Maradona, política e futebol

Entre sonhos, rebeldias e incoerências, argentino derrubou o muro entre o esporte e a política

Jamil Chade Colunista do UOL, em Genebra, Suíça REUTERS/REUTERS

Em campo, a busca era para garantir um entrosamento de uma equipe que contava com Lionel Messi e outros astros. Fora, a meta era a de que esses atletas mergulhassem num ideário de combate contra a submissão. Em 2010, na Copa da África do Sul, o então técnico Diego Maradona levou para dentro da concentração da Argentina livros de autores como o uruguaio Eduardo Galeano para inspirar seus jogadores e, em várias ocasiões, usou frases e exemplos da vida de Ernesto Che Guevara para criar um espírito de luta no grupo que completava naquele momento 24 anos sem um título Mundial.

Diego Maradona nunca escondeu suas preferências políticas e fez questão de levá-las para o estádio. Ignorando as regras da Fifa de manter silêncio em relação a esses temas, o argentino transformou suas chuteiras e voz em armas políticas. Usou alguns desses líderes políticos para que seus interesses fossem atendidos. Mas foi também usado por outros para legitimar seus poderes nem sempre democráticos.

Maradona, de fato, tinha sido instrumental para Jorge Videla, ditador argentino entre 1976 e 1981. O jogador levaria a Argentina à conquista do Mundial Junior de 1979, no Japão. A vitória coincidiu — e de certa forma abafou — a histórica visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para investigar os crimes por parte dos militares. A política cruzou a vida do jogador em várias ocasiões, e o UOL vai relembrá-las.

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Jogo em nome da guerra

Em 1986, a ordem entre a delegação argentina na Copa do México era uma só: aquela partida entre o time do técnico Carlos Bilardo e a seleção da Inglaterra era apenas um jogo de futebol. Tudo não passou de declarações vazias. Nos anos seguintes a um dos jogos mais emblemáticos dos Mundiais, seu principal protagonista admitiria que, longe das câmeras, o que estava em jogo era sim uma revanche política, quatro anos depois da humilhação da Argentina na guerra das Malvinas.

Diego Maradona, autor de dois gols — um deles batizado de 'La Mano de Díos —, assim descreveria o que tinha acontecido naquela partida:

Era como vencer um país, não uma equipe de futebol. Apesar de termos dito antes do jogo que o futebol não tinha nada a ver com a Guerra das Malvinas, sabíamos intimamente que muitos jovens argentinos tinham morrido, que tinham sido mortos como passarinhos. [...] Foi declarado publicamente que as coisas não se misturavam, mas isso era uma mentira. Foi mais do que ganhar uma partida, mais do que deixar os ingleses fora da Copa. Culpamos os jogadores ingleses por tudo o que tinha acontecido. Sim, eu sei que é uma loucura, mas foi assim que nos sentimos e foi mais forte do que nós. Estávamos defendendo a nossa bandeira, os jovens. Essa é a verdade".

Ao final daquele Mundial, Maradona dedicou o título aos trabalhadores argentinos, começando a pintar a silhueta de seu discurso social. A taça, ao contrário da de 1978, não iria para uma junta de torturadores.

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Nos braços da esquerda

Para pessoas que acompanharam o ex-jogador, sua origem humilde o obrigava a lembrar, de forma constante, das injustiças e de falar com insistência sobre as condições de vida de seus compatriotas. Genuíno, seus gestos reforçavam tais narrativas, inclusive a opção de defender o Napoli, uma equipe da periferia pobre da Itália. Os "poderosos" da Fifa, da Casa Branca, do FMI (Fundo Monetário Internacional) ou de qualquer outra instituição passaram a ser seus alvos preferenciais.

Aos poucos, ele foi se aproximando de líderes políticos da esquerda latino-americana, inclusive daqueles com um histórico de violações de direitos humanos. Fidel Castro foi um deles. Segundo o argentino, o cubano lhe "abriu a ilha", enquanto em seu país as clínicas de reabilitação para tratar o vício em drogas se recusavam a aceitá-lo, num dos períodos mais turbulentos de sua vida. "Ele foi um segundo pai para mim", diria Maradona, exaltando sua atitude de resistência contra o imperialismo americano.

Não faltaram ainda gestos por parte do ex-jogador ao regime iraniano, em 2007, ou ao nicaraguense Daniel Ortega.

