Na contramão da nova ordem

Em tempos de invasão portuguesa no Brasil, Argel atravessa oceano para ser treinador em Portugal

Augusto Zaupa e Vanderlei Lima do UOL, em São Paulo Gualter Fatia/Getty Images

Há 522 anos, Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil ao avistar novas terras, denominadas Porto Seguro (hoje baía Cabrália), entre a ilha da Coroa Vermelha e a baía rasa de Santa Cruz, na Bahia. Séculos se passaram, e um novo português desembarcou no Rio de Janeiro, em 2019, para revolucionar o Flamengo e abrir as portas aos treinadores lusitanos no futebol tupiniquim. Jorge Jesus deixou legado e viu outros compatriotas assumirem equipes da Série A.

Vários dos clubes da elite do Brasileirão são comandados por treinadores oriundos da 'terrinha': Abel Ferreira (Palmeiras), Vitor Pereira (Corinthians), Luís Castro (Botafogo) e António Oliveira (Cuiabá). Paulo Sousa acaba de ser demitido no Flamengo.

Nesse fluxo, há quem pegou a mão contrária: Argel Fuchs. O gaúcho de Santa Rosa não se acomodou e aceitou o convite de assumir o modesto Alverca, time da Terceira Divisão do Campeonato Português e que quase obteve o acesso à Segundona local logo nos primeiros meses com o ex-zagueiro no leme.

Argel cruzou o oceano Atlântico em outubro do ano passado para 'descobrir' o futebol do FC Alverca, que ainda tem como executivo de futebol o também brasileiro Klauss Câmara,ex-Cruzeiro, Sport e Grêmio.

Os laços entre Brasil e Portugal no clube do subúrbio de Lisboa não param por aí, visto que o time tem como investidor principal o empresário Ricardo Vicintin, pai de Bruno Vicintin, que atuou por anos na diretoria e foi vice-presidente do Cruzeiro. Ricardo comprou a maioria das ações da Sociedade Anônima Desportiva (SAD) da modesta equipe em dezembro de 2018.

Gualter Fatia/Getty Images

Benfica abriu as portas em Portugal, mas ainda como zagueiro

Antes de iniciar a carreira de treinador, Argel, atualmente com 47 anos, atuou como jogador profissional por quase duas décadas. No Brasil, ficou conhecido mais por suas passagens por Santos, Palmeiras e Internacional, onde tudo começou. Mas exportou a sua fama de xerifão na zaga para Portugal no fim da década de 1990, quando acertou transferência para o Porto. Nos Dragões, ficou apenas um ano. Foi no Benfica que ganhou o respeito e admiração dos lusitanos, atuando cinco anos.

"As portas se abriram e fiz o caminho inverso, pois são os treinadores portugueses que estão indo para o Brasil. Sou luso-brasileiro, tenho passaporte português e isso me ajudou muito na aceitação da Liga e da Federação Portuguesa, que aceitou as minhas licenças para eu poder trabalhar. O mercado de treinadores é muito fechado, os portugueses não se abrem muito para os estrangeiros. Devo ser o único estrangeiro na Liga inteira", comentou Argel, que recebeu o prêmio de melhor técnico do mês de março da Liga 3.

"Fui contratado [pelo Alverca] depois de seis, sete rodadas [do início da Liga 3]. O time estava na vice-lanterna da competição, mas conseguimos dar uma arrancada muito grande e classificamos em segundo lugar. Eram duas chaves de 12 clubes. Fomos para o quadrangular final e ficamos em segundo. No playoff para subirmos, enfrentamos o antepenúltimo da Segunda Divisão. Empatamos em casa em 0 a 0 e perdemos fora por 2 a 0. Não subimos, mas tivemos a melhor sequência do campeonato, com sete vitórias seguidas, ninguém conseguiu", celebrou o comandante gaúcho, que tem contrato com o Alverca até junho de 2023.

