O ressentimento de Rogério Micale se estende também a Tite, que não se envolveu diretamente na formulação do projeto olímpico. O ainda comandante da seleção principal, porém, se aproximou da equipe durante a Rio-2016. Lembrando que, ainda que tenha levado o ouro, o time chegou a penar pela competição.

Há uma relação cordial entre ambos, mas Micale não disfarça a mágoa. Ele questiona a falta de uma postura mais firme do treinador do time principal, a fim de negar qualquer participação direta na conquista brasileira.

Relembremos: o Brasil começou mal os Jogos Olímpicos, empatando sem gols com África do Sul e Iraque. A classificação ao mata-mata veio como consequência de um 4 a 0 sobre a Dinamarca, vitória responsável por embalar o elenco para o ouro.

O triunfo possui uma característica importante: com as entradas de Walace e Luan na equipe titular, o Brasil quebrou o jejum de gols e embalou para o título com triunfos sobre Colômbia (quartas de final), Honduras (semifinal) e Alemanha (final, nos pênaltis).

Esta alteração, segundo Micale, foi muitas vezes atribuída à presença de Tite, que, ao assumir a seleção principal em junho de 2016, recusou-se a dirigir o time olímpico no Rio de Janeiro, dois meses depois. O comandante do time principal visitou a delegação em Salvador, às vésperas do decisivo confronto diante da Dinamarca.

"Na época, vi comentários e não liguei, não me importei. Quando ganho algo, gosto de dividir com muita gente. Mas, quando chega ao ponto de a pessoa que está sendo colocada como possível mentor [Tite], achar que aquilo é uma verdade, aí não. Acho que faltou um pouco mais de honestidade. Não teve absolutamente nada a ver com a situação. Não gosto de falar muito mais sobre o assunto, mas ainda achei que faltou uma situação mais incisiva de falar: 'não tive participação'. Não teve", desabafa Micale.

"Tudo o que realizei na Olimpíada...as mudanças, fomos nós da comissão técnica. Por exemplo, as entradas de Walace e Luan. Treinava isso diariamente. Aquilo não apareceu do nada. Quem acompanhou meus treinamentos vai perceber que os 15 minutos finais eram com o time com quatro atacantes. Eu queria achar um espaço para o Luan. Veio a oportunidade, eu o coloquei, e ele não saiu mais", disse.

Micale afirma que nunca conversou com Tite diretamente sobre o assunto, em encontros com o treinador ocorridos depois da Olimpíada no Rio de Janeiro. O respeito pelo comandante da equipe principal se mantém, mas se mistura com o julgamento sobre a postura do companheiro de profissão e de CBF nas semanas seguintes ao ouro olímpico do Maracanã.

"Eu até vi menções sobre isso [Tite negar influência na conquista do ouro], mas superficialmente. Sabe quando você deixa um travesseiro de pena e ele estoura em cima de uma montanha? Quando ele estoura, voa pena para todo o lado. Você se arrepende e quer recolher tudo, mas tem pena que nunca mais será achada. Faltou ser mais incisivo naquele momento, dizer 'não tenho nada a ver, não fui eu'. Teve isso no fim, mas alguns momentos deixou pensar, sabe? Isso não gostei", lamenta.

Do ouro em agosto de 2016 à demissão em fevereiro de 2017. O prestígio de Rogério Micale com a CBF teve validade bem curta. Na visão do treinador, a saída precoce, após a campanha ruim no Sul-Americano, reflete o futebol brasileiro: pouca paciência e trabalhos interrompidos abruptamente.

Micale perdeu o emprego ao ficar na quinta colocação no hexagonal final do torneio sub-20 e não classificar ao Mundial de 2017 um time que tinha Lucas Paquetá, David Neres e Richarlison —todos eles hoje naturalmente no radar de Tite.

"Acho que não foi dada a valorização que merecia, também não entendo o motivo. O que tem por trás disso? Não sei. Sou treinador e me preparei para isso. Fui para o cargo em um momento de troca. O treinador que chegou para o time principal [Tite] não quis assumir a olímpica. Sabemos como é assumir o time olímpico e não ganhar, tivemos quem assumiu, não ganhou e foi desligado. Aí ganhei a 'recompensa' nessa", desabafa o técnico.

