'Inquisição' tricolor

Torcedores do São Paulo relatam violência e ameaças por usar brincos, alargadores de orelha ou camisetas rosas

Brunno Carvalho e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Rubens Chiri / saopaulofc.net

Dreads, piercings, cabelo comprido, pulseiras e até uma camisa oficial do clube viraram motivo de ameaça nas arquibancadas em jogos do São Paulo. Nas últimas semanas, o UOL ouviu relatos de intolerância e medo crescente de torcedores, coagidos violentamente por apresentarem visual ou comportamentos que fogem de um padrão.

Padrão, esse, definido pela maior torcida organizada do clube, a Independente. "O papo é reto. A nossa instituição tem regras desde 1972 [...] Quer usar brinco, pintar o cabelinho, alargar a orelhinha, vai tranquilo, São Paulo futebol clube é de todos. Apenas não será um Independente, simples assim", diz uma publicação da torcida no Instagram.

A Independente nega qualquer tipo de coação a quem não é membro. Os depoimentos ouvidos pela reportagem, porém, indicam que a violência contra quem foge do padrão estabelecido por ela existe - inclusive para quem não é da torcida organizada. William Medeiros, que estava no estádio no jogo entre Palmeiras e São Paulo pela Copinha deste ano, afirma ter sido agredido junto a amigos na saída da Arena Barueri. Não foram os únicos. Na rua que liga o estádio à estação de trem, o "apavoro" comeu solto. Naquele momento, as calçadas estavam tomadas por torcedores organizados.

"Jogaram um copo de cerveja na cabeça do meu amigo porque ele estava de piercing. Começaram a gritar mandando que ele tirasse. Ele respondeu que não tinha como tirar, que nunca tinha feito isso, então arrancaram o piercing dele na unha. A orelha dele ficou muito machucada. Outro amigo nosso tentou tirá-lo dali, do meio daquela confusão, e levou um soco na costela. A gente nem tentou revidar, só queria ir embora dali. Isso destruiu minha saúde mental, nem consegui dormir essa noite. Fiquei em pânico."

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Reprodução

Nikão é 10 do Trikas

O pronunciamento da Independente aconteceu quando a comunicação do São Paulo confirmou a contratação do atacante Nikão como reforço do clube no Twitter. "Nikão é 10 do Trikas", disse a postagem. A palavra surgiu no Twitter, entre torcedores, em sua maioria jovens, como uma espécie de "apelido informal". Nunca teve a ver com provocação de qualquer tipo. Ninguém sabe exatamente o que está por trás do termo, mas tudo indica ser uma corruptela de "Tricolor" que é usada naquele ambiente específico, de forma descontraída.

A organizada, no entanto, não gostou do novo apelido: "Na arquibancada não terá essa modinha de 'trikas'. Não tentem a sorte. Pra quem for 'trikas', use a sua graça na rede social, onde você quiser, menos nos estádios. Fomos claros? Estamos avisando numa boa, pra depois ninguém dizer que não sabia. E, vocês aí, da Comunicação do SPFC ou Assessoria de Imprensa. Nossa instituição trimundial não permite palhaçada. Perfeito?", ameaçou a torcida.

Não houve esclarecimento por parte da Independente sobre o motivo pelo qual o apelido "trikas" incomoda tanto. Para Arnaldo Ribeiro, colunista do UOL, foi o tom homofóbico que turbinou a questão do uso do apelido nas redes sociais. "A torcida organizada, em geral, é sim homofóbica, dentre outros preconceitos. O 'trikas', para parte da torcida do São Paulo, é como foi o 'bambi' — fomentado por Vampeta anos atrás".

Arquivo Pessoal
William Medeiros (de barba, atrás do homem de boné) relatou ter sido agredido na saída da Arena Barueri

William Medeiros, que relatou agressão na saída do estádio, é dono de uma página que conta curiosidades sobre a história do São Paulo. É seguido por mais de 30 mil pessoas. Ele afirma que o apelido intensificou o tal código de conduta. Apesar de a mensagem restringir as exclusões a membros da torcida, torcedores comuns percebidos pela organizada também sofreram consequências. "Assim que a gente saiu da Arena Barueri, já fiquei com medo. A Independente tinha saído antes, e havia membros da organizada dos dois lados da rua. A gente precisava passar pelo meio para chegar à estação de trem", relembra.