O último treinador brasileiro a comandar um clube na Primeira Divisão portuguesa foi Milton Mendes, quando esteve à frente do Marítimo, na 2020/21. Considerando apenas times de ponta, o hiato dura 25 anos, quando Paulo Autuori dirigiu o Benfica.

A minha intenção é ficar uns quatro, cinco anos. O projeto é chegar na Segunda Divisão e subir para a Primeira. Tive algumas possibilidades para sair agora, clubes sem a mesma estrutura e condição financeira do Alverca. Se a gente bateu na trave agora, pegando o barco andando, no meio do caminho, na vice-lanterna, sem conhecer a competição e sem conhecer tanto o futebol português... Minha missão também é de fincar os pés, colocar a bandeira do Brasil e de abrir portas para os treinadores brasileiros, para os meus colegas

Argel Fuchs

Gualter Fatia/Getty Images

"Na Europa você consegue fazer uma temporada inteira"

O Alverca é experiência de debute na carreira internacional de Argel. Porém, ele já atua na beira do gramado há 13 anos, conforme gosta de ressaltar. O ex-zagueiro já sofreu, se não todos, com quase todos os percalços exercendo a função como treinador nos mais de 25 clubes onde trabalhou: tempo curto (ou quase nenhum) para demonstrar resultado, demissões e até greve do elenco, entre outros problemas enfrentados no futebol brasileiro.

"Não acho que é difícil trabalhar no Brasil, o futebol brasileiro tem um lado peculiar. A dança dos treinadores já é cultura do futebol brasileiro. Claro que lá fora você tem uma tranquilidade maior, realmente você consegue fazer uma temporada inteira, dificilmente eles trocam de treinadores no meio de uma temporada. Mas já houve. O Benfica trocou agora, tirou o Jorge Jesus e colocou outro treinador [o alemão Roger Schmidt assume o posto em julho]."

"A gente está acostumado [com a constante troca de treinadores]. Você tem três, quatro partidas, cinco no máximo, para mostrar resultado. Se não ganha, acaba saindo, independentemente se é um treinador que está começando ou se é mais experiente, mais renomado. Você não consegue alugar uma casa, um apartamento sempre morando em hotel, porque você não sabe sempre com a mala pronta, ou é para viajar ou é para ir embora."

No Brasil, minha família praticamente não vai comigo, nos encontrávamos no final de semana ou a cada dez dias. Meus filhos são grandes, tenho uma menina de 21 anos e um menino de 19 anos, os dois estão na faculdade em Porto Alegre. A minha esposa, claro, entende, porque é a minha profissão, é o que eu gosto de fazer. Quando eu jogava futebol, tinha uma segurança maior, com contrato de três ou quatro anos. Temos que dançar conforme a música

Argel Fucks

Ricardo Moraes/Getty Images

Abel ganhou fama em Portugal por feitos no Brasil

Argel já esteve frente a frente com Abel Ferreira em combates dentro e fora de campo. Primeiro, quando ainda atuava como zagueiro, e depois no comando do Botafogo-SP, em compromisso com o Palmeiras, pelo Paulistão 2021. Agora em terras lusitanos, o brasileiro acompanha o que é dito pela imprensa e torcedores locais sobre o multicampeão pelo Palmeiras.

"Se fala muito do trabalho do Abel Ferreira, que deu certo [no futebol brasileiro]. Também falam do Paulo [Sousa, recém-demitido pelo Flamengo] e do Vitor Pereira [técnico do Corinthians]. Acho legal esse intercâmbio de treinadores brasileiros com os portugueses."

"Mas a gente não pode achar que todos os treinadores portugueses que vão vir para o Brasil vão dar certo. O Jesualdo [Ferreira] não deu certo [no Santos], o [Augusto] Inácio não deu certo [no Avaí], o Sá Pinto não deu certo [no Vasco], o Paulo Bento não deu certo [no Cruzeiro]. O Vitor Pereira vai ter que ganhar para dar certo. O futebol [brasileiro] cobra de uma forma forte, não vai te aliviar, é um imediatismo muito grande. Nos times de massa é uma pressão muito grande."

