Ponto de ruptura

O que levou grandes da Europa a tentar a maior revolução do futebol no século? E por que a ideia sobreviverá

Arthur Sandes e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo SOPA Images/SOPA Images/LightRocket via Gett

A Superliga dos grandes clubes da Europa, que propôs a criação de um torneio de 20 clubes, 15 deles fixos e cinco convidados, durou dois dias. Real Madrid, Barcelona, Atlético de Madri, Juventus, Inter de Milão, Milan, Arsenal, Chelsea, Manchester City, Manchester United, Liverpool e Tottenham fundaram a iniciativa em um domingo à noite. Na segunda-feira, começaram os protestos de imprensa, torcedores e jogadores. Na terça-feira, os seis ingleses pularam do barco -os italianos e o Atlético de Madri fizeram o mesmo no dia seguinte.

Tivesse dado certo, seria a maior revolução do século no futebol, comparável ao efeito que a Lei Bosman (que acabou com o passe, o vínculo entre jogador e clube que não dependia de contratos) teve nos anos 90. A iniciativa morreu, mas a ideia vai sobreviver. Por que? Porque os vilões não estão só de um lado.

O que levou a Superliga a ruir foi a pressão da opinião pública contra clubes retratados como "gananciosos que não se importam com o esporte" —afinal, o torneio propunha que 15 clubes teriam lugar cativo no torneio mais importante do planeta sem risco de rebaixamento e sem critérios para os clubes convidados. O problema é que o outro lado, aquele da Champions League e da Copa do Mundo, ou melhor, da Uefa e da Fifa, também tem culpa no cartório.

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Neil Hall - Pool/Getty Images
Camiseta que jogadores do Brighton usaram em protesto contra o Chelsea

Ganância do outro lado

Para resumir, a Superliga propunha um supercampeonato entre as potências europeias. Começaria com um impulso financeiro que poderia dar até R$ 1,8 bilhão para o campeão -isso é quase o triplo do que ganha o vencedor da Liga dos Campeões. Além disso, um torneio que tem apenas jogos contra potências atrai televisão. E a certeza desses confrontos aumentaria, potencialmente, o valor dos direitos de transmissão desse torneio.

Então, é claro que o motivo dessa tentativa de ruptura era financeiro. Mas não foi só isso. É também uma cartada para aumentar o poder dos clubes. E que escancara que do outro lado também há ganância. Não foi por acaso que, um dia depois do anúncio da criação da Superliga, a Uefa mudou o formato de disputa da Champions League, aumentando de 32 para 36 o número de participantes e aumentando em quatro partidas a duração do torneio.

O fenômeno de multiplicação dos jogos também acontece nas seleções. A Copa do Mundo, organizada pela Fifa tinha 16 times até 1982, quando foi disputada pela primeira vez com 24 equipes. No Qatar, em 2022, serão 32 seleções —mas a Fifa queria 48 e só adiou o aumento para 2026 por questões logísticas. O mesmo acontece com a Eurocopa, da Uefa, que começou com oito times e hoje tem 24.

A expansão dos torneios não é por amor ao jogo, mas por dinheiro. Torneios maiores geram acordos maiores de publicidade e com a televisão. E quem embolsa o lucro são os organizadores. Os clubes, que pagam o salário mensal dos jogadores, não têm influência nenhuma nessas decisões.

Miguel A. Lopes/Pool via REUTERS ORG XMIT: AI

"O show tem de continuar"

O depoimento a seguir é de Pep Guardiola, técnico do Manchester City, dado em uma entrevista coletiva ainda antes da saída do clube da Superliga —e focado principalmente nas críticas que os seis clubes ingleses (Arsenal, Chelsea, City, United, Liverpool e Tottenham) recebiam naquele momento. E explica, com muita objetividade, os problemas que levaram a essa ruptura.

