Futebol para recordar

Esporte ajuda idosos com Alzheimer a reviver (e preservar) memórias. E os reaproxima das famílias

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Núcleo Educativo/Museu do Futebol

Sylmar Thereza voltava para casa de carro após curtir um dia com a filha Daniela e os netos, quando tudo apagou. Como em um filme, ela teve um lapso de memória e se perdeu no meio do caminho, não teve mais controle do volante. Subiu num barranco e só foi parar quando estava em cima da calçada. Dias depois, uma visita ao médico confirmou o diagnóstico que tanto temia: Alzheimer.

O diagnóstico veio há três anos em meio a recente perda do marido Affonso. "Não é fácil lidar com tudo isso. Eu nunca vou me esquecer o dia do diagnóstico, porque até gravei para mostrar para os meus irmãos. Eles não queriam aceitar. Eu, como filha, é que carrego e carreguei isso. É um fardo. Claro que tem muito amor. Mas não é o que a gente quer, eu choro no banheiro às vezes. Nós já tivemos outras histórias na família com os meus avós. Quando ela ouviu, ela deletou. É uma espécie de trauma já para ela", relatou Daniela.

E entre a difícil aceitação, a família descobriu um poderoso remédio para enfrentar a rotina delicada, o futebol. Palmeirense, dona Sylmar revive momentos do esporte e da própria vida através dos jogos do time. "O Palmeiras a faz lembrar da família dela. Quando ela fala do nosso pai, ela lembra do Palmeiras... E é uma fase intermediária da doença. Coisas do passado estão na memória e o amor pelo esporte ajuda a manter", acrescentou Daniela.

A história de dona Sylmar é um dos vários exemplos de sucesso que o UOL Esporte ouviu após conhecer um projeto pioneiro no Brasil: o "Revivendo Memórias", parceria da USP com o Museu do Futebol de São Paulo que usa o esporte como elemento chave para a ressocialização do idoso que sofre com o Alzheimer.

Núcleo Educativo/Museu do Futebol

Revivendo as memórias

O diagnóstico de Alzheimer cai como uma sentença de morte em doentes e na família. A doença afeta a parte cognitiva do idoso e faz com que, à medida que o mal avança, parentes percam as esperanças em reconhecer o paciente como ele era antes — e também de serem reconhecidos. Não bastam os cuidados básicos, é preciso conversar, incentivar...

É aí que entra o "Revivendo Memórias". A ideia é usar um meio comum e popular, o futebol, para revitalizar as memórias de pacientes com Alzheimer e aumentar a conscientização dos cuidadores. O projeto é uma parceria do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e do Museu do Futebol de São Paulo.

Tudo começou quando o pesquisador Carlos Chechetti conheceu um projeto similar no Museu do Futebol da Escócia e resolveu apresentar ao seu orientador, o neurologista Leonel Takada. O museu da capital paulista se encantou com a ideia e abraçou a causa.

Nos baseamos nesse projeto da Escócia para usar a paixão pelo futebol como uma forma de estimular do ponto de vista cognitivo e estimular a interação social. Quando falamos em incentivar o cérebro de uma pessoa, a gente sempre tenta procurar algo que seja interessante. E a gente sabe que o futebol é uma paixão para muitos brasileiros".
Leonel Takada

Os encontros começaram no início deste ano. Os educadores do Museu do Futebol usaram imagens de jogadores, estádios e times, além de outros instrumentos relacionados ao esporte, para iniciar conversas e interações —e, consequentemente, reviver as memórias.

"Uma coisa que acontece muito com os pacientes que tem Alzheimer é que, à medida que a doença vai progredindo, eles começam a se isolar do mundo externo. No Revivendo Memórias, estimulamos o contato social com outras pessoas. A interação social é muito importante para quem tem a doença", acrescentou Takada, exaltando a socialização desses idosos.

Núcleo Educativo/Museu do Futebol Núcleo Educativo/Museu do Futebol

A importância do estímulo

Para explicar o motivo pelo qual o futebol pode ser essencial no tratamento de pessoas com Alzheimer, é preciso pensar no esporte não como informação, mas como sentimento. A principal razão é o amor e suas consequências no cérebro. Trabalhar com a paixão de uma pessoa traz resultados melhores do que os velhos impulsos conhecidos, como palavras cruzadas ou sudoku.

O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que se manifesta por meio da deterioração cognitiva e da memória de curto prazo. Além disso, o idoso que convive com a doença pode apresentar alterações comportamentais que se agravam ao longo do tempo.

Tudo isso acontece quando o processamento de determinadas proteínas do sistema nervoso central começa a falhar. Toxinas geradas nessa pane causam a perda progressiva de neurônios em regiões do cérebro como o hipocampo, que controla a memória, e o córtex cerebral, essencial para a linguagem e o raciocínio, memória, reconhecimento de estímulos sensoriais e pensamento abstrato.

