A base do craque

Pai foi ambulante e mãe passou fome antes de Endrick virar o grande destaque da base do Palmeiras

Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Andre Porto/UOL

Uma ligação recebida no fim de 2016 mudou a vida do casal goiano Douglas e Cíntia Ramos. Antes do arco-íris, entretanto, os dois enfrentaram dias chuvosos longe de casa. Quem ligou para o celular de Douglas foi o coordenador da base do Palmeiras, João Paulo Sampaio. As boas novas eram que o filho do casal, Endrick, então com dez anos, havia sido aprovado no teste para compor o elenco júnior do clube.

O clube ofereceria moradia para que o garoto se mudasse de Valparaiso de Goiás para São Paulo, acompanhado por apenas um dos pais. Douglas e Cíntia teriam de decidir quem abandonaria a própria vida para viver a do filho. Só que a matriarca de voz firme, chefe de família que é, foi irredutível: se não fossem os três, não iria ninguém.

Douglas retornou a ligação de João Paulo e explicou a decisão da família. Não houve tanta hesitação, afinal, tratava-se de um menino acima da média, que treinava com garotos mais velhos sem qualquer diferenciação desde sempre. Quando treinava com os garotos da mesma idade, para equilibrar o jogo, Endrick, canhoto, só podia chutar com a direita —caso contrário, era falta para o rival.

Com o sim do Palmeiras, Cíntia concordou em viajar antes, enquanto Douglas aguardava o tempo de aviso prévio para se desligar do trabalho —ele era auxiliar de limpeza no estádio Mané Garrincha, em Brasília. Endrick se apresentou ao clube em janeiro de 2017. Enquanto o menino vivia o começo de um sonho, a mãe encarou um dos períodos mais difíceis que já viveu. Ela e Endrick moravam em uma casa com outros tantos garotos que compartilhavam o mesmo sonho —muitos deles sozinhos, já que a família não pôde acompanhar.

Ao filho, nada faltava: ele fazia três refeições por dia no Palmeiras, onde passava a maior parte do tempo. A mãe não tinha a mesma sorte. A busca por emprego na capital paulista não trazia frutos, e o salário de auxiliar de limpeza em Brasília de Douglas não era suficiente para bancar duas casas. "Foi a primeira vez —e a última, se Deus quiser— que passei fome", diz Cíntia, tentando esconder as lágrimas.

Andre Porto/UOL

Choro às escondidas

A matriarca sentiu o estômago doer algumas vezes naquele início de ano. Quando acontecia, ela se trancava no banheiro da casa e ligava para o marido, "com nó na garganta"; dizia que estava contando as moedas para tentar comprar um miojo ou um pão amanhecido. Ele mandava o quanto de dinheiro podia, suficiente para comprar leite em pó e farinha, "que sustentava um pouco".

Quando cozinhava, os meninos que moravam na casa elogiavam o cheirinho da comida. Ela dividia o pouco que tinha entre todos eles. "Não conseguia negar, dizer que só eu comeria. Eram crianças e estavam sozinhas. Como que faço uma coisa dessas? Não faço", relembra. Endrick sequer imaginava a situação pela qual a mãe estava passando, Cíntia nunca disse nada ao filho sobre as dificuldades. O choro vinha às escondidas, enquanto trancada no banheiro, sem que ele percebesse.

Se ele imaginasse que a mãe estaria passando fome, teria insistido para voltar para casa, mesmo que isso custasse seu próprio sonho. Ela sabia disso, e não queria que o filho abrisse mão da oportunidade que teve. "Eu via a alegria no olhar do Endrick, não podia fazer isso desaparecer".

Endrick é um menino família, segundo os pais. Sempre foi. Hoje, seu aconchego é Noah, o irmãozinho de dois anos. "Faz tudo por esse irmão", diz Cíntia.

Andre Porto/UOL

O sonho de menino

Douglas confessa não saber de onde veio a inspiração para o nome do filho. A decisão, como sempre, veio de Cíntia, e o marido não questionou. Por ele, seu primogênito levaria o nome de algum grande jogador de sua época. "Mas de jeito nenhum", concluiu a mãe, botando um ponto final no assunto e criando o próprio ídolo a ser homenageado pelas gerações futuras.

Com o sucesso precoce no Palmeiras, o nome que ela criou virou homenagem. Não é incomum, hoje em dia, encontrar filhos de pais palmeirenses chamados Endrick. "Conheço vários. Algumas mães me pediram até autorização", conta a matriarca. Douglas é um apaixonado por futebol, e foi por influência do pai que o menino começou a jogar.

Na primeira escolinha que frequentou, Endrick tinha quatro anos e jogava com meninos de seis ou sete —era a categoria mais baixa oferecida naquele complexo esportivo. A diretora hesitou em deixar o menino jogar com os outros. Foi só depois de muita insistência dos pais que ela cedeu: deixaria Endrick jogar, mas, se ele caísse e chorasse, sairia de quadra. "Ela disse que os meninos menores caíam e se machucavam quando jogavam com os maiores. Se o Endrick não se machucasse, poderia ficar".

