Voz de quem nunca foi ouvido

No SBT, Luiz Alano é o primeiro negro a narrar a Copa Libertadores em rede nacional na TV aberta

Djalma Campos e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Arquivo Pessoal

"Irmão, você não percebeu que você é o único representante do seu sonho na face da Terra? Se isso não fizer você correr, chapa, eu não sei o que vai", canta o rapper Emicida nos fones de ouvido do narrador Luiz Alano minutos antes de uma partida de futebol. É um ritual, o único que contempla o dia a dia do jornalista antes de todos os jogos que narra.

A música "Levanta e Anda", conta Alano, é seguida por outros hinos de artistas que levam a negritude na pele e na ponta da língua. O som que o ajudou na concentração para seu jogo de estreia na Libertadores —entre Grêmio e Universidad Católica— foi "Negro Drama", dos Racionais MC's. Alano passou a integrar o time de esporte do SBT em setembro. A emissora comprou os direitos da transmissão do campeonato e, ao lado do veterano Téo José, ele será a voz da Copa Libertadores da América na TV aberta. Em entrevista ao UOL Esporte, o catarinense "que fez anos de fono para perder o sotaque" relembra a estrada até aqui. Incluindo o momento em que um antigo chefe disse ("juro que foi tentando me incentivar") que ele "deveria focar em rádio por não ter perfil para TV".

Entendi o que ele quis dizer ali. Um negro no Sul é uma dupla vitória. A gente é bem menor no Sul do que no Sudeste e em outras regiões —e sofre muito mais. A minha conquista de transmitir um Gre-Nal, de construir minha carreira 100% no Sul, é muito valiosa".

Foi no Rio Grande do Sul, entretanto, que Alano se deparou com o racismo de maneira escancarada ao chegar a uma emissora de rádio e ouvir um conselho do novo chefe. "Ele pediu que eu não ficasse chateado caso ouvisse comentários ofensivos sobre negros. Disse que era a cultura da região. Se isso tivesse acontecido hoje, eu teria agido de maneira diferente. São novos tempos. Teria dito que se é assim, não serve para mim. Mas eu achava que não podia ter voz, que não podia ir contra o sistema".

Alano não apenas confrontou o sistema como enfrentou o racismo estrutural com toda a garra que o ídolo, Emicida, narra: "Levanta essa cabeça. Enxuga essas lágrimas, certo? Respira fundo e volta pro ringue. Cê vai sair dessa prisão. Cê vai atrás desse diploma, com a fúria da beleza do Sol, entendeu? Faz isso por nós. Faz essa por nós. Te vejo no pódio".

Alano explica como chegou ao SBT

Arquivo Pessoal

O convite e a surpresa

Alano conversou com o UOL Esporte pouco depois de assinar o contrato com o SBT. Quando soube da compra de direitos de transmissão da Libertadores pela emissora, ficou ansioso para saber quem seriam os narradores. "Vi que um deles seria o Teo, e fiquei imaginando quem poderia ser o segundo. Um amigo me ligou numa sexta-feira e disse: 'Alano, só para tu saber, te indiquei para o SBT'".

"Eu comecei a rir e falei: 'Show de bola, cara, valeu aí pela força'. Mas tinha certeza de que não ia rolar. Já estou na pista há um bom tempo, mas sempre fiquei alocado na região Sul, cobrindo times do Sul. Não por minha vontade, mas pela escala. Então, na minha cabeça, achei que alguém de São Paulo ou Rio de Janeiro ocuparia essa vaga".

Alano também faz jogos pelo DAZN, serviço de streaming , esportivo, e, logo após da conversa com o amigo, veio de Santa Catarina para São Paulo narrar partidas pela plataforma. "No sábado à noite, recebi uma ligação de um diretor do SBT perguntando se eu aceitaria o convite de narrar os jogos da Libertadores pela emissora. Foi uma surpresa. Eles tinham a opção de escolher qualquer narrador. Qualquer um que estivesse disponível aceitaria. E eles me escolheram. Claro, aceitei".

Segundo o jornalista, a repercussão dos ainda poucos jogos que fez pelo SBT já é bem maior do que quando trabalhava no Premiere, pelo SportTV.

