Nunca esqueça quem você é

Matheus Cunha fala das dificuldades de ser negro e nordestino no futebol. E como superou o racismo na carreira

Matheus Cunha, em relato a Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Mathias Renner/City-Press via Getty Images

Eu saí de casa muito novo. Um menino negro e nordestino de 13 anos tentando a vida no futebol em um mundo preconceituoso. Eu era o "Paraíba" e sabia que seria assim. Foi justamente por isso que aprendi a transformar tudo aquilo em força.

Minha mãe é da minha cor. Meu pai é branco. Ela veio de origens muito humildes e sempre fez questão de me explicar todo o esforço que os dois faziam para me dar o que podiam na infância. Isso me fez entender que era necessário valorizar cada pequena conquista.

Quando tentei carreira no futebol, ela precisou dizer que eu iria sofrer racismo e aquilo não poderia me atingir. Ela não disse "se eu sofresse", ela disse "quando eu sofresse". Por tudo que ela já tinha passado, sabia o que me esperava no mundo lá fora e, por mais que doesse, me preparou para enfrentar: "Quando alguém falar isso de você, filho, é porque você é mesmo. Não se incomode e mostre sempre que você é mais forte".

Eu nunca deveria esquecer quem eu era. Ela e meu pai enraizaram isso em mim. Graças aos dois, digo que nunca sofri dessa forma. Aprendi a não deixar nada me atingir. Eu sei que, às vezes, não falam por mal, mas eu já ouvi frases assim:

Pô, o que esse pretinho tá fazendo aqui, é filho de quem?"

Olha como ele fala, é muito engraçado, não entendo nada"

Eu sou preto. Eu sou paraibano. Eu falo oxe. E eu sou feliz e orgulhoso de tudo isso. É isso que eu sou.

Mathias Renner/City-Press via Getty Images

Praça São Gonçalo

A primeira bola que chutei não foi de futebol, mas de tênis. O corredor de casa era o campo e meu pai, o adversário. Minha mãe conta que ele não me deixava ganhar, não. Hoje, ela diz que não posso fazer isso com o neto dela (risos). Mas isso acabou alimentando meu lado competitivo. Desde muito pequeno eu comecei a ir jogar na Praça São Gonçalo. Eu lembro de flashes dessa época. As crianças da minha rua passavam e gritavam em casa: "tio Carmelo, posso levar o Matheus?"

Antes, eu jogava só com meu pai, mas quando comecei a fazer meu ciclo de amizades na praça, já não queria mais voltar pra casa. Minha mãe tinha que me buscar quando anoitecia, senão eu não voltava. Os meninos mais velhos me colocavam no time deles e foi aí que comecei a me destacar.

Meu pai jogava futsal no clube Cabo Branco, em João Pessoa, e me levou para fazer um teste. Passei e comecei minha trajetória nas quadras. Depois, fui para o CT Barão e cheguei a jogar um pouco no Sport Recife. O futsal se tornava aí minha grande paixão, tanto que eu quase não fui para o Coritiba porque queria seguir nas quadras, principalmente depois da maior desilusão da minha vida...

Arquivo pessoal
Matheus com a camisa 8 do sub-9 do Cabo Branco e na época de CT Barão (ele é o segundo em pé, da esquerda para direita)

Santos partiu meu coração

Quando eu estava no CT Barão, um amigo dos pais de um companheiro de time me fez uma oferta: um teste no Santos. Eu topei na hora e fomos na semana seguinte. Chegando lá, eu acredito que treinei muito bem. Foram duas semanas de teste. Acontece que, no fim do período, falaram que, para trazer um jogador de fora e gastar mais, tinha que ser um atleta com mais qualidade do que aqueles que já estavam ali. E eu, segundo eles, "não era tudo isso".

Cara, aquilo machucou. Eu pensei que não seria jogador de futebol. Todo mundo já era muito bom. Falei pro meu pai que não queria mais. Minha mãe diz que nunca me viu tão triste. Chorei por dias e dias.

Eu estava revoltado com o futebol, mas o futebol ainda tinha planos pra mim. Passou um tempo e eu voltei para Recife, voltei a jogar e resolvi levar a sério. Não desistiria na primeira negativa. Estava no Sport às vésperas de jogar a Taça Brasil, principal competição do futsal. Eu era um ano mais novo do que o limite, então estava animado com a possibilidade.

Eu estava amando a rotina de sair correndo da escola para jogar. Eu morava em João Pessoa e meu pai me levava de carro até Recife, cerca de duas horas distante. Foi quando chegou o convite do Coritiba. A princípio eu recusei. Queria jogar a Taça Brasil, mas o Neto, meu técnico na época, me perguntou: "você não quer ser jogador de campo no futuro?". É, eu quero. Era hora de ir.

Lucas Figueiredo/CBF

Projetoso misterioso

Ah, Matheus, se você soubesse o projeto que o clube tem para você..."

Eu estava chateado. Eu nunca quis me deslumbrar com futebol, sempre fui centrado, mas não tem como não mergulhar de cabeça naquilo quando você está alojado no clube e longe da família. O teste no Coritiba foi tranquilo e eu passei logo na primeira semana.

Foi pouco antes de completar 14 anos e, assim que fiz aniversário, fiquei alojado no clube. O tempo foi passando e quando a minha categoria foi fazer um campeonato na Itália e eu não fui convocado, aquilo me machucou. Quer dizer, se não fui, não era suficientemente bom para o clube. E a implicação disso é que eu poderia ser mandado embora...

