"El terrible"

Argentino e rebelde, Echevarrieta é até hoje um dos maiores artilheiros estrangeiros de Palmeiras e Santos

Gabriela Chabatura Colaboração para o UOL, em São Paulo Arte/UOL

Pinta de galã, boêmio, polêmico e goleador. É assim que familiares, torcedores e historiadores se referem a Juan Raúl Echevarrieta, um argentino que entrou para a história de Palmeiras e Santos, finalistas da atual Copa Libertadores. Com temperamento de causar rusgas entre técnicos e dirigentes, o atacante viveu o auge da carreira no futebol brasileiro nos anos 40 ao colecionar gols e causos dentro de campo, que iam desde às provocações aos zagueiros adversários até corpo mole para ganhar premiação extra.

Aos 27 anos, Echevarrieta chegou ao Brasil e foi contratado pelo Palestra Itália - antigo nome do Palmeiras — após passagens pelo Gimnasia, Esgrima e Vélez Sarsfield, todos da Argentina — e foi um dos pilares da Arrancada Heroica alviverde. Em novembro de 1942, se transferiu para o Santos, clube que defendeu até agosto do ano seguinte e se tornou um dos estrangeiros com mais gols da história do Peixe (veja mais abaixo). Depois, atuou pelo tradicional Ypiranga-SP e se mudou para o interior de São Paulo, período em que os parentes da cidade natal Olavarría deixaram de receber notícias sobre as façanhas e paradeiro do craque por quase duas décadas.

De personalidade forte e perfil reservado, o argentino também atraía olhares fora dos gramados. Era convidado ilustre das festas da alta sociedade paulistana. Apaixonou-se por muitas mulheres, entre elas, Olga Destro, com quem teve seu segundo filho — Luiz Echevarrieta.

É a partir das memórias do filho brasileiro de Echevarrieta que o UOL Esporte conta uma história quase desconhecida do argentino que encheu os olhos de palmeirenses e santistas.

Arte/UOL
Acervo pessoal

Adeus, Argentina: da recusa do Bonsucesso ao início no Palestra

Nascido na cidade de Olavarría, a 350 km de Buenos Aires, Echevarrieta perdeu os pais quando tinha apenas oito anos e, por isso, foi criado por uma tia — ao lado dos irmãos mais velhos Héctor, Félix, Pedro, Elena e Elvira. Foi lá que ele deu os primeiros passos no futebol, nos modestos San Martín de Sierras Bayas e Estudiantes de Olavarría, e se casou com Leonor González Amor, com quem teve o primeiro filho, Atílio.

Com família constituída, Echevarrieta mudou para La Plata em busca de maiores desafios e visibilidade na carreira. Em 1932, ele estreou pelo Gimnasia e, logo, se tornou titular. Apesar das ótimas atuações, segundo o pesquisador e jornalista argentino Marcelo Verna, passou a ser preterido pela comissão técnica e pouco foi utilizado nas temporadas de 1936 e 1937 por causa do forte temperamento.

Em 1938, foi emprestado ao Vélez Sarsfield — mas retornou ainda no fim daquele ano para o Gimnasia. Cansado do vaivém e incertezas na Argentina, Echevarrieta desembarcou no Rio de Janeiro em junho de 1939 para um teste no Bonsucesso. Terminou dispensado pelo técnico Gentil Cardoso por estar "visivelmente fora do ritmo".

A sorte grande apareceu um mês depois a convite da família Matarazzo para integrar o plantel do Palestra Itália. O negócio deu tão certo que o argentino segue como o maior artilheiro estrangeiro da histórica do clube, com 113 gols em 128 jogos (veja o quadro), e liderança incontestável durante a campanha do título do Campeonato Paulista de 1942, quando também o Palestra virou Palmeiras devido à Segunda Guerra Mundial - este episódio ficou conhecido como a "Arrancada Heroica".

Um dos muitos mistérios de Echevarrieta corresponde exatamente a esse período. Não há informações sobre o destino da então esposa Leonor González Amor e do filho Atílio, que, posteriormente, morreu em decorrência de uma desordem do desenvolvimento neurológico (o ano é desconhecido). Segundo documento (imagem acima) expedido pelo Consulado do Brasil em Buenos Aires, em 1941, Echevarrieta aparecia como casado, mas havia nada na declaração de "filhos menores de 18 anos".

Acerto Histórico e Memória SEP Acerto Histórico e Memória SEP

Malandragem e provocações

Apelidado como "O Homem dos Sete Instrumentos", por causa da versatilidade de atuar em diferentes posições do ataque, Echevarrieta criou suas próprias estratégias para tirar vantagens das marcações cerradas dos defensores. No futebolês, é o famoso catimbeiro.

No duelo contra os zagueiros dentro da área, o argentino aproveitava a distância do árbitro para provocar os rivais e cutucar a bunda deles, que ficavam nervosos, dando espaço para o atacante se movimentar e fazer gols. Aliás, ele costumava dizer que o defensor mais complicado que enfrentou foi Domingos da Guia, pai de Ademir da Guia e um dos maiores jogadores da história do Vasco e do futebol brasileiro.

É verdade também que, em algumas ocasiões, o artilheiro fazia corpo mole durante o primeiro tempo do jogo, porque sabia que um incentivo financeiro seria oferecido por algum dirigente no intervalo da partida.

Meu pai era um jogador muito experiente e aproveitava disso. Naquela época, ele parava de jogar no primeiro tempo, porque o cartola ia no vestiário e oferecia 500 cruzeiros [moeda da época] para que ele fizesse gols no segundo tempo. Aí ele fazia e levava o dinheiro que era um valor maior do que ele ganhava no mês inteiro. Era muito malandro".

