À frente do pódio

Reginaldo Leme conta sua história com o automobilismo e como ela se mistura com a da F-1 desde 1972

Julianne Cerasoli Colaboração para o UOL, em Londres (ING) Marcus Steinmeyer/UOL

Durante o meio século que separa 1970 e 2020, tudo mudou no jornalismo comandado por Reginaldo Leme —principal nome da cobertura de Fórmula 1 no Brasil. Lá atrás, há cinquenta anos, ele se amontoava com outros 15 jornalistas nas salas de imprensa mundo afora e apressava as anotações na máquina de escrever quando acabava a energia elétrica, deixava tudo pronto para que, quando a luz voltasse, o Telex resolvesse o restante do trabalho —de enviar à equipe o texto da cobertura.

Hoje, aos 75 anos, Leme não nega a tecnologia: criou seu próprio canal no YouTube e tem um aplicativo quase pronto. Além disso, está prestes a lançar seu livro de memórias. Cá entre nós: não falta história na vida de quem patenteou a cobertura jornalística de F1 no Brasil no mesmo ano em que o país conquistou seu primeiro troféu no esporte. Em 1972, Emerson Fittipaldi conquistou o primeiro dos títulos mundiais que vieram para cá e Regi começou seu projeto jornalístico no jornal O Estado de S. Paulo ao redor do mundo.

O jornalista migrou para a Rede Globo em 1977 e trabalhou por lá por 42 anos —até 2019, ele dividiu coberturas e parcerias com Galvão Bueno. A lista de parceiros de ex-firma, afinal, é grande: "Não existe uma pessoa na Globo sobre quem posso dizer: 'poxa, esse cara não foi um parceiro na minha vida'", conta ao UOL.

Foi no decorrer da longa passagem pela televisão que a voz de Leme marcou os tricampeonatos de Nelson Piquet e Ayrton Senna. Nesta entrevista, ele conta, entre um monte de outras histórias, que se envolveu muitas vezes nas brigas dos dois —Senna acreditava que o amigo era mais chegado ao rival do que a ele. Assume, também, que ainda hoje "se amarra na cadeira" toda vez que tem carro na pista.

Zanone Fraissat - Folhapress

Longe da TV, mas a vontade de comentar sobre o presente da F1 também não falta: "Fica aquela coisa na garganta, querendo dizer alguma coisa e não dá", diz o jornalista ao UOL Esporte. "Tem hora que você sente muita vontade de falar em cima de uma coisa que alguém acabou de dizer. Quando sinto essa vontade e um dos comentaristas vem e fala, é uma realização para mim".

A saída da Rede Globo depois de mais de 40 anos foi um acordo mútuo, sobre o qual ele prefere não se estender. No final das contas, o saldo foi positivo. "Eu sou adorado, como eu adoro os caras lá também. A mesma coisa em São Paulo. Não existe uma pessoa sobre quem posso dizer: 'Poxa, esse cara não foi um parceiro na minha vida'. Nenhum. Isso me deixa muito feliz. Seria normal ter tido um probleminha, mas não teve."

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"Até Ayrton me perguntou se eu preferia Nelson"

Foi por muitas reportagens e comentários de Reginaldo Leme que o Brasil acompanhou as carreiras de Nelson Piquet e Ayrton Senna. Muito por causa dessas matérias que a relação do brasileiro com a F1 mudou. O jornalista reconhece que, às vezes, ficou em uma posição incômoda tentando driblar a inimizade notória entre os dois, justamente no momento em que o automobilismo brasileiro começava a ganhar uma projeção enorme em termos de audiência.

"Eu confesso para você que eu fiz uma coisa... Eu não faltei com a ética do jornalismo, mas eu omitia algumas coisas nas entrevistas, principalmente, palavrão. Houve uma ocasião, na Hungria, em que um estava falando mal do outro e outro respondendo mal do outro —de uma forma muito agressiva. Eu falei: 'Isso não é bom para o automobilismo brasileiro'. Eu pus o diálogo, o bate-boca, mas filtrando as coisas. Eu fiz muito para que desse certo entre eles."