"Eu já disse muitas vezes: quero a melhor competição, a mais difícil possível. E não é justo quando um time luta, luta, luta, chega ao topo e não pode se classificar porque o sucesso já está garantido. Algumas pessoas dizem que talvez quatro ou cinco times podem subir e jogar essa competição [a Superliga], mas o que acontece com as outras 14 ou 15 que podem jogar temporadas ruins e sempre estarão lá? Isso não é esporte, é outra coisa.

Não vamos ser cínicos e ignorar que cada clube age de acordo com seu interesse. Mas olhe para a Uefa, para a Premier League. Todos agem de acordo com o seu interesse. Se você olhar para a Uefa, ela também fracassou. No período mais importante da temporada, depois de jogar dez meses para conquistar um título, Lewandowski se machucou em jogo da seleção e não jogou uma partida importante contra o PSG. Ele não jogou porque estava com a seleção em uma partida que a Uefa decidiu realizar.

A Uefa estava pensando em negócios, não no Bayern de Munique. Lewi se machucou em um jogo contra Andorra e não pode jogar nas quartas de final da Liga dos Campeões. E a irresponsabilidade é dos seis times que estão aqui? Do Bayern? É da Uefa também. Mas quando falamos isso, eles não ouvem. Assim como a Premier League aqui. Todos pensam só neles mesmos

Quantas vezes falamos que era preciso que ligas nacionais, Fifa e Uefa organizem o calendário? Há quanto tempo falamos nisso? Séculos... Eles ouvem? Não ouvem. Claro que está ficando pior. Mas quem é que liga? É um negócio, é dinheiro. Mas é só para esses seis times? Não, é para todo mundo. Para a Fifa também, nas Copas do Mundo. Começamos com 16 seleções, 22, agora 32 e vamos jogar uma Copa com 50 países. E está tudo bem. E a Uefa quer mais jogos também.

A Uefa é responsável pelos árbitros, ótimo. Só que o resto é com os clubes. E eles não ouvem técnicos, não ouvem jogadores, quando falamos que, ao final da temporada, queremos duas ou três semanas de férias. Eles simplesmente recomeçam tudo de novo. E você precisa estar lá e se machuca. Mas qual o problema de se machucar? Nenhum. Você só precisa trazer um outro jogador. Coloca outro. O show precisa continuar."

AFP PHOTO / ALAIN JOCARD
Neymar em sua apresentação no PSG:

A explosão dos custos e covid

Essa briga, como você deve imaginar após ler o que Guardiola disse, não é recente. E só ganhou corpo com a revolução financeira que o futebol tem enfrentado: a globalização transformou o mundo inteiro em público-alvo, multiplicou a arrecadação e colocou nas mãos dos clubes um dinheiro que eles nunca tinham visto. O futebol demorou um século para pagar 75 milhões de euros por um jogador (Zidane ao Real Madrid galáctico, em 2001), mas em apenas 16 anos o recorde quase triplicou (Neymar no PSG por 222 milhões de euros).

Arrecadar mais dinheiro permite gastar mais dinheiro, o que atrai mais atenção (e dinheiro) e assim alimenta o ciclo inflacionado do futebol europeu —e do mundo inteiro. Os custos em alta forçam os clubes a arrecadar mais, senão perdem protagonismo. Não à toa os 12 clubes fundadores da Superliga têm, somados, mais de 5,6 bilhões de euros em dívidas (segundo critérios da UEFA).

O aumento do custo não é novidade, mas a covid-19 é. A paralisação dos jogos e o retorno sem torcida (portanto sem renda de bilheteria) atingiu em cheio os clubes de futebol. Um estudo inglês estima que a pandemia custou 1,1 bilhão de euros aos maiores clubes europeus (cerca de 12% da arrecadação) na última temporada —a conta deve quase dobrar ao final desta atual.

Eric Alonso/Getty Images Eric Alonso/Getty Images

Inspiração nos EUA

Quatro dos clubes fundadores da Superliga têm donos norte-americanos (Arsenal, Liverpool, Manchester United e Milan). Todos este quatro, por exemplo, têm ou tiveram recentemente desempenho (e arrecadação) abaixo do esperado, o que aumentou a insatisfação dos donos. Neste cenário, a inspiração nos esportes dos EUA é óbvia: um caminho em que o dinheiro está garantido seja qual for a performance.