Endrick entrou. Pegou a bola, foi para cima, perdeu e correu atrás. Até caiu, mas nem chegou perto de chorar. "Pode deixar o Endrick aqui", disse, então, a diretora. "Não sei o que ele tem, mas é diferente; é um brilho, algo diferente de todos os meninos que já passaram por aqui".

Foi a primeira escolinha do garoto, mas não a última. A cada uma que ficava pequena para Endrick, os pais buscavam uma nova.

Até que o diretor de uma delas insistiu para que o menino fizesse uma peneira do São Paulo que aconteceria na cidade. O teste era apenas para meninos com mais de dez anos, mas ele pediu para o garoto ir assim mesmo. "Eu fiquei apreensiva, mas o Douglas me convenceu. Eu disse: 'Se acontecer alguma coisa com meu filho, você é o responsável'. Fui junto, claro. Foi assistindo a esse teste que caiu a ficha: 'Acho que ele vai longe'", conta Cíntia.

E foi. Mais precisamente, 910 quilômetros de distância. O convite para o teste no Palmeiras veio após Douglas publicar alguns vídeos do filho jogando na internet.

Andre Porto/UOL Andre Porto/UOL

Subemprego na metrópole

Depois de quatro meses sozinha com o filho em São Paulo, Cíntia reencontrou o marido. Douglas começou a busca por emprego, mas os ventos não pareciam querer soprar na direção da família. Devido a uma deficiência na mão, o pai de Endrick acumulou uma porção de "nãos". Até que o subemprego pareceu a única solução possível.

Cíntia acordava às três da manhã. Ia para a cozinha e assava um bolo; às vezes, uma torta. Douglas passava um café fresquinho e enchia duas ou três garrafas térmicas. Às quatro, o casal saía de casa para vender café da manhã em frente ao metrô Barra Funda, na zona oeste da cidade.

Eram dois entre outros tantos vendedores que já ocupavam aquele espaço há mais tempo. Na tentativa de captar clientes, Douglas e Cíntia passaram a vender seus produtos mais barato: o café custava R$ 0,50, enquanto o pedaço de bolo ou de torta saía por R$ 1,50. A estratégia irritou outros ambulantes. "Mandaram a gente sair dali", relembra Douglas. O casal passou a ficar mais longe da entrada do metrô. "A gente sinalizava onde estava com cartazes na parede em formato de seta. Eles diziam 'café por R$ 0,50' e apontavam para onde a gente ficava".

Não adiantou. Os concorrentes, Douglas conta, ameaçaram e tentaram pegar seus produtos. "Começou a ficar perigoso. Desistimos".

Andre Porto/UOL

Oportunidade no Palmeiras

Não demorou muito até que a experiência como funcionário do estádio Mané Garrincha começasse a abrir portas para Douglas. Ele soube que o Palmeiras tinha uma vaga aberta para auxiliar de limpeza e deixou o currículo. Passou pela entrevista e foi aprovado no processo seletivo. A condição imposta por ele, no entanto, era que ninguém soubesse de que era pai de Endrick. "Não queria prejudicar a trajetória do meu filho, nem que me dessem emprego por causa dele. Eu queria provar que era capaz", diz.

O segredo ficou guardado entre ele e os chefes.

Logo, Douglas passou a trabalhar dentro do vestiário do elenco profissional. Conheceu (e se surpreendeu com) Dudu, a quem considerou "gente boa demais". O camisa 7 do time atual sempre o chamava de Douglinhas. Elegeu Jailson como o mais legal e querido.

Mesmo em um ambiente de acolhimento, Douglas parou de sorrir. Ele já tinha dificuldade para mastigar e a situação piorou quando perdeu alguns dentes —naqueles dias, sobravam só sete na boca. Estava magrinho, magrinho, quando Jailson fez o pedido: "Douglinhas, liga aí para a rainha". Ao falar com Cíntia, o goleiro perguntou por que Douglas havia parado de sorrir. "Ele tem vergonha dos dentes", disse ela.

Os jogadores se reuniram e presentearam o amigo com os implantes sem sequer imaginar que Douglas era pai de uma futura estrela. "Eu gosto de maçã, mas tinha que cortar em pedacinhos pequenos, não conseguia morder. Agora eu pego a bichinha e pá, mordo", ri. "Até hoje não sei quem ajudou. Como o Jailson não está mais no Palmeiras, acho que ele pode me contar agora".

Douglas celebra, já que a partir de então, os motivos para sorrir passaram a ser muitos. Endrick deslanchou tanto que ele foi orientado a, depois de quase três anos, pedir demissão do clube e permitir que o filho construa, sozinho, sua história de sucesso.