Entretanto, Leme precisou conviver com um estigma que dura até hoje, e que se tornou uma dúvida para o próprio Senna: a preferência por Piquet.

Até Ayrton me perguntou se eu preferia o Nelson".

Reginaldo Leme e Ayrton Senna

O acordo com Piquet

Morando em São Paulo, Leme relembra encontros frequentes com Senna — coisa que não acontecia com Piquet. Ao mesmo tempo, se tornou um dos poucos jornalistas próximos de Nelson. E a explicação, diz ele, é simples.

"Ele falou uma coisa para mim, no começo da carreira: 'Olha, eu sou um cara difícil, mas eu vejo que você está querendo aprender e me falaram que o que você está fazendo no Brasil é muito bom. O resultado é muito bom. A partir de agora, toda vez que você chegar para falar comigo, faz chegar um recadinho pra mim, ou me faz um sinal quando eu passar que eu paro o que eu tiver fazendo, ou termino rapidinho uma reunião e venho falar com você'. Nunca mais foi diferente".

A nítida intimidade entre o piloto e o jornalista —sorte que poucos colegas de profissão de Leme tiveram— fez com que o próprio Senna o questionasse. "De fato, o Galvão, e ele mesmo fala, é um cara muito mais chegado ao Senna. Eu tinha essa coisa com os dois. Esse negócio [a conversa sobre a preferência por Piquet] existiu. E ouvi isso da boca do Senna, em 1988, voltando da Austrália [logo após a conquista do primeiro título]. Ele ganhou a corrida no Japão e, depois, fomos para Austrália", relembra.

"Estávamos sentados lado a lado no voo, quase aterrissando no Brasil, quando Senna falou: ''Você sempre teve muito mais paciência com o Piquet do que comigo'. Eu falava: 'Não, Ayrton, não'. Aí, toda essa história. 'Eu te vi começar. Eu almoçava e jantava com você, em São Paulo. Eu ia na sua casa, na Cantareira. Com o Piquet, eu nunca tive essa proximidade'".

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O chute de Senna

A rivalidade entre os dois era tanta que Leme até levou um chute por baixo da mesa quando revelou, sem querer, um truque de Senna na pista de Montreal, no Canadá, a um jornalista muito próximo a Piquet durante um jantar.

"Estávamos o Adriano Costa, italiano, o Ayrton e eu jantando, quando o jornalista perguntou: 'Ayrton, com que marcha você tá fazendo a curva tal?'. Eu me meti para responder na frente dele. Olha só a ingenuidade... Eu falei: 'Pois é, Adriano, olha só o que o Ayrton acabou de me falar vindo para cá'."

"Cara, eu levei um pontapé por baixo da mesa. Você não tem ideia. O pontapé e o Ayrton falando baixinho de canto da boca, em português —o outro é italiano, mas claro que ele entenderia: 'Não fala, não fala, não fala'. Aí, no meio da frase eu dei uma enrolada, não me lembro o que eu acabei falando. É gozado se meter nessas histórias. Fui atrevido e ingênuo."

Eu fiz milagres nessa posição incômoda entre o Piquet e o Senna. Eu fiz milagres. Eu fiz os dois se falarem várias vezes. Eu fiz os dois me darem entrevistas várias vezes.

Reginaldo Leme

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Máquina de escrever à luz de velas

A história de Reginaldo Leme com a Fórmula 1 começa muito antes da rivalidade entre Piquet e Senna. Apaixonado por automobilismo, ele estreou no jornalismo como setorista do Palmeiras, no caderno de esporte do Estadão, em 1968. Ainda assim, sempre esteve ligado nas competições do esporte a motor, e, principalmente, no início da carreira do promissor Emerson Fittipaldi, que estreou na F1 em 1970. A vitória do piloto brasileiro no GP da Espanha de 1972 deu um estalo na cabeça de Leme: depois desse dia, ele decidiu montar um projeto de cobertura internacional.

