Ele aceitou ser vilão

Ricardinho fala de briga com Bernardinho e seu papel na seleção: se Giba era mocinho, faltava um antagonista

Patrícia Calderón Colaboração para o UOL, em Fortaleza (CE) Fabio Braga/Folhapress

Há 18 anos morando em Maringá, no Paraná, e dirigente do principal time de vôlei da cidade, Ricardinho, um dos maiores levantadores de vôlei que seleção brasileira já teve, vive calmaria. Ele mesmo define o momento como paz e amor.

É algo que quem lembra do jogador genioso, tido como indisciplinado e brigão dentro e fora das quadras, dificilmente esperava. Mas a idade traz grandes aprendizados. Aos 44 anos, aposentado há dois, o vovô Ricardinho divide seu tempo no isolamento para cuidar do pequeno Lorenzo, de um ano e cinco meses.

Nessa entrevista que o UOL Esporte publica, o campeão olímpico fala da família, defende o presidente Jair Bolsonaro, lembra da briga com Bernardinho e que se sentiu sozinho quando mais precisou de um amigo por perto e de seu papel naquela geração, a mais vitoriosa da história do vôlei — no Brasil e no mundo.

"Giba era sempre o bom moço, o bonitão, o galã. Por mais coisas de errado que fizesse, era sempre tido e visto como o bom moço. Tive que assumir o ônus e bônus da minha personalidade para seguir em frente. Assumir ser o vilão".

Fabio Braga/Folhapress
Arquivo pessoal

Vovô

De bem com a vida e muito sorridente, Ricardinho topou atender a reportagem por Skype. O jogador divide um apartamento confortável com a esposa e a filha mais nova, Bianca, de 17 anos, num bairro nobre de Maringá. A família reside próximo a outra filha do jogador, que é casada atualmente.

O capitão da seleção conta que tem passado os dias de quarentena entre treinos e exercícios físicos dentro de casa para respeitar o isolamento social. Perguntado sobre a sua relação familiar, abre um sorriso largo e avisa que tem desempenhado muito bem a sua mais nova função: avô do Lorenzo, filho da primogênita Júlia.

"Somos muito apegados. Montei uma pequena academia na varanda do meu apartamento e ele [o neto] me acompanha sempre. Ele me segue, me leva pra academia do prédio, cópia os meus gestos de exercícios, é meu amigão, meu parceirinho fiel. Fazemos muitas brincadeiras juntos, é sensacional, não tem como explicar. São momentos que ficaram eternizados. Momento muito feliz da minha vida".

A fala mansa e pausada nem de longe lembra a do capitão da seleção brasileira de vôlei que transpirava personalidade forte dentro das quadras, tido muitas vezes como polêmico e brigão. Ouro nos Jogos Olímpicos de Atenas-2004 e prata em Londres-2012, Ricardinho diz que a idade trouxe amadurecimento — e que, se acontecessem hoje, muitas situações, como brigas, confusões e cartões vermelhos, poderiam ter sido evitadas.

A vida ensina, mas ele não se arrepende de nada do que passou durante a sua carreira como titular da seleção. "Faria tudo de novo. Foi sempre por uma boa causa, sempre buscando um bem comum. Não me imagino com outra característica, como, por exemplo, a do André Nascimento, com o estilo do André Heller, do próprio Giba, que sabiam lidar melhor com as derrotas".

Assista à entrevista de Ricardinho

Carlos Barria/Reuters

Evangélico, o campeão olímpico torce que essa pandemia passe logo e que a importância da ajuda ao próximo se torne algo real. Ele lembra que se preocupa com o momento de isolamento e reforça a necessidade da coletividade para a espécie humana.

"Tenho medo que, após a pandemia, as pessoas ainda fiquem presas nas suas casas, esquecendo do outro. Não vejo a hora de tudo isso acabar para voltar a frequentar com a minha família os cultos de encontro com Deus, com todos unidos na fé. Momento difícil, não quero me acostumar com o novo mundo".