"Começaram a hostilizar torcedores que fugiam desse padrão. Diziam que a gente estava desmoralizando a Independente. Foi quando aconteceram as agressões que contei. Outro amigo, que estava de camisa rosa do São Paulo [oficial do clube], colocou um casaco naquele calor e fechou até o pescoço com medo de ser percebido. Ficamos com medo de entrar na estação porque tinha uma fila grande cheia de membros da organizada. Ficamos ao lado da polícia por 1h30 esperando o movimento diminuir. Foi assustador demais", conta.

Rubens Chiri / saopaulofc.net

Torcida nega represálias

A Independente diz não ter recebido relatos de ocorrências envolvendo qualquer um de seus integrantes. Em conversa com a reportagem, um membro ligado à diretoria que prefere não se identificar afirma que o associado que comprovadamente se envolva o em algum tipo de confusão com os próprios torcedores do São Paulo será expulso.

"É muito fácil culpar a organizada. Jogaram a faca no campo [em Barueri] e culparam a organizada, invadiram o campo e culparam a organizada. E foi constatado que quem invadiu foi torcedor comum. Tenho certeza de que quem jogou a faca foi um torcedor comum. Se fosse um cara nosso, seria expulso no mesmo momento", disse.

O dirigente reiterou a importância do código de vestimenta da organizada no local em que a Independente fica no Morumbi, na antiga arquibancada laranja, atual sul, mas negou que haja cobrança para que os chamados "torcedores comuns" sigam. "A arquibancada laranja não é da Independente, nem a azul. O estádio é do torcedor de um modo geral, você vai aonde quiser. Mas, no nosso espaço, a padronização e as normas têm que ser respeitadas."

"A torcida do São Paulo é unida em prol do São Paulo, mas a Independente vai completar 50 anos e tem algumas regras. O torcedor pode ir para o estádio do jeito que ele quiser. Não teve briga, não teve corredor polonês. Nas reuniões, quando o associado entra, isso é passado para ele. Mas o que ele faz na vida particular dele não cabe a nós", completou.

O São Paulo foi procurado para se posicionar sobre os relatos. Apesar de os episódios acontecerem em dias de jogos do time, tendo como vítimas torcedores pagantes do clube, no Morumbi e seus arredores, o São Paulo alega que não tem relação com a torcida organizada e, por isso, não iria se manifestar.

Arquivo pessoal Matheus Lima em três momentos, dois no Morumbi: ele relatou "apavoro" de membros da Independente

Matheus Lima em três momentos, dois no Morumbi: ele relatou "apavoro" de membros da Independente

"Inquisição" começou antes

Relatos ouvidos pelo UOL explicam que a coação contra quem foge ao padrão já existia antes do "trikas". Os apavoros, porém, se intensificaram depois do uso oficial do termo. Matheus Lima, de 27 anos, frequenta o estádio desde pequeno. Ele tem alargador de orelha, cabelo comprido e gosta de usar anéis e pulseiras.

"Com uns 17, 18 anos, meu cabelo já era grande e eu gostava de fazer coque. Foi ali que comecei a perceber algumas diferenças de comportamento da organizada com esse perfil de torcedor. Tenho um amigo gay, que é são-paulino fanático desde antes de compreender a própria orientação sexual. Ele sempre ia comigo ao estádio. Quando ele se compreendeu gay, deixou de se sentir aceito naquele ambiente. Quando ia ao estádio, precisava agir de forma recatada, para 'não dar pinta'. Ele tentava não ser notado", relembra.

Matheus conta que o amigo parou de frequentar o estádio. "Existe uma sensação de que a gente está sendo vigiado, passando por um filtro de censura. Não me sinto confortável dentro da torcida do meu próprio time, isso é bizarro. Eu ainda frequento, mas não vou dizer que não sinto medo, mesmo sendo heterossexual. É uma seita, um dogma".

Ele relembra dois casos que viveu, ambos em Belo Horizonte. A entrada do estádio Raimundo Sampaio, o Independência, fica em uma rua estreita no bairro do Horto, na capital mineira. "Nunca tinha ido a um jogo em Belo Horizonte, e levei minha namorada à época. Antes de entrarmos, sentamos na calçada, tomamos uma cerveja. Estávamos os dois com a camisa do São Paulo, e eu estava de coque, com pulseira, colar e anel. Foi quando chegou a Independente", conta.

Matheus continua: "A torcida passou na nossa frente e uns caras já me olharam feio. Eu já entendi o que ia acontecer. Em seguida, quatro homens pegaram na orelha e apontaram para mim; depois, outros três apontaram para o cabelo e para mim. Um deles disse: 'tira a camisa porque aqui você não fica'. Como estava com a minha namorada, não reagi. Esperamos eles entrarem e, quando entramos no estádio, ficamos longe deles", diz.