Maradona tampouco parecia ver contradições com sua postura de apoio a esses governos e amizade que manteve com Carlos Menem, ex-presidente da Argentina, que levou o país sul-americano a manter "relações carnais" justamente com os EUA.

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De Evo a Maduro

Para muitos desses líderes, ter a companhia do astro Diego Maradona era um apoio importante, inclusive diante de suas populações e diferentes reivindicações. Ao lado do boliviano Evo Morales, presidente entre 2006 e 2019, Maradona disputou um amistoso a 3.600 m de altitude para defender o direito do país de sediar partidas nessas condições, num momento em que a Fifa vetava tais jogos. Nesta semana, Evo retribuiu e descreveu Maradona como "uma pessoa que sentiu e lutou pelos humildes".

No craque argentino, lideranças, como Hugo Chávez, encontraram um aliado contra os EUA. Durante a Cúpula das Américas de 2005, na Argentina, Maradona apareceu com uma camisa em protesto contra o então presidente norte-americano, George W. Bush, na qual estava estampada a frase "Stop Bush" (Pare, Bush, em tradução livre). A letra S foi substituída por uma suástica.

A relação entre a Venezuela e o jogador sobreviveu à morte de Chavez, e a fidelidade permaneceu a mesma durante o governo de Nicolas Maduro, acusado pela ONU de cometer graves violações aos direitos humanos.

Nada disso impediu que, no dia de sua morte, governos radicalmente diferentes, como o da França, de Emmanuel Macron, emitissem comunicados emocionados de agradecimento a Maradona por sua "revolução em campo".

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Veias Abertas da América Latina

O mesmo comportamento político se repetiria como técnico. Antes de fazer suas malas para a África do Sul, em 2010, Maradona pediu que a comissão técnica da Argentina preparasse uma pequena biblioteca para a Copa e distribuiu livros aos jogadores na concentração. Nela, incluiu obras sobre Che Guevara, todos os livros de Galeano — incluindo "As veias Abertas da América Latina"—, publicações do espanhol Fernando Savater e do também uruguaio Pablo Vierci, além da biografia do compositor Atahualpa Yupanqui.

Ao saber daquele gesto, mandei uma mensagem ao escritor uruguaio, que teve entre suas obras um livro sobre futebol e denunciou a exploração na América Latina. Em sua resposta por email, Galeano, que morreu em 2015, foi poético:

O melhor livro de futebol é o que os jogadores escrevem com os pés. Não tive mais remédio que escrever o futebol com a mão. Não sei se meu consolo íntimo poderá servir de algo para os jogadores de verdade. Só peço que leiam como uma homenagem aos que jogando sentem alegria e as oferece".

Antes de deixar a Argentina em direção à África do Sul, o então técnico já havia declarado que a seleção iria com "Maradona, Messi e Che Guevara, que também é argentino" para a Copa. Na concentração, escolheu uma série de frases do revolucionário para motivar o grupo. No estádio Soccer City, tremulavam bandeiras com as imagens juntas de Maradona e Che Guevara.

Divulgação

Maradona, por Eduardo Galeano

Eduardo Galeano escreveu sobre Maradona no livro "Espelhos: uma história quase universal", publicado em 2008, no Brasil pela L&PM Editores.

Maradona

"Nenhum jogador consagrado tinha denunciado sem papas na língua os amos do negócio do futebol. Foi o esportista mais famoso e popular de todos os tempos quem rompeu barreiras na defesa dos jogadores que não eram famosos nem populares.

Esse ídolo generoso e solidário tinha sido capaz de cometer, em apenas cinco minutos os dois gols mais contraditórios de toda a história do futebol. Seus devotos o veneravam pelos dois: não apenas era digno de admiração o gol do artista, bordado pelas diabruras de suas pernas, como também, e talvez mais, o gol do ladrão, que sua mão roubou. Diego Armando Maradona foi adorado não apenas por causa de seus prodigiosos malabarismos, mas também porque era um deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses. Qualquer um podia reconhecer nele uma síntese ambulante das fraquezas humanas: mulherengo, beberrão, comilão, malandro, mentiroso, fanfarrão, irresponsável.

Mas os deuses não se aposentam, por mais humanos que sejam.

Ele jamais conseguiu voltar para a anônima multidão de onde vinha.

A fama, que o havia salvo da miséria, tornou-o prisioneiro.

