Prato de comida FC

Clubes pequenos cortam elencos inteiros em meio à paralisação pelo coronavírus, e jogadores vivem incerteza

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Gabriel Machado/AGIF

Os grandes clubes do futebol brasileiro estão preocupados com as finanças em meio ao avanço do coronavírus que paralisou todas as atividades por tempo indeterminado. Redução parcial e provisória nos salários dos jogadores acima de R$ 40 mil, relaxamento no pagamento de direitos de imagem e antecipação de direitos de transmissão são algumas das medidas em análise, como mostrou o UOL Esporte.

Mas o mundo é diferente do outro lado da ponte. Enquanto os donos das maiores receitas do esporte nacional planejam cortes salariais, tem time que está cortando o elenco inteiro em meio à paralisação.

O caso é simples: a última contagem da CBF fala em 742 clubes profissionais de futebol, mas só 128 disputam o Campeonato Brasileiro, da Série A à Série D. Ou seja, mais de 80% das equipes não estão preparadas para pagar mais do que quatro ou cinco meses de salário ao ano, enquanto durarem os Estaduais. Um enorme grupo de jogadores profissionais e funcionários já começa a se inquietar em meio à pandemia.

Para jogador de clube grande, a preocupação é o calendário, é manter a forma. Para jogador de clube pequeno é a sobrevivência, é não deixar a sua família passando necessidade.

Entre depoimentos anônimos (como o anterior) e outros de cara limpa, como do meio-campista Kaio Wilker, do Rio Branco-PR, a conclusão é única: não está fácil para ninguém. Mas para alguns está pior ainda. "Só tínhamos essa competição para alcançar uma visibilidade. Era nosso prato de comida jogo após jogo. Agora nem sabemos se volta. É esperar essa pandemia sanar."

Gabriel Machado/AGIF

Escalada

A sensação é de que quanto mais você escala, mais longe do topo da montanha você está. É esquisito. O tempo é mais curto, o ar mais rarefeito e os obstáculos cada vez maiores. Mas você já escalou tanto que desistir agora não é uma opção. E aí você simplesmente continua.

Kaio Wilker, 27, não faz escalada. Mas a metáfora também cabe no futebol. Ele tem 27 anos e nas últimas temporadas enfrenta um obstáculo de grandes proporções para quem ainda não chegou ao topo. São os contratos curtos. Há emprego no começo do ano graças aos Estaduais. Mas, no segundo semestre, a história muda e as portas fecham. Isso se repete em looping, ano após ano.

Em 2020 ele foi contratado pelo Rio Branco, que fechou a primeira fase do Campeonato Paranaense em sétimo lugar, classificado para as quartas de final. Kaio foi titular em 10 de 11 partidas, um dos destaques do time que também conseguiu vaga na Série D. Caso passasse mais uma fase, jogaria também a Copa do Brasil do ano que vem. Mas aí a Terra parou, a escalada também. O contrato de Kaio, até abril, não será renovado.

Nós plantamos e estava na hora de colher. Jogar quartas de final, levar o time a um patamar maior e ter visibilidade para alcançar voos maiores na carreira. Nada disso vai acontecer.

Robson Mafra/AGIF Robson Mafra/AGIF

Kaio Wilker deixou Paranaguá e voltou a Goiânia para a casa dos pais, Luciano e Márcia, durante a quarentena. Ele está casado há quatro meses com Letícia e ainda luta para se estabilizar de vez. "Eu tenho muita fé em Deus. É o que nos mantém nesses momentos de crise que todo ser humano passa. Tem dois ou três anos que eu tenho enfrentado esses contratos curtos, é a fé que me dá força", desabafa.

"Eu acabei de casar, ainda tenho que adquirir minha moradia própria para ter uma base onde voltar com a minha esposa, estabilidade mesmo. Infelizmente existem esses altos e baixos do futebol. Agora, junto com essa crise do coronavírus, só tende a piorar. Preciso adquirir meu carro próprio e procurar um imóvel, um financiamento. Mas para isso preciso estar empregado e recebendo. Eu mantenho fé em Deus que as portas vão se abrir e tudo vai se resolver, estou correndo atrás. Mas é complicado, cara."