Infelizmente não temos essa cultura de saber a importância do estímulo às pessoas com Alzheimer. Esses tipos de impulsos ajudam no humor, mudam o comportamento da pessoa, a interação com as pessoas da família. A fomentação cognitiva é uma coisa que traz muito benefício para todos

Leonel Takada

Na doença de Alzheimer, a memória por fatos antigos se perde ao longo da doença. As lembranças com carga emocional do time do coração têm associação a eventos da vida dos idosos... A doença causa essa perda de memória e usamos a paixão pelo futebol como forma de estimular mesmo

Leonel Takada

É por isso que a história de dona Sylmar é importante. Como uma boa paulistana nascida na Pompeia, nunca perdeu um jogo do Palmeiras. Era assim que ela curtia os bons momentos com o marido Affonso, filhos e netos. Hoje, quando a família se reúne para acompanhar o Alviverde, todos se esquecem da doença que faz esquecer.

"Nesses momentos que estamos juntos assistindo às partidas com ela, esquecemos da doença. É um momento em que ela está entretida e interage demais conosco. A gente comenta as jogadas, os netos, todo mundo...", exaltou Daniela.

Arquivo pessoal

Pandemia dificulta, mas traz ajuda

O Alzheimer é uma doença que afeta não só o paciente, mas a família inteira de quem cuida. Nem sempre é fácil lidar com os idosos, que podem ficar agitados demais ou agressivos quando desorientados. Durante a pandemia causada pelo coronavírus, Daniela, a filha de dona Sylmar (as duas aparecem na foto acima), encontrou momentos de respiro com as reprises de jogos transmitidas pelos canais esportivos.

"O Palmeiras é uma espécie de remédio para ela. Procuramos no YouTube e tudo mais... É uma paixão, é uma calmaria. Se torna uma coisa divertida e prazerosa. Assistir ao Palmeiras, hoje em dia, é uma das coisas preferidas da minha mãe: 'Ai ai ai, hoje tem jogo do Palmeiras, não me deixa perder, não me deixa perder', ela fala".

E mesmo os outros filhos de Sylmar, que sentiram mais dificuldade em lidar com o diagnóstico, encontraram uma nova maneira de se reconectar com a mãe em uma antiga paixão. "Um dia, estávamos na casa dos meus filhos e colocamos em uma final de campeonato em que o Palmeiras jogava... Ela assistiu como se tivesse ao vivo: 'Olha, daqui a pouco o Adriano (um dos filhos) vai me ligar'. O Palmeiras foi campeão. Então, telefonei para o meu irmão e pedi para ele comentar sobre esse jogo com ela", contou Daniela.

"O Adriano ligou e ela: 'Eu sabia que você ia me ligar! Você precisa ver como foi um jogão, seu pai deve estar feliz da vida'".

O esporte ajuda muito, muito, muito a manter a memória dela com os familiares viva, sabe? São lembranças de carinho, de paixão... Muito positivas

Daniela Izzo, filha de Sylmar

Arquivo pessoal

"Estou pronto para a minha terapia"

São-paulino, Luis Gonzaga é um dos frequentadores do Revivendo Memórias. Diagnosticado com Alzheimer há seis anos, o aposentado não se esquece de jeito nenhum da sua "terapia". "O São Paulo sempre foi a paixão dele e hoje ajuda muito com a memória", contou Marjory Binda, sua neta.

"Os estímulos do futebol o fizeram recordar muitas coisas. Meu avô se lembrou que foi técnico do time de futebol da empresa em que trabalhou. Além disso, ele associa conquistas do Tricolor com momentos importantes da família, como o nascimento de um dos netos".

"Hoje, pessoal do museu liga e eles conversam bastante, tem encontros virtuais. Meu avô mesmo fala que é a terapia dele. Ele se arruma, sabe da existência. É como remédio. Ele fica mais ativo, relembra as coisas, interage muito mais", exaltou Marjory.

O estímulo com o futebol surte efeitos imediatos em Luis. Apesar de ser corintiana, Marjory sempre foi a "parceira de futebol" dele. A rivalidade entre os dois grandes clubes de São Paulo rendeu muitas brincadeiras entre neta e avô. E hoje, graças aos impulsos, nada mudou: o aposentado nunca desistiu e tenta, até hoje, com que a jovem mude de time.

Núcleo Educativo/Museu do Futebol

Encontros migraram para o virtual

A pandemia causada pelo novo coronavírus não atrapalhou a continuidade do projeto. Hoje, idosos do Brasil inteiro podem participar do "Revivendo Memórias #EmCasa", em encontros virtuais. "Redesenhamos o projeto para atender o idoso nesse momento, um público muito afetado pelo isolamento social", explicou Ialê Cardoso, coordenadora do Núcleo Educativo do Museu do Futebol.

O projeto foi positivo não apenas para os idosos. "Há um resgate do carinho, de escutar melhor o idoso, coisa que a gente, como sociedade, está deixando de lado", completou Ialê.

Aumentando a conversa com os pacientes, foram retomados também vínculos emocionais com os familiares. A interação ganha naturalidade, se afasta da relação fria de cuidador e paciente.

"O impacto foi positivo para todo mundo. Criamos um vínculo afetivo muito grande. Os mesmos educadores atendem os pacientes com Alzheimer desde o começo. Eles criam vínculos pessoais com a nossa equipe. Guardam nomes, fisionomia, voz... Isso é muito importante, justamente porque eles são afetados pela perda de memória recente", falou Ialê.

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