"Gooool" caseiro

Em casa desde o início da pandemia, narradores do Grupo Disney relembram imprevistos e quase multa por gritos

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Reprodução

O estoque de comida perdeu espaço para o computador e a câmera na casa de Fernando Nardini. A varanda de Nivaldo Prieto e a sala de Luciana Mariano se transformaram em estúdios com os mais variados aparatos tecnológicos. O sofá de Rômulo Mendonça é a base confortável de onde profere "jararaca" e outros bordões.

As adaptações viraram rotina para os narradores do Grupo Disney, dono dos canais ESPN e Fox Sports. Uma orientação mundial da empresa decidiu que os funcionários deveriam permanecer trabalhando de casa enquanto durasse a pandemia da covid-19.

Os equipamentos da TV foram para casa. Eles receberam microfones iguais aos das transmissões, câmeras, cadeiras. Ainda assim, um ou outro perrengue sempre acaba acontecendo quando se tem que entrar ao vivo praticamente todo dia.

Em conversa com o UOL Esporte, os quatro narradores relembraram momentos inusitados das transmissões caseiras — contando até uma tentativa de multa para Rômulo Mendonça. Mas a voz da NBA na ESPN tem tentado angariar os seus aliados entre os moradores do prédio.

Reprodução

Sai a garrafa de suco, entra o microfone

Fernando Nardini até tentou montar o estúdio no meio da sala de casa. Mas morando com a esposa e duas filhas, era um incômodo para todos. Mudou-se para um quarto, mas cada grito de "touchdown!" acordava todo mundo. Restou a despensa.

"Eu interditava a casa antes. Ia todo mundo pra dentro e eu ficava na sala. Mas aí chegou o Australian Open, de madrugada. Se eu fico ali, ninguém dorme. Durante uns quatro meses, eu fazia as transmissões entre garrafas de suco, pacote de bolacha, latas de palmito e coisa do tipo. Agora a gente chamou uma arquiteta e transformou em um escritório", conta.

Enquanto morava no Rio de Janeiro, Nivaldo Prieto também ficava na sala. Mas a ida para São Paulo deu uma nova possibilidade. O apartamento tinha uma varanda próxima ao quarto. Agora é um estúdio. "Aqui coloco a câmera, faço a iluminação e não incomodo ninguém... até um certo ponto, né? Não tem jeito."

O certo ponto chega nos gritos de "gol". Não que a esposa ou o filho se incomodem, mas morar em prédio requer um convívio com outros moradores. "Encontrei na academia a moradora do apartamento abaixo do meu. Ela disse que às vezes o marido abre a janela e fica escutando a transmissão. Acontece."

No caso de Rômulo Mendonça, o papo não foi muito tranquilo. Ele narra com mais frequência NBA e futebol americano, esportes que acontecem no fim da noite. Já pensou estar dormindo e ouvir um "demaaaaaais!!!" entrando pela janela?

Rômulo Mendonça conta quando quase foi multado

Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

Em busca de apoio

As transmissões noturnas agora acontecem nos estúdios da ESPN, mas Rômulo ainda usa o sofá de casa para narrar quando o evento é mais cedo. O risco de multa diminui com as narrações antes das 22h, e ele já começa a ganhar uns aliados dentro do condomínio.

"Eu sou do [apartamento] 63, e chegou um vizinho novo no 64. Ele me mandou uma mensagem no Instagram dizendo que podia narrar à vontade. Eu nem tive muito contato com ele ainda, mas o do 64 já está comigo. Agora só falta o apoio do 53, do 54, do 73 e do 74", brinca.

Ainda que um grito ou outro possa ser ouvido em um apartamento vizinho, Rômulo tem dúvidas se é um barulho suficiente para gerar um incômodo. "Imagino que um barulho de obra irrite muito mais. 9h da manhã você acorda com um vizinho martelando, eu acho que isso é mais irritante. Mas não tenho noção se é mesmo, porque estou produzindo um dos barulhos, não recebendo."

Arquivo pessoal

Assume aí que eu caí

A relação com os vizinhos não é a única preocupação durante um home office. Por mais que os equipamentos sejam profissionais e os narradores tenham o suporte da parte técnica da emissora, imprevistos acontecem. E aí é correr para resolver o mais rapidamente possível.

Fernando Nardini estava escalado em 13 de junho do ano passado para narrar o jogo entre Hertha Berlim e Eintracht Frankfurt. Tudo corria bem até os 16 minutos do segundo tempo. A conexão de internet despencou, e ele saiu do ar. Coube a Luiz Carlos Largo contar ao telespectador que Kamada driblara três adversários e tocara para André Silva marcar de letra a virada do Frankfurt.

"Foi um puta de um golaço. O Largo narrou um dos gols mais bonitos de 2020. Aquilo foi azar puro. É um risco que se corre. Mas pequeno perto do privilégio da possibilidade de poder trabalhar de casa em segurança", diz Nardini.

Por causa dos imprevistos, o Grupo Disney sempre deixa um narrador de sobreaviso para caso o titular tenha problemas de conexão durante a transmissão. Na semifinal da Copa da Rainha, entre Levante e Atlético de Madri, quem assumiu foi Matheus Pinheiro. A titular Luciana Mariano teve problemas com a conexão e demorou para entender que estava fora do ar.

"A primeira coisa que eu pensei era que o Eugênio Leal e a Mariana Spinelli tivessem caído, e eu continuei. Mas nessa hora eu já estava falando sozinha. Vi no meu celular o produtor da transmissão perguntando o que tinha acontecido. A operadora estava fazendo um reparo e eles desligaram a região inteira. Eu caí às 15h, a energia voltou às 18h30", conta.

