raimundo Paccó/O Liberal
Torcedores antes da decisão no jogo de volta

Torcida foi até em caminhão de lixo à decisão

A cidade de Belém ficou em festa depois da vitória inesperada na Bombonera. No jogo da volta, o Paysandu jogava por um empate para avançar às quartas. Apesar da empolgação, a torcida paraense teve dificuldades de chegar ao estádio do Mangueirão: os motoristas de ônibus da cidade anunciaram uma greve no dia da partida, reivindicando melhores condições de trabalho e aumento salarial.

Sem transporte público, quem não tinha carro precisou improvisar. Alguns, como o torcedor Mauro Rodrigues, pegaram caronas em caminhões de lixo que iam em direção ao estádio, que fica a 12 km do centro da cidade. Mesmo assim, mais de 57 mil pessoas viram o time entrar em campo. O Paysandu deixou escapar a classificação com uma derrota amarga.

Divulgação
Milton Neves na Band. A foto no Mangueirão está em tweet abaixo...

Milton Neves: volta olímpica e pé frio na eliminação

A eliminação em casa do Paysandu teve um personagem inusitado. O jornalista Milton Neves apresentava o "Terceiro Tempo", na Band, e foi um dos grandes entusiastas da campanha surpreendente dos paraenses. Convidou os jogadores do elenco a participar do seu programa e se anunciou torcedor do clube.

A brincadeira lhe rendeu um convite. O governo do Pará e o Paysandu o chamaram a assistir de camarote o jogo da volta, em Belém. "Fiquei na tribuna de honra do governador do Pará, mas o governador não foi porque ele tinha ido pescar e o anzol prendeu no olho dele", contou o jornalista em uma entrevista com Iarley. "Então ele foi lá em Houston, no Texas, cuidar do olho dele. E eu fiquei na tribuna no lugar do governador!"

Milton recebeu uma camisa do Paysandu e resolveu dar uma volta olímpica no estádio antes do jogo começar, como se o título já estivesse garantido. Com a bola rolando, o Paysandu perdeu por 4 a 2. "Dizem que eu tenho pé frio e até hoje tem parte da torcida que me culpa pela derrota, que o meu pé frio é que fez perder."

Antonio Gauderio/Folha Imagem
Schelotto comemora um dos seus gols

Boca tinha Tevez, mas Schelotto comandou a classificação

Carlitos Tévez estava em seu terceiro ano no time principal do Boca. Na derrota para o Paysandu no jogo de ida, entrou no decorrer da partida. Foi titular em Belém, mas o grande nome da virada argentino foi outro: Guillermo Schelotto. O atacante marcou duas vezes e comandou a vitória no Pará.

Nos jogos seguintes, o time de Carlos Bianchi superaria o começo claudicante para vencer seu pentacampeonato da Libertadores, com duas vitórias sobre o Santos de Diego e Robinho na final e gol de Tévez na decisão no Morumbi. O Boca ainda seria campeão mundial ao bater o Milan nos pênaltis no final do ano.

Carlos Silva/Reuters Garotos jogam bola em um campinho em frente ao cartaz em provocação ao Boca, em 2003

Garotos jogam bola em um campinho em frente ao cartaz em provocação ao Boca, em 2003

O que aconteceu com o Paysandu depois de 2003

A meteórica participação do Paysandu na Libertadores 2003 é até hoje grande façanha de um clube da região Norte do Brasil. Depois de 2003, o time ainda se manteria na Série A do Brasileiro por dois anos antes de ser rebaixado. Desde 2006, flutua entre a segunda e a terceira divisão do Brasileiro, de onde não sai desde 2019.

Alguns destaques daquele time seguiriam carreira pelo Brasil após o sucesso na Libertadores. O trio de ataque, por exemplo, foi jogar em times com mais estrutura. Robson seria contratado pelo Santos; Vélber, pelo São Paulo; e Iarley, depois de passar por Boca e Inter, também jogaria no Goiás e no Corinthians.

Pedro Nuin A imagem que abre essa reportagem foi feita por Pedro Nuin, artista e ilustrador de momentos históricos de futebol.

A imagem que abre essa reportagem foi feita por Pedro Nuin, artista e ilustrador de momentos históricos de futebol.

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