"Para temos um jogo melhor e mais bonito no futebol brasileiro, e mais qualificado visualmente falando, precisamos de tempo. O treinador é apenas uma peça na engrenagem. Se eu viajar para Liverpool, vou querer comprar ingresso para ver o Liverpool. Não sou torcedor do Liverpool, mas sei que é um bom espetáculo e que verei um jogo bem jogado. É uma equipe com ideias claras, que atua de forma plástica e atrai público", exemplifica Micale. "É isso que nosso futebol precisa entender. Não é só ganhar, independente da forma; por exemplo, ganhar arriscando um chute só. Precisamos qualificar nosso espetáculo."

Depois do trabalho na CBF, Rogério Micale ressurgiu no mercado de treinadores com outro status — fruto do ouro, que se tornou um fardo nos anos seguintes. Em julho de 2017, o treinador recebeu nova boa oportunidade ao assumir o Atlético-MG. A passagem durou apenas dois meses e é lamentada: novamente, o treinador considera que não foi oferecido tempo hábil para o trabalho.

"Infelizmente, não tive tempo nas minhas passagens pelo futebol profissional. Nunca construí uma equipe, sempre peguei trabalho no meio do caminho. No Atlético-MG, que tive maior projeção por tamanho do clube, estávamos envolvido em quatro competições, então tive muito pouco tempo de treinamento; era mais na base da conversa, descansa e joga", reclama.

Ainda no profissional, assumiu o Paraná em fevereiro de 2018 e permaneceu até agosto. Em setembro, foi anunciado com o Figueirense e permaneceu até novembro em Santa Catarina, na última experiência entre os "adultos".

"Não tive em nenhum clube profissional o mínimo de tempo para dar as minhas ideias. O Paraná me deu um pouco mais de tempo e me arrependo de ter entregado o cargo. Poderia até ter caído com o Paraná, mas estávamos lutando. Era um time que mostrava as ideias de jogo, embora não tivesse resultados. Entendo que é questão cultural do futebol brasileiro e que precisamos nos adaptar; sei que preciso arrumar uma forma de poder melhorar essa questão de velocidade e demonstrar meu trabalho mais rápido", encerra, fazendo uma autocrítica.

Quem for avaliar meu currículo e histórico na base, sabe que sou vencedor. Ganhei Copa São Paulo, Copa BH e jogamos todas as finais possíveis a nível nacional, ganhando algumas. Na seleção, fomos medalhistas do Pan, vice-campeões do Mundial e ouro na Olimpíada. É difícil transferir essas vitórias da base para o profissional, já que a base permite você ter um tempo maior para poder maturar o seu trabalho; a cobrança não é imediata

A base sempre ressurge na vida de Micale. Se a maior glória da carreira veio com uma equipe majoritariamente sub-23, o recomeço na carreira também ocorre entre jovens. Em fevereiro desde ano, o treinador assumiu o sub-20 do Cruzeiro, porém mal trabalhou na Toca da Raposa.

A pandemia de coronavírus limitou as atividades a apenas duas semanas de campo e muita análise durante este período de quarentena. O WhatsApp surgiu como aliado para aproximar-se dos comandados e sentenciar a forma de jogo planejada para o retorno.

"Passamos um protocolo de trabalho para os jogadores se manterem minimamente bem com trabalhos em casa, principalmente em relação à questão física. Passei aos jogadores alguns vídeos das minhas ideias de jogo e como pretendo trabalhar pelo WhatsApp, também em termos e princípios táticos que vamos utilizar. Vou mandando fotos e vídeos de comportamento em campo e de como quero trabalhar para os atletas. Nossa rotina é de estudo, análise e envio de treinos aos jogadores, tentando preencher o tempo da melhor forma possível", comentou.

Neste cenário, a seleção olímpica ressurge como exemplo. Ser protagonista, como o time do ouro, é o objetivo de Micale no sub-20 do Cruzeiro. O fardo de situações vividas na época olímpica e pós-conquista fica em segundo plano. Alguns aspectos do modus operandi da Rio-2016 serão usados agora para retomar o sucesso de outrora.

"Quero ter um jogo mais dominante, ser protagonista, jogar no campo adversário e recuperar a bola rapidamente pós-perda. São ideias que norteiam meu trabalho, que estavam na seleção olímpica e também no Paraná", disse Rogério Micale. "Sempre queremos propor o jogo."