O treinador português hoje está na moda. Eles conseguiram valorizar a classe deles muito forte, têm uma união muito forte, um sindicato que é muito atuante, defende a causa. No Brasil, temos sindicato, mas não temos voz ativa, união zero, cada treinador pensa no seu. Cada dia você tem que matar um leão por dia. O Abel Ferreira está bem no Palmeiras, está fazendo um trabalho fantástico, ganhando títulos, está na crista da onda. Mas, se não estivesse ganhando, não ficaria no Palmeiras

Argel Fucks

Falta de reconhecimento de licença da CBF dificulta brasileiros na Europa

Se não bastasse a instabilidade e o calendário apertado que atrapalham os treinadores que buscam reconhecimento, reciclagem e espaço em grandes clubes, a classe ainda precisa investir financeiramente para obter as Licenças A e PRO da CBF. A primeira, exige dedicação de 270 horas e R$ 10.500, além de outros requisitos. Já a segunda, a de maior grau, é preciso desembolsar R$ 19.900 e 370 horas reservadas na agenda. Mas tudo isso não basta aos brasileiros que desejam trabalhar como treinadores na Europa.

"Eles [Uefa] não reconhecem, ainda está uma briga muito grande. A CBF está se empenhando para tentar reconhecer o nosso curso. Tenho a Licença A e PRO, mas, mesmo assim, foi muito difícil [para conseguir a liberação para trabalhar em Portugal]. O que me ajudou foi o tempo que eu joguei em Portugal e passaporte português que eu tenho."

"Preciso fazer o curso da Uefa para eu poder trabalhar numa Champions Legue, com as licenças que tenho eu não consigo. Acho engraçado porque a da AFA, da Argentina, é reconhecida na Europa. É uma coisa muito mais política. O futebol argentino é maior que o brasileiro? Não, nós somos pentacampeões. Então, é muito mais político. Não adianta a gente fazer os cursos aqui no Brasil, profissionalizar e capacitar o treinador se o nosso curso não é reconhecido na Europa. Primeiro, o nosso curso tem que ser reconhecido perante à Conmebol, e depois perante à Uefa."

Montagem sobre fotos Agif

Futuro da seleção pode estar nas mãos de Abel ou Jorge Jesus

O ciclo de Tite à frente da seleção brasileira irá se encerrar após a disputa da Copa do Mundo do Qatar, no fim do ano. Com o cargo próximo de ficar vago, já se iniciam as especulações de quem irá assumir o posto. Para muitos, a vaga deveria ser preenchida por um estrangeiro. Os nomes do espanhol Pep Guardiola e dos portugueses Abel Ferreira e Jorge Jesus ganharam força na torcida. E Argel faz coro pelos lusitanos para suceder Tite.

"Independentemente de ser estrangeiro ou brasileiro, para treinar a seleção brasileira tem que ser competente, tem que ser bom, e o que é bom custa caro. Eu não sei se o futebol brasileiro tem condições de pagar um Guardiola da vida, um Klopp, um Mourinho... Com a diferença de moeda que está hoje, não sei se a gente consegue pagar. Agora, se analisar o mercado brasileiro, se o Abel Ferreira conseguir novamente ganhar o título da Libertadores, ser tricampeão, ele consegue automaticamente ser um dos candidatos."

"O Jorge Jesus pelo trabalho que fez lá em 2019 no Flamengo. Flamengo e CBF têm uma ligação muito forte. No Brasil, acho que o Renato Gaúcho teve o seu nome muito mais forte do que é hoje. Não vejo outro brasileiro. Não vejo o Felipão voltando para seleção, o próprio Mano Menezes, o próprio Dunga. Acho que a seleção não vai fugir muito, ela pode cair no colo do Abel Ferreira ou do Jorge Jesus e isso não é demérito nenhum."

Gualter Fatia/Getty Images Gualter Fatia/Getty Images

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