Foi aí que a psicóloga do clube falou pra mim do projeto. Durante o período do torneio, o treinador do sub-20 chamou alguns meninos do sub-17 para completar treino e eu fui um deles. Ele me colocou como centroavante pela primeira vez —até então eu era meia. Caraca, eu adorei a posição. Mais perto do gol. E fazer gol era o que eu mais gostava.

Quando o sub-17 voltou, o treinador falou que eu tinha ido bem naquela função e sugeriu me usar daquela forma. A partir daí eu comecei a fazer as duas funções: 10 e 9. Meu sonho era ter jogado o Brasileirão com o Couto Pereira lotado. Estava sempre na arquibancada assistindo, então aquilo me movia.

Ah, o projeto? Não sei qual era, já que me venderam, pô! Quem sabe um dia a gente se reencontra e eu descubro...

Divulgação

Eu venho de uma família de professores e sempre tive facilidade para estudar. Tirava boas notas na escola pública —em que o nível infelizmente é mais baixo. A tia Rose, pedagoga do Coritiba, pedia para eu ajudar os meninos mais novos que tinham dificuldade. Mas tinha dia que eu queria dormir e falava que não dava pra dar aula (risos). Nunca fui o professor do ano, mas tirava umas dúvidas aí."

Matheus Cunha, sobre dar aulas aos mais novos no Coritiba

Arquivo Pessoal
Matheus ganhou um relógio como prêmio de melhor jogador do torneio em sua primeira passagem pela Suíça, pelo CT Barão

Suíça: neve, futebol e Google

O Coritiba ia disputar um torneio nos EUA e dessa vez eles não conseguiram me deixar de fora. Eu estava muito bem e fui como titular mesmo sendo uma competição para jogadores até dois anos mais velhos. Fiz meu melhor torneio desde que tinha chegado. E foi aí que atraí atenção de quem estava lá.

O Coxa já tinha sinalizado que eu subiria ao profissional, mas quando chegou o interesse do Sion, tive que tomar uma decisão. Eu tinha visto diversos jogadores subirem e não terem oportunidades, não só no Coritiba. A Europa sempre foi um sonho e o futebol suíço poderia ser o primeiro passo.

Naquela altura, meu conhecimento sobre a Suíça se resumia a duas coisas: eu sabia que tinha neve e eu sabia que tinha futebol (risos). Esse conhecimento vinha de muitos anos antes, quando, curiosamente, eu disputei um torneio de futsal na Suíça com o CT Barão.

Lembro que quando tomei a decisão, entrei na internet da sala da tia Rose e joguei no Google: time do Sion. Comecei a ver os jogadores, a pesquisar melhor aqueles que eu achava que tinha cara de ser bom. Comecei a me empolgar.

Esse foi o primeiro passo. Pouco tempo, já tinha sido contratado, morava no país e conhecia muito mais a cultura, com ajuda do José Sinval, um brasileiro que jogava lá e morava comigo. Aquela empolgação, então, mudaria de lado: passaria aos vários interessados que surgiram para me tirar do Sion.

Língua, bronca e Méqui

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Hoje eu enrolo alemão, francês, espanhol e inglês, mas no começo do Sion eu não falava nada. Quando eu já tinha começado a aprender o francês, chegou um técnico no Sion que me colocou de 9, escalou o Adryan (ex-Flamengo) e o Carlinhos, um português, nas pontas. E falou: ninguém tá se entendendo nesse time, vamos fazer pelo menos o ataque falar a mesma língua (risos).

Arquivo Pessoal

Terminei a temporada com dez gols. Um deles foi especial porque minha mãe estava no estádio pela primeira vez. Dediquei a ela, fiz coraçãozinho e tudo mais. Só que no fim eu tomei uma baita bronca: "Nunca mais fique se jogando, caindo, viu?! Pelo amor de Deus! Meu coração quase sai pela boca". Chata até na hora de ver o jogo! Mas depois ela agradeceu pelo coraçãozinho (risos).

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Eu morava em cima do McDonald's, mas morria de medo de ir lá e o presidente me tirar do time. Diziam que ele era dono da cidade, então eu não queria pisar lá nem pintado de ouro! Mas passou um tempo e eu vi alguns jogadores indo lá e pensei: "pô, McDonald's acho que eu sei pedir, é igual em todo lugar". Aí acabei aprendendo o caminho do Méqui, mas só um pouco, só...

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Sobre escolhas e prioridades

Quando eu tomo uma decisão, eu não penso mais no que ficou para trás. O foco é 100% no projeto novo. Foi assim quando eu saí do Sion para o RB Leipzig. Também foi assim quando deixei o RB e aceitei a oferta do Hertha Berlin.

No futebol não existem garantias. Eu jogaria no Coritiba se tivesse ficado? Eu seria mais aproveitado no Leipzig se tivesse permanecido? Nunca saberei. Cabe aproveitar da melhor forma o dia de hoje. E, pra mim, isso passa por jogar cada vez mais. Foi por isso que troquei o Leipzig pelo Hertha. Se na minha segunda temporada no clube eu estou jogando menos do que na primeira, vejo isso como uma regressão e eu quero evoluir. Sempre.

Eu tive propostas da Inglaterra no processo, mas nem pensei em aceitá-las por um motivo muito especial pra mim: a seleção brasileira. Eu estava muito bem com o time sub-23, era artilheiro do pré-olímpico quando recebi as ofertas da Premier League, mas os times queriam me tirar da seleção e não me liberariam mais.

Garotão, eu jamais vou deixar a seleção brasileira de lado. Jogar com a camisa da seleção é minha prioridade, independentemente de qual categoria seja. Desde pequeno sonho com isso. Não tem como mudar para um clube que me impeça. Os times ingleses ficam para a próxima. As olimpíadas estão aí...

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