Ao comentar que tem vivido um dia após o outro, sem se preocupar muito com o futuro, Ricardinho dá a deixa para uma brincadeira: para quem ele levantaria a bola?

  • Giba

    "Sim. O cara é o melhor da história com quem eu já joguei. Impossível não eu não levantar uma bola pra ele".

    Imagem: AP Photo/Dave Martin
  • Bruninho

    "Sim. Pelo esforço dele, por tudo o que ele já passou, e no grande jogador que se tornou. Somos amigos, um menino gigante. Tenho um carinho muito especial pelo Bruninho, e no cara que ele é".

    Imagem: Divulgação/FIVB
  • Bernardinho

    "Sim. Pela pessoa que ele é, pelo o que ele fez, pelo o que ele faz. Permanece sendo ícone extraordinário mesmo longe das quadras. Uma pessoa com quem eu aprendi muito, tanto com a convivência, como pela característica com personalidade parecida com a minha".

    Imagem: Alexandre Loureiro/Getty Images
  • Jair Bolsonaro

    "Sim. Um cara que está assumindo muitas broncas, num momento difícil e coisas inesperadas que vazam. Eu não gostaria de viver o que ele tem passado. O cara está com uma bomba nas costas dele. Não me arrependo do voto nele de forma nenhuma. Acredito no Brasil".

    Imagem: Reuters

Eu sempre fui muito estressado. Quando eu entrava em quadra, me transformava para ir para cima do adversário. Fui treinado pra isso

Ricardinho

Alexandre Campbell/Folhapress

A grande briga

Há 13 anos, Ricardinho sofreu a maior decepção que um jogador pode ter no auge da carreira. Prestes a competir Nos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, o primeiro dos três megaeventos esportivos que o Brasil recebeu, o então treinador da seleção, Bernardinho, cortou o levantador na véspera da apresentação dos jogadores.

"Foram muitos anos de convivência, muito tempo junto. A gente sempre discutia bastante. Ocorreu o desgaste da relação que resultou no meu corte. Fiquei muito magoado e chateado. O tempo passou, a história virou lenda, não há nenhum segredo de estado que não tenha sido revelado. Hoje, dou até boas risadas de tudo o que foi falado e da situação".

A versão que apresentamos para o corte de Ricardinho no dia 21 de julho de 2007 foi publicada no blog Saída de Rede, da jornalista Carolina Canossa, em 2017:

Michael Caronna/Reuters Michael Caronna/Reuters

"Exatos dez anos após o ocorrido, debates e especulações seguem na mente dos torcedores, algo que nem mesmo o retorno do então capitão ao time em 2012 encerrou. Briga por dinheiro? Desentendimentos em relação às folgas? Nepotismo de Bernardinho, pai de Bruno? A situação foi tão mal conduzida por todos os lados que uma década depois ainda é preciso juntar peças para entender o que realmente aconteceu na mais longa novela do vôlei brasileiro.

Se Bernardinho nunca falou detalhadamente sobre o assunto, o jeito é recorrer a duas peças importantes daquela equipe, o ponteiro Giba e o líbero Serginho. Em suas biografias, ambos trazem a mesma versão: Ricardinho, que já vinha dando claros sinais de insatisfação com outros aspectos do time (como o hotel em que os jogadores estavam hospedados na etapa da Finlândia da Liga Mundial 2007), decidiu não se apresentar para os treinos no Pan no dia marcado, 20 de julho. Isso porque os atletas perderam um dia de folga na volta da Polônia, onde foram campeões do torneio [o Brasil foi campeão da Liga Mundial, na Polônia, em 15 de julho de 2007, cinco dias antes da apresentação para o Pan], ao não conseguirem pegar uma conexão em Paris.