Kaio tem feito treinos em casa para manter a forma. Até sacos de arroz usa para improvisar os pesos de academia. Desistir não é uma opção, lembra? A tal estabilidade só vai ter que esperar um pouco mais.

Robson Mafra/Robson Mafra/AGIF

Não sobrou ninguém

O Rio Branco, de Kaio Wilker e mais 30 jogadores inscritos no Campeonato Paranaense, anunciou na semana passada a liberação de todo o elenco, comissão técnica e funcionários. É claro que a decisão tem a ver com a orientação das autoridades de saúde de evitar aglomerações e contato entre pessoas para diminuir a proliferação do novo coronavírus.

Mas a grande razão é financeira: não há dinheiro para manter atividades sem uma data prevista para retorno. Assim, os contratos válidos até abril serão respeitados, mas não renovados. Caso o Estadual retorne, é possível que os ex-jogadores desempregados sejam trazidos de volta, mas a base do time será de jovens do clube. O técnico Tcheco (aquele mesmo, ex-jogador de Coritiba e Grêmio) não voltará.

Essa é a realidade de boa parte dos clubes brasileiros nesta fase de jogos suspensos, estádios vazios, patrocínios cancelados e incerteza. Muita incerteza.

O clube não vai ter condições de pagar enquanto a gente estiver em casa porque não tem renda e não tem calendário. Os jogadores entenderam, é um momento difícil. Aqui não é Athletico Paranaense, Coritiba ou Paraná. Se bem que até eles vão ter dificuldade de bancar. É um pouco preocupante, não sabemos quando vai voltar, se é que o Estadual vai voltar. Acaba prejudicando o segundo semestre, mas temos que entender

Paulo Henrique, volante do Rio Branco-PR

Estávamos conquistando os objetivos e fomos pegos de surpresa. Os clubes de menor expressão vão sofrer muito por falta de público. Exemplo: o Rio Branco mesmo, o que ajuda muito o time são os torcedores que lotam o estádio. Mas nós temos que pensar primeiro no ser humano. Eu sei que vai ser muito difícil para todos o que está acontecendo, mas temos que ter muita fé que tudo isso vai passar. Só o tempo nos dirá

Douglas Santos, meia do Rio Branco-PR

Robson Mafra/AGIF Robson Mafra/AGIF

Na pontinha da caneta

O UOL Esporte fez contato com 15 jogadores e funcionários de diferentes clubes que já tomaram a decisão de não renovar os contratos que vencem em abril ou maio, ao término dos Estaduais. Alguns não quiseram falar sobre os possíveis efeitos da paralisação porque ainda têm contrato em vigor e esperam receber os salários. Outros disseram não querer "se queimar". Dois toparam dar entrevista sob anonimato, o funcionário de um clube da Divisão de Acesso do Campeonato Gaúcho e um jogador da Série A3 do Paulistão. Ambos têm medo.

"O que tem de jogador com depressão não está escrito", conta o atleta. "Os jogadores estão parados em casa vivendo uma incerteza. Eu acho que muito trabalhador de outras profissões vai viver isso também, vai perder emprego, se desdobrar, se frustrar. Para muita gente, é tudo contadinho na pontinha da caneta e não ter nem isso vai destruir a mente." O jogador diz que não fala do próprio caso, mas de conhecidos.

Já a Segunda Divisão do Gauchão teve a primeira rodada em 1º de março. Até agora, foram apenas três partidas. O campeonato mal começou e já se discute o seu futuro durante a paralisação. "Os clubes não têm outras competições desse peso, então tem possibilidade de o campeonato ir para setembro. Mas aí precisa de uma nova pré-temporada e os clubes precisariam bancar, mas não têm dinheiro. Nosso presidente disse que não adianta falar nada, porque amanhã pode mudar tudo", relata o profissional.

Divulgação/Site oficial do Oeste

Rael: "a vida fica sem rumo"

A decisão foi de não voltar a São Domingos do Maranhão por enquanto. Distância, riscos, problemas estruturais... tudo pesou. Mesmo com o Campeonato Paulista paralisado pelo surto da Covid-19, o lateral-esquerdo Rael, do Oeste, ficou em São Paulo e está morando na casa do seu empresário, Maurice Cohen.

Ele é titular do time e deu até assistência na vitória por 3 a 0 sobre o Botafogo. Mas não sabe o que será do futuro.