Luiz Echevarrieta, filho de Echevarrieta

Fama de encrenqueiro

Os holofotes no futebol também se tornaram problemas para Echevarrieta. Com maior exposição e reconhecimento da mídia, o atacante foi protagonista também nas páginas policiais. Em uma pesquisa de conteúdo pelos jornais daquela época, o jornalista argentino Marcelo Verna constatou que, durante a passagem dele pelo Palmeiras, foi denunciado ao departamento de imigrações brasileiro. Ele estava ilegal no país, uma vez que o visto dele era temporário — e não de residente permanente — e que o endereço informado às autoridades estava errado.

A saída do argentino do Verdão, inclusive, foi conturbada. Ele decidiu deixar o clube após uma discussão com o técnico Armando Del Debbio, que reprovava a vida noturna agitada que ele levava.

Transferiu-se para o Santos, mas — em menos de um ano — somou suspensões, multas internas e sanções da federação por indisciplina. A gota d'agua foi a expulsão aos 15 minutos no clássico contra o Corinthians, em 8 de agosto de 1942. Foi afastado por três meses, sem direito aos salários. Nunca mais voltou a vestir a camisa do Peixe.

Acervo Histórico do Santos FC Acervo Histórico do Santos FC

Um tipo mulherengo e festeiro

Após deixar o Santos e defender o Ypiranga-SP, Echevarrieta mudou-se para Marília, no interior de São Paulo, para jogar pelo São Bento. Lá, ele se apaixonou por Olga Destro e teve seu segundo filho, Luiz Echevarrieta, que nasceu em 1947. O relacionamento, no entanto, foi marcado por altos e baixos, sobretudo, por causa das traições por parte do jogador.

Foi em uma dessas escapadas que ele conheceu Selma, uma mulher milionária e dona do bordel mais famoso de Londrina, no Paraná. No inverno de 1960, já aposentado e beirando os 50 anos, os dois viajaram para Olavarría para rever os familiares que o ex-jogador não encontrava havia décadas. Foi a última vez que eles o viram.

O relacionamento de Selma e Echevarrieta também não foi adiante. Nos últimos anos de vida, já com a saúde debilitada por causa do vício no cigarro Hollywood, ele tentou reatar a união com Olga, mas ela nunca mais o aceitou de volta.

Arquivo pessoal

Distância do filho e culpa até o último dia

Nos seus últimos dez anos de vida, Echevarrieta tentou recuperar a relação perdida com o filho brasileiro. O pai havia ido embora quando Luiz tinha apenas sete anos. O reencontro só foi ocorrer uma década depois, quando os dois passaram a morar juntos em Santa Catarina.

"Ele fez muita falta na minha vida. Eu parei de jogar futebol, então sentia que precisava de um pai. Aos 17 anos, eu fui resolver uma questão pessoal com ele, me apresentei e nunca mais perdemos contato. O grande problema do meu pai era o complexo de culpa. Então, quando eu trouxe ele para morar comigo, nunca o cobrei para não aumentar esse sentimento nele", lembra Luiz, atualmente com 73 anos.

Com a saúde debilitada e pouco dinheiro, Echevarrieta falava pouco, mas fazia questão de acompanhar os jogos do Palmeiras pela televisão e organizar as partidas de futebol que aconteciam no campo de futebol, localizado em frente à casa. Às vezes, apitava. Outras, simplesmente, assistia à diversão dos amigos, entre eles o ex-goleiro Oberdan Cattani (1919-2014), com quem atuou no Verdão.

Echevarrieta não teve tempo para fazer a viagem que havia planejado com o filho para a Argentina, mas compensou o tempo desperdiçado sendo um avô carinhoso para a primeira neta, a Patrícia, que hoje tem 47 anos. "O vô Che sempre foi muito na dele. Mas eu me lembro como se fosse ontem, quando eu tinha sete anos e morávamos em Blumenau. Eu e minha mãe estávamos fazendo couve-flor gratinada e íamos usar o forno, que meu pai [Luiz] nunca tinha usado ali na cozinha. Quando o ligamos, começaram a sair ratos de todos os lados. Gritamos e logo apareceu o meu avô pensando que tinha acontecido algo. Quando nos viu, começou a dar risada daquela cena", rememora.

Echevarrieta morreu, aos 76 anos, em 27 de novembro de 1987, em Florianópolis, em decorrência de um enfisema pulmonar. Seus feitos, porém, seguem imortalizados nas histórias dos gigantes Palmeiras e Santos.

Estivemos dez anos juntos, mas também foram anos muito tristes porque ele sofria muito por causa do enfisema [pulmonar, doença caracterizada pela falta de fôlego e causada sobretudo pelo fumo]. Eu dava banho nele sentado, a janela precisava estar sempre aberta porque ele tinha dificuldade de respirar. Procurei aproveitar o máximo do meu pai, que sofria muito também de arrependimento e guardava sentimentos fortes. Foi um homem querido por todos, mas, infelizmente, morreu de solidão".

Luiz Echevarrieta, filho de Juan Raúl Echevarrieta

+ Especiais

Fernanda Luz/AGIF

Cuca relata dias de luta contra a covid-19 em meio ao trabalho no Santos

Ler mais
Paulo Paiva/AGIF

Como Abel recuperou talentos e pôs o Palmeiras para disputar tudo

Ler mais
Almeida Rocha/Folha Imagem

Jorginho revela Palmeiras de 2009 e detona Sampaoli, Jesus e Gabigol

Ler mais
Ivan Storti

Marinho é muito mais que um meme: noites sem dormir e luta contra racismo

Ler mais
Topo