Sinto a pressão, mas tento não absorver tanto porque meu trabalho tem que ser o mesmo. Se eu parar para pensar em quantos milhões de pessoas estão assistindo, não consigo nem falar. Por isso, tento me agarrar à minha bagagem, à experiência de 28 anos na narração. Nunca falei para tanta gente, mas já que me foi dada essa oportunidade, eu sei o que fazer. Um trabalho como esse rejuvenesce, desafia. Por mais que eu esteja há tanto tempo no ar, boa parte do Brasil não me conhece e está procurando na internet agora quem é Luiz Alano. Vou deixar um bom cartão de visitas

Luiz Alano, sobre narrar em rede nacional

"Eu fui, quase sempre, o único negro"

"A região tem hábitos feios"

Para ilustrar as situações de racismo, Alano comenta uma situação vivida por ele em uma emissora de rádio em que trabalhou, em Caxias do Sul. Foi a primeira experiência do narrador fora de Santa Catarina, em 2002. Ele foi contratado por um dos gerentes da emissora.

"O dono da rádio não me conhecia. Tinha ouvido minhas gravações, mas não sabia que sou negro. Quando cheguei, ele me levou até a sala dele, me deu boas vindas e disse: 'Alano, na nossa região, nós temos uma certa intolerância com pessoas de cor. A região tem alguns hábitos feios. Então, se, em uma cabine, você for interpelado por algum torcedor te chamando de negro, de macaco, pelo duro, fazendo sons, releve, por favor'".

"Isso me causou um impacto porque era a primeira vez que eu saía de Santa Catarina. Pensei: 'Onde fui me meter?'. Perguntei a ele qual era a posição da rádio a respeito disso, e ele disse que tentava educar, mas que não dava para ir contra a cultura da região. Se fosse hoje, eu teria outra reação. Diria 'Isso não me serve'".

O narrador conta ao UOL Esporte que, apesar do alerta, nunca foi alvo direto de insultos enquanto trabalhou na cidade. Ainda assim, diz ter presenciado atos racistas no estádio e na arquibancada. "Quando a gente presenciava [ofensas racistas], a equipe da rádio olhava para mim e dizia 'Cara, não fala nada'. Se fosse hoje, eu denunciaria, alertaria. E não me orgulho de não ter feito isso à época. Eu me sentia acuado, quase que aceitando. Com o microfone na mão, eu poderia ter tido outras reações. Mas, baseado no alerta que recebi e no sistema em que eu vivia, acabei me calando —algo que, com a idade, cultura e consciência que tenho hoje sobre a representatividade do meu trabalho, jamais faria".

Reprodução/Instagram

E quem é Luiz Alano?

Luiz Alano, 43, é filho do ex-jogador de futebol Adãozinho, que passou pela Chapecoense e outros times de Santa Catarina. Até os 13 anos, tentou seguir os passos do pai —jogava como zagueiro, sempre foi bastante alto para sua idade e sempre teve o vozeirão que, até hoje, o caracteriza. Foi grudado no radinho, ouvindo a transmissão dos jogos do pai, que Alano teve o primeiro contato com a narração.

"Certa vez, quando meu pai jogava pelo Hercílio Luz, time da minha cidade, Tubarão (SC), ele fez um gol contra o Criciúma. Eu estava ouvindo a transmissão no rádio naquele momento, sempre à espera de que dissessem o nome dele. Daí, ele faz um gol de fora da área, a bola pega no morrinho artilheiro e engana o goleiro. O narrador grita: 'Gol! Adãozinho é o nome dele!' E eu vibrei!", relembra.

"Só que, durante o relato, ele enfatiza muito mais o fato de a bola ter desviado no montinho —ou morrinho— do que o gol em si. E aquilo me deixou intrigado, porque eu não sabia o que era o tal do morrinho. Fiquei ansioso à espera da chegada do meu pai, acordado de madrugada. Quando ele chegou, logo disse: 'Pai, por que o narrador disse morrinho artilheiro? Ele estava te xingando, disse que tu era gordo?'. E, daí, ele me explicou que era uma saliência da grama que desviou a bola. A partir desse dia, deixei de acompanhar as transmissões apenas para ouvir o nome do meu pai, mas, também, prestando atenção no que diziam os narradores", afirma.