A proposta era que os 15 clubes fixos participem da Superliga aconteça o que for. Essa certeza de participação é também uma certeza de arrecadação com o torneio, um privilégio que põe os "contratempos" esportivos em segundo plano e que atualmente não existe para nenhum clube do mundo. Mas existe nos esportes dos EUA, em que as grandes ligas são formadas por franquias e não há acesso ou descenso.

No entanto, o conceito da Superliga está muito distante da concepção do esporte norte-americano. É verdade que NBA, NFL e MLB são ligas sem rebaixamento, mas para isso têm mecanismos sólidos de distribuição de dinheiro, gatilhos para tentar o equilíbrio esportivo e até preocupação com a distribuição geográfica das equipes —fatores que a Superliga ignora na fundação.

Mike Hewitt/Getty Images

Solução pode ser um acordo

A disputa entre clubes, federações e UEFA existe há décadas, traduzida no contexto de cada época, mas sempre envolve dinheiro. Foram arranjos políticos que moldaram a Liga dos Campeões como a conhecemos hoje, ela própria criada como reação a uma articulação de Silvio Berlusconi no final dos anos 1980 muito parecida com a que aconteceu nessa semana.

Então dono do Milan, o magnata italiano propôs uma Superliga (era este o nome) e prometeu uma fortuna aos participantes, mas a ideia emperrou após a UEFA reagir e trocar a Copa da Europa pela Champions League. Em 1998 houve nova tentativa de Superliga (sim, o mesmo nome) e a UEFA ameaçou banir os envolvidos. Tudo terminou numa Champions maior e mais lucrativa para os clubes.

Não é coincidência que estas duas iniciativas soem tão semelhantes à atual. A nova Champions já é um aceno para os clubes insatisfeitos e, nas próximas semanas, não se assuste se mais mudanças forem anunciadas, para abrigar as demandas surgidas após a tentativa de golpe.

Ian West - PA Images/PA Images via Getty Images Ian West - PA Images/PA Images via Getty Images

Como Fifa tenta participar

Apesar do naufrágio imediato da Superliga, alguns pontos deste movimento de ruptura devem se manter no ar nos próximos meses e anos —especialmente em relação ao aumento de poder dos clubes.

A própria Fifa já nota a força deste movimento e namora ideias parecidas com as da Superliga desde 2019, quando participou da fundação de uma entidade chamada "Associação Mundial de Clubes", comandada por Florentino Pérez, presidente do Real Madrid e principal articulador da competição que causou polêmica na última semana. No Brasil, o Flamengo foi um dos clubes apontados como possíveis participantes deste grupo.

Com contratos comerciais assinados até 2024, a Fifa estuda alterações de formatos e calendário para depois deste período. Segundo declarações recentes de Gianni Infantino, a tendência é que os torneios de clubes sejam valorizados e outros criados, como o Super Mundial com 24 times, sendo oito europeus e seis sul-americanos e promessa de receita que passaria do bilhão de dólares. O critério de classificação ficará a cargo dos continentes, com uma exigência única da Fifa: que seja por razão técnica, não por convite.

A rebeldia dos clubes pode não ter gerado nenhuma mudança imediata, mas tem chances de ser um movimento sem volta, tanto é que a Fifa já sentenciou o fim da pouco lucrativa Copa das Confederações de seleções. O desafio passa a ser continuar acenando aos clubes, que buscam e geram mais dinheiro e poder, sem perder de vista os jogos e competições de seleções, sempre no alvo das críticas da elite financeira de clubes, e principalmente a Copa do Mundo.

Em 2022, a previsão da Fifa é faturar US$ 1,6 bilhão (R$ 8,8 bilhões, aproximadamente) com a Copa do Qatar. Apesar da tentativa de ruptura dos clubes, essa ainda é a prioridade.

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