"Eu ouvi a corrida toda no rádio. Quando terminou, sentei à máquina e escrevi o meu projeto para o Estadão, apostando que o Emerson ia ser campeão naquele ano", conta. Levou alguns meses até o projeto ser finalmente aprovado, mas o timing não poderia ter sido mais perfeito. Sua primeira cobertura foi um evento extra-campeonato, na Inglaterra. E a primeira vez que cobriu corrida na F1 coincidiu com o GP da Itália de 1972, quando Fittipaldi conquistou seu primeiro título. Foi esse o primeiro título brasileiro no esporte.

"Eu peguei uma época em que a sala de imprensa tinha uns 15 jornalistas. A gente tinha a máquina de escrever, e usávamos o Telex para mandar. Lembro que tinha uns dois telexes e dois operadores só no começo. Tudo era muito difícil e tudo era muito gostoso. Cheguei a escrever em sala de imprensa à luz de vela. Caía a luz, aí o Telex também não funcionava, pegava a maquininha de escrever e ficava rabiscando para quando voltasse a luz."

As entrevistas de Reginaldo Leme

Carreira também teve despedidas dolorosas

Os anos 1970 ficaram conhecidos como a época em que a F1 teve mais acidentes fatais. E só anos depois, Leme ficou sabendo que seu projeto de acompanhar Fittipaldi de perto poderia acabar muito mais cedo do que ele esperava.

"Nós estávamos juntos, havia umas dez, 15 pessoas no Instituto Brasileiro do Café, em Milão, pequenininho, um jantarzinho simples, coisa improvisada na hora. Aconteceu ali, eu não fiquei sabendo, nenhum de nós ficou sabendo. O Emerson falou para o pai e para o [irmão] Wilsinho: 'Eu acho que basta. Eu cheguei aqui e ganhei o campeonato. Eu não vou continuar'", relembra o jornalista. A decisão, ele conta, foi motivada pelas frequentes notícias de morte no esporte. A família do piloto, mesmo temerosa, insistiu para que ele continuasse. "Era uma época em que tirava-se a foto no começo do ano sabendo que três ou quatro pilotos não estariam presentes no final da competição", diz.

Entre todas as fatalidades que cobriu antes da grande perda de Senna, a que mais marcou foi a de Ronnie Peterson, em 1978. "Convivi muito com o Peterson. Nossa, o que eu senti a morte dele... Era muito doído." A partida de Gilles Villeneuve, em 1982, foi outra que marcou. "Eu estava com um amigo dele quando ele morreu", conta. Mas sua postura quanto aos pilotos nunca mudou. "Tem gente que evita criar uma amizade para não sofrer. Eu procurava não pensar nisso. Se tiver que acontecer, vai acontecer, mas tomara que não, tomara que não seja com um amigo. Mas era muito duro."

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Hamilton já é o maior da história

Os tempos mudaram e a F1 registrou uma fatalidade (Jules Bianchi, morto em 2015 em decorrência de um acidente ocorrido no final do ano anterior) em mais de 26 anos. Restaram, então, as coisas boas. E o entusiasmo por ver o esporte em boas mãos.

"Sabe como você mede um piloto? 'Esse cara apresentou algum problema em alguma corrida? Teve um dia em que choveu que ele não andou? Teve um dia em que estava calor demais? Teve um dia em que eu vi que ele não estava bem de cabeça, que atrapalhou na corrida, no treino?'. Não, não. Bota a pista do jeito que quiser, com o grau de dificuldade que quiser. Quanto maior o grau de dificuldade, melhor o Hamilton vai se dar bem. Ele já é o melhor da história e os números só vão comprovar isso neste ano."

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