Maradona foi condenado a se achar Maradona e obrigado a ser a estrela de cada festa, o bebê de cada batismo, o morto de cada velório."

Encontro com Abuelas da La Plaza de Mayo

Em plena preparação para os jogos da Copa, Maradona e Messi fizeram uma pausa nos treinos para receber representantes das Abuelas de La Plaza de Mayo (Avós da Praça de Maio), grupo que por anos protestou contra a ditadura na Argentina e impulsionou as investigações levadas a cabo em Buenos Aires contra os responsáveis pela morte de milhares de jovens durante os anos 70 e 80 pelo regime militar que comandava o país.

Em uma das salas da concentração argentina, um cartaz prometia o apoio da seleção à campanha das Abuelas de La Plaza de Mayo para o prêmio Nobel da Paz daquele ano.

Quase uma década depois, Maradona seria multado pela Federação Mexicana de Futebol por misturar política e futebol. Treinando um time da segunda divisão do país, o Dorados, ele dedicou uma vitória a Nicolás Maduro e descreveu Trump como um "tirano".

Esse era Diego, incapaz de aceitar um muro entre o futebol e a política, um mantra defendido por aqueles que controlam o jogo para garantir que seu monopólio não seja questionado.

STR/EFE

Poder da Fifa

Enquanto seu encanto ganhava ares políticos, Maradona ampliaria seu confronto aberto com a Fifa. Décadas antes de o FBI levar para a prisão alguns dos cartolas mais poderosos do futebol, era de um desarmado Diego que vinham as denúncias contra a entidade. Maradona sabia do que falava, e suas acusações causavam abalos dentro da organização. Em 1990, ao não dar a mão para João Havelange na entrega das medalhas do Mundial da Itália, escancarou a crise.

Se anos depois Pelé e Maradona selariam a paz, o argentino não deixou de criticar o brasileiro por sua proximidade ao poder e seu silêncio diante dos cartolas.

Não por acaso, seu mergulho nas drogas caiu como uma luva para uma entidade que não sabia o que fazer com o maior astro do futebol naquele momento. João Havelange rapidamente adotou uma narrativa que misturava um desprezo pelo jogador e um tom de que, "desorientado", o argentino poderia contar com ele como "pai". Maradona se recusou a fazer qualquer gesto, e nem a sucumbir ao poder da entidade. E, assim, permaneceu fora da glória oficial do tapete vermelho das festas de gala da Fifa.

Quando, em 2015, o FBI realiza a maior operação contra a corrupção no futebol e evidencia a falência moral da Fifa, Maradona apenas insistia que nada daquilo era novo para ele.

AFP PHOTO / MICHAEL BUHOLZER

Curta reconciliação

Um ano depois, quando a Fifa tentou virar a página de sua crise, o novo presidente da entidade, Gianni Infantino, foi ousado. Ele chamou justamente Maradona para retornar à organização. Era um sinal de reconciliação entre o futebol, a política e seus cartolas. Num campo em Zurique, o argentino colocou chuteiras para mostrar ao mundo que, mesmo incapaz fisicamente de correr, estava dando um voto de confiança aos novos donos da bola. Ao sair daquela partida entre amigos, eu questionei o ex-jogador sobre como ele encarava sua volta à Fifa.

Estou agradecido aos que me receberam de braços abertos. Esse é o espírito que quer a nova Fifa e nós, jogadores, queremos ajudar a fazer uma Fifa transparente, purista e limpa. É o que o mundo quer. O futebol tão corrupto precisa acabar".

Meses depois, num hotel em Londres, presenciei como Maradona tratara Infantino com pitadas de respeito e grandes doses ironia. Ao ver o cartola entrar numa reunião, se levantou e fez um gesto militar, como se no local estivesse um general. Todos caíram na gargalhada.

Mas a lua de mel chegaria ao fim. Diego insistia que cumpriu sua parte. Mas acusava a Fifa de tê-lo usado e "traído". Assim, em 2020, uma vez mais Maradona se afastaria da entidade, denunciando-a de não ter virado a página de décadas de problemas e de ter escolhido o ex-presidente argentino Mauricio Macri - e seu rival - para liderar uma de suas fundações. "As águas se acalmaram e repartiram todo o dinheiro entre eles. Ninguém devolveu nada. Então renuncio à Fifa", completou Maradona, um ator político de sua geração.

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