Para aumentar o estresse de todos, quando desembarcaram em São Paulo o acidente com o voo 3054 da TAM dificultou os deslocamentos de diversos atletas para suas cidades, entre os quais estava Ricardinho. Ainda assim, o grupo decidiu manter a data de reapresentação no Rio. Voto vencido, o levantador optou por permanecer com a família em Maringá e se apresentar somente quando achava que era o certo, no dia 21 de julho. O caos aéreo vivido pelo Brasil naquela semana também afetou o ponta Dante, outro a só chegar no sábado, mas os conflitos anteriores com o armador culminaram na radical decisão da comissão técnica.

E a questão do dinheiro? De fato, houve uma discussão interna naquela seleção sobre o assunto. A exigência do COB (Comitê Olímpico Brasileiro) em contar com o badalado time no Pan-americano em casa fez com que os atletas exigissem de forma unânime uma contrapartida financeira, já que perderiam dias de descanso do puxado calendário do vôlei internacional. Houve uma discussão sobre o assunto na Finlândia e, após uma certa resistência, Ary Graça concordou em pagar premiação aos atletas. Apesar de estarem do mesmo lado nesta briga específica, Giba diz que Ricardinho já havia irritado os companheiros ao ameaçar deixar a delegação no país nórdico: 'Ricardo desistiu de ir embora. Ficou um clima de merda. (?) Pouco depois, ele chamou Bernardinho para outra conversa a sós e pediu desculpas. Mas, naquele momento, o grupo inteiro já havia sido prejudicado. Todos tinham ficado acordados a madrugada inteira e o pedido de desculpas foi direcionado somente ao comandante'."

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O que Ricardinho diz

Ao lembrar da briga, Ricardinho traz para a conversa momentos intensos que viveu dentro e fora das quadras com os colegas de seleção. Um em especial, com quem dividia bolas incríveis em quadra e o quarto quando estavam em viagem, é destaque no diálogo.

"O Giba era um cara que sabia lidar muito bem com a derrota e com a vitória com a mesma postura. Guerreiro, lutador, e gostava de ganhar também. Mas em toda história tem o mocinho, que é sempre o que dá entrevistas, que se destaca. E tem o maluco, descontrolado, nervoso, descabelado, como eu, que passava direto e não queria papo com ninguém"

"Essa é minha e tive que assumir o ônus e bônus da minha personalidade para seguir em frente. [Tive de] assumir ser o vilão".

Ricardinho admite ter se sentido sozinho durante essa fase, e que muito disse me disse levou a história do corte em 2007 a atingir proporções irreversíveis, impossibilitando sua volta ao grupo na época. "O vagão saiu do trilho e, quando fui ver, já não voltou mais para o eixo".

Somente em 2010 o técnico e o levantador voltaram a se falar. Em 2012, Ricardinho trouxe pra casa mais uma medalha no peito, desta vez de prata nos Jogos Olímpicos de Londres.

Flávio Florido/UOL

Crise e quadra

Atualmente, Ricardinho vive um momento delicado como dirigente do Maringá Vôlei. Um calote do principal patrocinador do time deixou os jogadores com mais de quatro meses sem pagamento. Oito jogadores abandonaram o time no meio da Superliga, quando o time maringaense era o sétimo colocado da elite do vôlei brasileiro. O torneio foi considerado finalizado pela Confederação Brasileira de Vôlei em abril.

"Foi um baque", admite o jogador, que diz que a situação está nas mãos dos advogados e que a permanência do time no Paraná não é certa. Se você estranhou, a palavra não está errada: aos 44 anos, ele voltou a jogar por três partidas na atual temporada "para ajudar os meninos". Por causa da crise financeira, faltaram jogadores em quadra durante a Superliga deste ano.

Com os problemas financeiros acabou também o projeto social que o atleta mantinha na cidade, que cuidava da iniciação esportiva de mais de 400 crianças, inclusive da sua filha mais nova. "A falta de categorias de base no Brasil é uma realidade no vôlei, o que dificulta o encontro de novos talentos no país. Eu comecei aos nove anos. A busca de patrocinadores, então, nem se fala. A gente sofre na saúde, educação e no esporte. Imagina após a pandemia", desabafa Ricardinho.

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