Martin Meissner/Pool via Getty Images Martin Meissner/Pool via Getty Images

"A primeira transmissão foi um fiasco"

O Borussia Dortmund já vencia o Schalke por 2 a 0 quando Haaland tocou para Hazard chutar para o fundo das redes. Na transmissão do Fox Sports, Nivaldo Prieto narrava a defesa do goleiro Schubert, que nunca aconteceu.

O problema marcava a volta das transmissões ao vivo depois da pausa no ano passado. Responsável pelo primeiro evento de casa, Prieto achou que tinha deixado tudo preparado, mas só descobriu com a bola rolando que a conexão via wi-fi não era suficiente. O ideal é sempre usar um cabo de rede conectado no computador. "Você pode ter o melhor sinal de internet que com wi-fi não funciona."

A imagem que Prieto recebia travou durante o chute de Hazard, o que causou o erro na narração. "Quando a imagem voltou, a bola já estava lá dentro e o Haaland estava comemorando o gol. Eu saí gritando gol. Pô, uma vergonha. Foi gol e eu falei que o cara defendeu. Mas eu não tinha culpa", explica.

Um ano depois, Prieto consegue dar risada da gafe. "Mas na hora eu fiquei tão nervoso, cara". Ainda assim, a estreia é considerada por ele "um fiasco", mas que já ficou para trás.

"Daquele jogo para as transmissões de hoje, o salto foi gigantesco. É para dar uma medalha de ouro para a nossa equipe técnica. Melhorou muito".

Os imprevistos

Divulgação/ESPN

O sol

"Na mudança de estação do ano, o sol começou a bater num determinado horário que antes não batia. Eu tenho um monitor aqui na minha frente, e o sol começou a bater na tela. Eu já estava narrando e não via absolutamente nada, zero. Eu chamei meu filho e ele ficou mudando a posição até uma hora que foi. Virei praticamente o estúdio inteiro."

Arquivo pessoal

A campainha

"Eu moro sozinha em uma casa, e muita gente vem às vezes tocar a campainha. Naquele dia, eu tinha esquecido de fechar a cortina. E veio um cara oferecendo algum tipo de trabalho, só que eu estava no ar. Eu falando 'depois, não dá agora' e narrando o jogo. E ele 'não, mas eu quero falar com você'. Como eu explico pra ele que estava numa transmissão?"

Divulgação/Grupo Disney

O ventilador

"Eu estava transmitindo um jogo no Rio e estava aquele calor maluco. Naquele dia, eu estava usando um ventilador junto com o ar-condicionado. Fiz um sinal para o meu filho e pedi para ele ligar o ventilador para mim. Ele querendo fazer melhor do que eu tinha pedido, virou na minha direção e ligou. Começou aquele barulho no microfone, escalação voando."

Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

Críticas acima do tom

Rômulo Mendonça acredita que a diferença de qualidade entre o que é produzido no estúdio e dentro de casa seja mínima. Por mais que exista, não chega a atrapalhar a experiência do telespectador. "Como estou acostumado com o meu trabalho, acho que talvez consiga diferenciar duas transmissões minhas. Mas, sinceramente, acho que o telespectador não consegue."

Ainda assim, as críticas nas redes sociais costumam ser implacáveis quando algo não sai como era antes. "Quando a gente perde parte de um gol ou qualquer outra coisa, as críticas são duríssimas", ressalta Nivaldo Prieto. "Além da exigência, beira uma crueldade com o momento em que a gente está vivendo."

Fernando Nardini acredita que o trato do público com as transmissões caseiras foram mudando com o passar do tempo. Na época em que o futebol ficou parado no mundo todo, as narrações eram vistas com agrado. "Quando as coisas foram, relativamente, voltando ao normal, as pessoas começaram a exigir que fosse como era antes. Mas é impossível ser do jeito que era, totalmente impossível pela situação que a gente está vivendo."

A impaciência do momento, sinceramente, é pelo em ovo. É não olhar para o todo, não perceber a situação do mundo.

Fernando Nardini

O futuro do home office

Divulgação/ESPN

Nardini

Eu acho que isso é para sempre. A maioria das transmissões vai continuar sendo da televisão, porque a qualidade é melhor, você consegue uma envelopagem bacana. Mas a narração de casa acho que é eterna. É um passo que não volta mais. Vai ter menos, mas vai continuar.

Divulgação/Grupo Disney

Luciana

Se pudesse ficar assim para sempre, para mim estaria bom. Eu passei ilesa pela pandemia graças a esse cuidado da Disney de nos deixar em casa. Daqui a pouco, tudo que for possível vai ficar remoto, porque você diminui tanta coisa: custo, gasto, risco de acidente.

Divulgação/Grupo Disney

Prieto

Nos preocupávamos muito com convidados, porque você acaba tendo um custo altíssimo na TV. E durante a pandemia não deixei de entrevistar ninguém. Um problema aqui, ali, mas foi. Claro que importa estética e figurino, mas entrevistas online vieram para ficar.

Divulgação/Grupo Disney

Rômulo

Acho que a maioria das transmissões continuará sendo da TV, porque o home office não oferece a mesma segurança para a transmissão. Mas o home office não vai deixar de existir. Ele não vai ser mais visto como patinho feio. Ninguém mais vai lamentar fazer jogo de casa.

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