No mesmo estádio, tempos depois, aconteceu de novo, segundo Matheus. Ele estava sentado na parte central da arquibancada, próximo à organizada. "Eu estava com um amigo. Um líder da torcida chegou na frente. Estava a uns cinco lances de escada abaixo de onde eu estava. Olhou para cima e fez um tipo de revista. Passou os olhos pela arquibancada e me viu. Passou a mão nos punhos, no dedo, na orelha e no cabelo. Fez o sinal para que eu saísse dali. Me senti muito acuado, mas pensei: 'tem polícia aqui, não vou apanhar'. Levantei os braços e gritei 'que que foi?'. Ele puxou a camisa, apontou para o escudo do São Paulo e pediu de novo que eu fosse embora. Achei melhor sair, sentei perto da PM".

Rubens Chiri / saopaulofc.net Rubens Chiri / saopaulofc.net

Ex-independente atrela cartilha a apelido 'bambi'

Ex-membro da Independente que prefere não se identificar, Jorge*, de 41 anos, conta ter entrado para a organizada em 1994, "época em que ir e voltar de estádio era questão de sobrevivência". "Entrei na torcida para brigar, mesmo, eu era moleque e era o que queria. Fiquei 13 anos na Independente, e saí quando percebi que a torcida não cobrava os dirigentes, mas os jogadores e técnicos. Quando pediram a cabeça do Muricy, em 2007, foi a gota d'água. Ele era um técnico multicampeão, fazia um ótimo trabalho. Caí fora. Entendi que era uma torcida fechada com a diretoria", diz.

Segundo Jorge, o código de vestimenta atrelado a piercings, alargadores e cabelos compridos não existia na torcida durante o período em que foi membro. As únicas regras se restringiam à camisa do clube e a cores rivais. "O que mais tinha era gente de alargador e piercing dentro da Independente. Nunca foi uma questão. Isso começou quando pegou o negócio do 'bambi', que traumatizou muita gente. É a masculinidade frágil de muitos ali", afirma.

Quando abandonou a Independente, Jorge passou a frequentar a arquibancada amarela, que fica longe da organizada. Na semifinal da Libertadores, em 2016, o São Paulo enfrentou o Nacional da Colômbia em Medellín. "Eu estava lá, e membros da organizada começaram a implicar com os torcedores comuns. Foi a primeira vez que vi isso, fiquei incrédulo. Quando o time perdeu, a torcida comum vaiou os jogadores. Na saída do estádio, teve 'tiro, porrada e bomba'", relembra.

O próprio Jorge, enquanto membro da Independente, diz ter sido agredido na saída do Morumbi. "Eu estava com a calça do São Paulo, mas com a camisa de uma escola de samba onde trabalho. Eu fui para o Morumbi direto do trabalho. Na saída, três membros da Independente me abordaram e questionaram a camisa. Eu disse que estava com a calça do São Paulo e que tinha vindo direto do trabalho. Me virei para ir embora e tomei um chute nas costas. Fui revidar, mas eles correram."

"Membros da Independente, primeiro, ameaçam, fazem um apavoro, um terror psicológico. Se o 'torcedor comum' revida, daí eles partem para a porrada. A última vez que fui ao estádio foi antes da pandemia, e não sinto a menor vontade de voltar."

Vampeta: "Não fui eu que inventei"

Apelido se fortaleceu com Vampeta

O código de vestimenta não é uma novidade para quem acompanha a Independente de perto. Um dos membros afirma que ele existe desde a fundação da organizada, em 1972. Uma maior vigilância para que ele fosse seguido, contudo, se acentuou décadas depois, na visão do sociólogo e pesquisador das torcidas organizadas no Brasil Bernardo Buarque de Hollanda.

"O estigma do bambi, que surge no final da década de 1990, fez com que eles aumentassem o monitoramento inteiro em relação a códigos de honra em que a virilidade é exacerbada. Não se aceita homem com brinco na arquibancada no território da Independente, no espaço dominado por ela. Aí teve a questão do trikas que só acentuou isso. O episódio de Barueri foi um estopim".

O apelido homofóbico de "bambi" direcionado aos torcedores tricolores foi popularizado pelo ex-jogador Vampeta, no auge da rivalidade entre Corinthians e São Paulo no final da década de 1990. Naquela época, era comum ver o volante utilizando espaço na imprensa para provocar o adversário com o termo pejorativo.