Reprodução/Instagram

Sessões de fono porque "só aceitam quem fala 'orra, meu' ou 'mermão'"

Alano ouvia sempre as transmissões de futebol pelo rádio e, em 1991, com apenas 14 anos, começou a trabalhar como operador em uma emissora em Tubarão. "Em 1992, tive de relatar os reclames, as propagandas, para o narrador Paulo Garcia. A mulher dele passou o dia todo vendendo comercial para garantir a viagem, era um jogo da seleção em Curitiba. Pouco antes de começar o jogo, recebi dez folhas de comerciais para ler a ele durante o jogo", relembra.

"Até que ele para e diz: 'Alano, você tem uma bela voz. Chegue mais cedo na rádio amanhã que você vai apresentar o programa comigo'. Eu fiquei em choque. 'Como assim, Paulo? Nem sei como fazer isso'. Eu tinha 15 anos. Então, ele pediu que eu, ao chegar em casa naquele dia, lesse as notícias do esporte de um jornal em voz alta. E o adendo: 'Chegue tranquilo que vai dar tudo certo'".

Alano dividia seu dia entre sonoplastia, escola e locução. Se tornou um faz-tudo na rádio. Inspirado por grandes nomes como Luciano do Valle e Galvão Bueno, se dedicou a intermináveis sessões de fonoaudiologia para amenizar o sotaque catarinense. "Sei que isso facilitou minha entrada no cenário nacional porque, dificilmente, um cara que fala 'tchê' ou 'oxente' vai ser aceito no ar. Só aceitam quem fala 'orra, meu' ou 'mermão'. Só São Paulo e Rio", diz.

Reprodução/Instagram

A fila que não acaba

Alano comenta que tem notado, de poucos anos para cá, um aumento na presença de jovens negros em grandes empresas —principalmente nos espaços jornalísticos. Afirma, entretanto, que "esses negros sempre estiveram na pista. Nas filas de cinema, nas redações, batendo à porta dos diretores pedindo vaga".

Enfatiza que "eles já eram competentes há alguns anos, só que não tiveram oportunidade. E tá todo mundo mandando bem. Não deve ser questão de 'vamos botar um negro para ficar bem com a sociedade. Ele tem competência. Lembra-se daquela frase que ouvi uma vez, que eu não tinha perfil para a televisão? Cá estou. Qual o perfil? O perfil é o brasileiro. E qual o perfil do brasileiro? Pele branca e olho claro? Não. O negro é parte dessa cultura, está inserido nesse contexto. O negro não tem que chocar".

Segundo o narrador, é importante falar sobre acesso à educação quando a temática da vaga de emprego pede quatro, cinco línguas. "A gente sabe que o fator social pesa. Não tive condição financeira para me formar cedo, para ter cursos. Só consegui procurar um curso de inglês depois dos 30 anos. Não me formei na faculdade. Tranquei meu curso de jornalismo no sexto semestre por falta de condição financeira, não tava dando para pagar", relembra.

Arquivo Pessoal

"Ela tá trancada lá. Pretendo terminar. Tenho três filhos, então precisei fazer escolhas. Temos perrengues na vida, mas estou correndo atrás. Tudo o que tenho, hoje, é graças ao jornalismo. É só o que sei fazer na vida. Comecei com 14 anos, já trabalhei em dois estados e, pelo Brasil, antes com o DAZN, agora com o SBT. A gente tem que mostrar para o negro de todas as partes desse País que, sim. É possível."

Uma pesquisa levantada pelo site "Vai da Pé" mostrou que em 2018 apenas 3,7% dos apresentadores de TV brasileiros eram negros. "As pessoas estão prontas, falta oportunidade", diz Alano. "Muitas vezes, em viagens e cabines, me perguntavam quem seria o narrador da noite, não acreditavam que era eu".

O narrador conta que, quando vai entrar no ar, recebe diversas mensagens de fãs negros que ficam mais nervosos do que ele. "Alguns dizem que quando é meu jogo, suam frio e torcem para que dê tudo certo. Sinto uma energia tão grande, positiva, um amor vindo de todos os guetos do Brasil, a torcida por mim. É isso que me faz ter compromisso. Me deram uma chance, é um único tiro, uma bala só. Ele precisa ser certeiro. eu não posso errar."

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