O caso de Rael carrega um pouco de azar. Ele pertence ao Corinthians e está emprestado ao Oeste até 1º de abril. Os dois contratos - tanto o de empréstimo, como o definitivo - terminam juntos. E por enquanto não há qualquer perspectiva: "Antes de tudo ficar parado, eu estava bem seguro sobre o término do contrato. Estava fazendo uma boa campanha no Oeste. Agora se torna algo complicado, mas esse tipo de assunto deixo para o meu empresário. Se for para renovar, vamos conversar. Senão, tem outros lugares para dar sequência."

Está bem difícil. Futebol é o que amo fazer e meu sonho. Ficar nessa situação indefinida, sem saber quanto tempo vai levar, é bem difícil. A vida fica sem sentido, sem rumo, sem direção.

Rael deixou o Maranhão para fazer testes no Athletico Paranaense. Depois jogou na base do Santos e da Portuguesa Santista até chegar ao São Paulo, onde venceu três títulos pelo sub-17 e fez amizade com Antony, Igor Gomes e Helinho. Em seguida atuou por Noroeste e Avaí, clube em que se destacou na Copa São Paulo e chamou atenção do Corinthians. Neste ano, sem idade para atuar na base, foi liberado pelo técnico Tiago Nunes e parou no Oeste. Em uma semana não terá nada.

Mas é claro que isso não o faz parar de sonhar.

"O Corinthians tem uma escassez na lateral esquerda, faz muito tempo que não se firma ninguém. Sinto que pode ser uma ótima oportunidade, mais um teste não custa. A diferença é que quem está lá teve chance, eu não tive."

Luciana Flores/Vitória da Conquista

Por dentro dos clubes: "para onde você olhar é prejuízo"

O Vitória da Conquista, oitavo colocado do Campeonato Baiano, liberou todo o elenco por causa da interrupção do calendário. De acordo com o presidente Ederlane Amorim, "apenas antecipamos essa rescisão dos atletas para não deixá-los aqui um mês parados": "São medidas que estão sendo adotadas até por vários clubes desse nível, que têm uma luta diária muito grande para poder se manter. Não tivemos alternativa."

O clube calcula prejuízo entre R$ 150 mil e R$ 170 mil com a antecipação das rescisões — orçamento total do time para a temporada é de R$ 1,1 milhão. Acordos pendentes com patrocinadores que estão cancelando contratos podem aumentar o buraco, segundo o mandatário: "Para onde você olhar é prejuízo. Seja técnico, financeiro, psicológico. Mas são situações que todos estão enfrentando, é a realidade e temos que encará-la. Vamos trabalhar para melhorar essa situação e aguardar se teremos algum subsídio de federação, CBF. Não só a gente, mas todos os clubes que se sentirem prejudicado em uma ação posterior."

Luciana Flores/Vitória da Conquista

"Foi por uma causa justa. Jogador nenhum questionou isso. A gente não tem culpa, mas o clube também não tem. O presidente acertou com a gente, pagou todo mundo e estamos liberados. Essa paralisação é prejuízo para todos. Eu não, joguei em clubes grandes, fora do país, e consegui guardar alguma coisinha... Mas a maioria deles [companheiros] está buscando espaço no futebol, em algum clube grande. Se demorar muito essa situação esses jogadores vão passar dificuldades, porque eles vivem disso."

Nonato, 40, atacante ex-Bahia, dispensado do Vitória da Conquista

"Resta ter paciência"

O assunto é imprevisível. Temos preocupações com o que vai se fazer com os Estaduais, quando os atletas voltam, contratos de trabalho, se haverá rescisões, se vão pagar ou não pelas rescisões. Aguardamos o posicionamento da CBF, mas acredito que eles ainda não tenham condição de estabelecer um calendário

Felipe Augusto Leite, presidente da Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf)

Sendo formalizadas, as férias coletivas serão importantes, porque se ganha tempo. Mas a situação depende de muitos fatores externos à vontade dos envolvidos. Nosso olhar é vigilante e participativo, junto com a comissão nacional de clubes, CBF, sindicatos estaduais e atletas. Resta ter paciência

Felipe Augusto Leite, sobre como o órgão observa os efeitos da paralisação

Fernando Moreno/AGIF Fernando Moreno/AGIF
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