"O Corinthians tem o gambá, o Santos tem a baleia, o Palmeiras tem o porco e o São Paulo precisava adotar um animal de estimação. Essa história do bambi já existia e eu só acordei o gigante adormecido", disse o já aposentado Vampeta, em 2018, em participação no programa "Show do Esporte", da Band.

Paulo Pinto / saopaulofc.net  Paulo Pinto / saopaulofc.net

A força das redes sociais

A noção da existência dos códigos da Independente ou de qualquer outra torcida organizada ficou por anos reservada a quem frequentava as quadras ou ia aos jogos de futebol com eles. Em uma época em que a comunicação não era tão espalhada como hoje, saber como tudo funciona apenas olhando de fora era mais difícil. Com a chegada das redes sociais, isso mudou. A conta oficial da Independente no Instagram possui 399 mil seguidores.

"O ponto agora é que o que uma torcida posta se alastra graças às redes sociais e isso multiplica os ruídos que podem ser gerados", explica Buarque de Hollanda. "Então, se você já tinha o estigma de bambi e você adiciona isso [trikas] e isso se torna chacota na internet, como é que você reage? Você reage com a maior intolerância possível".

O sociólogo enxerga no código de vestimenta uma padronização visando um embate, não necessariamente violento, mas de afirmação da organizada. "É uma retórica de subordinação. A Independente está fardada, o exército está fardado. Todo mundo tem que estar igual, um soldado. É uma lógica militar que quem não a segue está sujeito a ser hostilizado".

A lógica militar foi a justificativa dada pela Independente para defender seu código de vestimenta nas redes sociais. No post em que gerou a polêmica, a organizada compara suas normas com a do exército brasileiro, em que a vestimenta também é padronizada.

Diego Padgurschi / UOL

Opinião: Homofobia ainda pauta o futebol

Existem duas questões interligadas nessa história, ambas cercadas de preconceito. Uma envolve especificamente a torcida organizada; a outra: a mídia esportiva. A torcida organizada, em geral, é sim homofóbica, dentre outros preconceitos.

A rede social fez com que a disseminação do termo 'trikas' fosse muito mais veloz que o apelido 'bambi'. As organizadas do São Paulo "reagiram" e passaram a "fiscalizar" — enquanto as rivais aproveitaram o flanco.

E aí entra o papel da mídia. A mídia, da sua forma, alimentou o 'trikas' e o confronto interno entre os organizados e não organizados tricolores. Muito porque destila o seu preconceito (de toda a ordem) aos organizados. São condenados previamente. Nunca serão torcedores do "bem". Estão do outro lado. Nada mais elitista.

E vários jornalistas não tricolores —no conforto do lar, nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp — alimentaram também (e costumam alimentar e cutucar) o preconceito e a homofobia de parte das arquibancadas.

Com alguma experiência nos dois pólos de preconceito, acho mais fácil uma torcida organizada um dia fazer um mea-culpa do que a mídia. A mídia brasileira jamais faz mea-culpa.

Arnaldo Ribeiro, comentarista do podcast "Posse de Bola"

Friedemann Vogel/Getty Images Friedemann Vogel/Getty Images

O código das outras torcidas organizadas

Recomendações de vestimentas em torcidas organizadas não são exclusividades da Independente. Gaviões da Fiel e Mancha Verde, principais representantes de Corinthians e Palmeiras, por exemplo, também possuem orientações aos associados em dias de jogo.

A Gaviões orienta que seus associados compareçam ao setor Norte da Neo Química Arena vestido de preto, cor oficial da entidade. O ideal é uma camisa oficial da Gaviões, mas o uniforme preto do Corinthians também serve. A cor verde, do rival Palmeiras, é proibida.

A linha seguida pela Mancha Verde é bastante parecida com a da Gaviões nos jogos no setor Gol Norte, destinado a eles no Allianz Parque. A torcida alviverde orienta seus integrantes a vestirem a camisa da entidade ou uma do Palmeiras, preferencialmente a branca.

Um membro ouvido pela reportagem afirma que torcedores que vão aos jogos diretamente de seus trabalhos são autorizados a se juntarem com a vestimenta que estiverem. Mas a preferência é sempre por seguir o padrão determinado pela torcida.

A reportagem apurou que não há orientação oficial sobre corte de cabelo ou ornamentos de orelha ou dedos.

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