Um adolescente-adulto

Aos 15 anos, Endrick começa a caminhar com as próprias pernas. Ele estava no elenco do Palmeiras que conquistou, de forma inédita, a Copinha em 2022, e ainda foi eleito o melhor jogador da competição mesmo sendo um dos mais jovens daquele time. Hoje, Endrick é parado na rua. No Brasil e em Paris. Ele tira fotos e abraça os fãs o quanto pode. "Eu brigo com ele, Falo: 'olha no olho das pessoas, menino'", diz Cíntia. "Tem que ser educado, cumprimentar por igual desde o porteiro até o presidente".

Adolescente, Endrick é calado, tímido, mas cumprimenta e se despede dos pais com beijos e um tímido "eu te amo". Cíntia não dá moleza, nem nunca deu.

"Quando a gente tinha acabado de chegar em São Paulo, o Endrick, nessas brincadeiras de criança, machucou um coleguinha. Caiu em cima dele, e o pai do menino veio me falar. Vê se pode? Morri de vergonha, briguei com o Endrick. Onde já se viu? Deixei de castigo. Só que ele era pequeno, não tinha celular, nem videogame. Precisava tirar alguma coisa dele, era castigo, afinal de contas. Bom, tirei o futebol. Ele jogaria a Copa Nike no dia seguinte, e eu simplesmente disse: 'Não vai jogar'", relembra a mãe.

Os homens do Palmeiras se desesperaram. Ligaram e tentaram convencer a mãe de que o menino precisava jogar, afinal, ele era o principal atleta entre os pequenos da base. "Ligaram até para mim, lá em Goiás", relembra Douglas. "Falei 'Mulher, como assim o Endrick não vai jogar? Você está louca?'", ri. A mãe foi irredutível:

"Antes de ser atleta do Palmeiras, ele é meu filho. E meu filho está de castigo, não vai jogar. Pronto, acabou".

O menino ficou de fora da partida, já que mãe é quem manda e não tem quem convença. Endrick nunca mais precisou ficar de castigo depois dessa. Por pouco. "Achei que ele tinha aprontado quando recebi uma ligação da escola esses tempos, pedindo que eu fosse até lá. Estava pronta para brigar com ele, até que a diretora me diz que oito meninas estavam brigando por causa dele. Vê se pode? As meninas deixaram de ser amigas porque ele respondeu uma de um jeito, outra de outro jeito. Não entendi nada. Aí, Douglas e eu tivemos que sentar e conversar com o Endrick. Pedi para ver as conversas. Ele chamava todas as meninas de 'meu amor', 'vida'. Engraçado que a mãe ele não chama de amor, né? Falei: 'Que que é isso, Endrick, todas as meninas são sua vida?'."

O casal cai na gargalhada. "Agora ele está namorando, aquietou", completa Cíntia.

Marcello Zambrana/AGIF

Endrick, a promessa

Endrick é a principal promessa da base do Palmeiras. Não estreou pelo elenco profissional do clube porque ainda não tem idade para assinar um contrato profissional —em 21 de julho, isso muda. Endrick completará 16 anos e, ao que tudo indica, terá um futuro promissor entre os ídolos do futebol brasileiro.

Em um feriado frio, ainda quando jogava pelo sub-11, Endrick resmungou por ter de acordar cedo para treinar. Ele queria um dia de adolescente comum, podendo dormir até tarde e assistir a qualquer bobagem na TV. "Pai, por que eu tenho que treinar hoje? É feriado", questionou.

Douglas se sentou ao lado do filho e disse: "Sua mãe e eu conversamos com você, perguntamos se você queria ser jogador de futebol. Você disse que sim. Mudamos nossa vida para vir para cá. Se você quiser realmente ser jogador de futebol, ótimo, estamos aqui para te apoiar. Se você não quiser, ótimo, também vamos te apoiar. Mas você precisa ser honesto com a gente. Se você disser que não quer, a gente volta para Brasília. A gente tem nossa casa, eu arrumo um emprego por lá e a gente volta a viver nossa vida. Não tem problema, filho. Você tem que estar feliz, só assim vai fazer sentido".

Em um pulo, Endrick estava de pé. Foi a última vez que ele questionou alguma obrigação da vida de atleta. Hoje, os quatro moram em um apartamento próximo ao centro de treinamento do Palmeiras, bancado por eles mesmos. A família continua na peleja, apoiando o sonho do menino. Agora sem tantos perrengues —com a mesa farta no café da tarde, a mãe cantarola: "Oh, tempo rei."

Andre Porto/UOL Andre Porto/UOL

+Especiais

Mathias Pape/UOL

Uma pizza para Casimiro: A saga do UOL Esporte em busca de uma entrevista com o streamer

Ler mais
Globo/Sérgio Zalis

'Sua narração é um crime': Natália Lara, da TV Globo, lida com ódio diariamente por ser mulher

Ler mais
Keiny Andrade/UOL

A amizade de Juca e Trajano, que estrearam Cartão Vermelho, o novo programa no UOL

Ler mais
Marcelo Justo/UOL

Chico Lang relata surto psicótico e como se recuperou após morte dos filhos Paulo e Pedro

Ler mais
Topo