Do campo ao forno

Daniel Bolt, a promessa que chegou ao Palmeiras com Patrick de Paula e hoje se vira entre a cozinha e a várzea

Diego Iwata Lima Do UOL, em São Paulo Bruna Prado/UOL

Daniel, 21 anos, tem uma rotina bastante regrada. Confeiteiro e padeiro, ele trabalha em dois turnos em uma padaria no bairro do Campo Grande, Zona Oeste do Rio. O primeiro começa às 5h30, antes de o sol raiar, e vai até umas 8h. De bicicleta, ele então volta para casa. E, lá pelas 9h, vai treinar em uma praça de sua vizinhança com a esposa Jheniffer, da mesma idade.

Foi ela quem apresentou o mundo da cozinha a Daniel, que tinha muito mais intimidade com a bola. A mãe dela cozinhava para fora, mas apenas salgados. Jheniffer e Daniel decidiram então se especializar nos doces. O futebol, afinal, não estava colocando comida na mesa da família, tampouco leite na mamadeira de Edward, de 6 meses.

Depois do treino, Daniel volta para casa e começa os afazeres de sua empresa caseira de doces para festas. Organiza os pedidos, mexe nas redes sociais da marca e vai para a cozinha. Ser confeiteiro não era o plano A de Daniel, mas é bem melhor do que trabalhar na limpeza do condomínio de onde saiu em novembro do ano passado para viajar a São Luís e tentar a sorte no Sub-23 do Sampaio Corrêa. Sorte que não lhe sorriu.

Se dissessem para o Daniel de setembro de 2016 que ele hoje seria confeiteiro, porque é muito humilde, ele talvez até acreditasse. Mas certamente iria ficar tentando entender como é que uma carreira promissora na forte várzea do Rio, que o levou ao Sub-20 do Palmeiras junto com Patrick de Paula, terminou na frente do forno. Para onde ele, aliás, volta toda noite, às 18h30, e só sai por volta das 22h, quando acaba seu segundo turno.

Futebol, ainda que em dois times de várzea, só aos domingos.

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Um mal-entendido e um mau final

Já se passaram cinco anos, e Daniel, vulgo Bolt, ainda não entende o que aconteceu em outubro de 2016. Descoberto pelo olheiro Juarez Fischer, o rápido atacante, camisa 7 do Cara Virada, da várzea da Zona Norte do Rio, foi convidado para jogar no Palmeiras. Com ele, foi o Pelé, o camisa 5, que na verdade era um legítimo 10.

Em São Paulo, os apelidos ficaram para trás. Daniel perdeu o "sobrenome" em homenagem ao velocista jamaicano. E Pelé passou a ser chamado pelo nome de batismo: Patrick de Paula. A dupla chegou estourando a idade para o Sub-17, mas foi aprovada para o Sub-20.

Pouco tempo depois, o time foi para a Holanda disputar um torneio. Daniel, Patrick e mais alguns garotos, que não estavam inscritos, ficaram treinando. Quando ia fazer mais ou menos um mês da chegada deles, contando o período antes da viagem, veio o aviso: Patrick e Daniel estavam dispensados. "Foi um auxiliar do Sub-17 que nos avisou", conta Bolt. "Um gringo, eu acho".

Eles logo voltaram ao Rio, onde ninguém entendia o que tinha acontecido. Não estavam treinando bem, recebendo elogios? Foi Sidney, um diretor do Cara Virada, quem ligou para o Palmeiras para entender a dispensa e pedir uma nova chance. E ouviu que tudo fora um mal-entendido. Eles não haviam sido dispensados coisa nenhuma. Mas, desta vez, apenas Patrick deveria retornar. Daniel, não.

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Desistir era opção?

O motivo da dispensa nunca ficou claro para Daniel. "Eu acho que eles precisavam mais de um meia do que de um atacante", diz, meio conformado, como se quisesse convencer a si mesmo. Fischer, olheiro do Palmeiras, vai mais ou menos nessa linha. Mas Arlen Pereira, um dos diretores do Cara Virada, tem outra teoria.

"Eu acho que foi uma espécie de punição, pelos meninos terem voltado. Futebol é assim. Mas eles não iam abrir mão do Patrick. Porque aí, eles iriam estar punindo o Palmeiras", diz. Hoje, Daniel fala com resignação sobre a dispensa. Na época, quando ouviu de Arlen que o clube não o queria mais, porém, se lembra de ter chorado muito.

O futebol ainda estava presente em sua vida. Pouco depois, enquanto Patrick ia ganhando espaço na base do Palmeiras, Daniel disputou a Taça das Favelas pelo Mamaô, clube que representa o bairro de Santa Margarida no torneio, uma espécie de seleção. Além do nome do time, Mamaô é o apelido de Carlos Roberto da Silva, dono da agremiação, que vem a ser o pai do atacante Deyverson.

O ânimo de Daniel já não era o mesmo. Algo se perdera em São Paulo, no CT do Palmeiras. Ele seguia jogando, mas não era mais a mesma coisa. Era duro demais ter chegado tão perto do sonho para vê-lo se desmanchar.

Ele chegou a treinar no Sub-20 do Resende, em 2018. O time foi até a semifinal do Carioca, eliminado pelo Fluminense. Daniel não ficou por lá. Depois, foi para o Esporte Resende, mas também não deu certo. De vez em quando, uma peneira aparecia. Em fevereiro de 2019, com casamento marcado para novembro, aceitou o emprego numa equipe de limpeza em um condomínio. Talvez, fosse o fim do sonho, ele chegou a pensar.

Naquela mesma época, o Sub-20 do Palmeiras foi a São Januário enfrentar o Vasco pela semifinal do Brasileiro. Patrick, o capitão do time, fez o gol da vitória, assistido por Vanderlei Luxemburgo, então técnico do profissional cruzmaltino. Um mês depois, já à frente do Verdão, Luxa chamou Wesley Carvalho, técnico do Sub-20, e disse: "Eu quero aquele neguinho".

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O sonho sobrevive

Em agosto de 2020, no mesmo mês em que Patrick de Paula fez o gol, nos pênaltis, que selou a conquista do Campeonato Paulista pelo Palmeiras, Daniel praticamente jogara a toalha. "Por escolha minha, parei de tentar", disse o jovem, que já há um ano e meio não atuava por nenhum clube. "Não era mais um objetivo. Mas é claro que eu gostaria". Jheniffer engravidou naquele mês.

E assim, Daniel passara a tratar o futebol não mais como um norte, mas como a maioria das pessoas trata, com mais ou menos dedicação: um passatempo. Até que veio novembro, mês em que Patrick e o Palmeiras avançaram às quartas da Libertadores e à semifinal da Copa do Brasil, já sob comando de Abel Ferreira, que também se encantara pelo garoto.

"Apareceu a oportunidade de viajar, ficar um mês no Sampaio Corrêa [do Maranhão]', contou. Daniel ficou em São Luís de meados de novembro até o meio dezembro, treinando com o Sub-23 da "Bolívia Querida".

"Não tive muita resposta. Cheguei por lá no fim do Campeonato Brasileiro de aspirantes, não tive atenção, Cheguei no meio, sem o ritmo do time, pouco joguei. Quando acabou o campeonato, eles rescindiram e me dispensaram", conta.

"Se for somar os dias de treino mesmo, não deu nem uma semana fechada. Fiz treino na caixa de areia e outros físicos. Mas como não tive muita oportunidade de jogar, fica difícil pegar ritmo."

O Palmeiras foi campeão da Libertadores em 30 de janeiro deste ano. Pouco tempo antes de um empresário oferecer a Daniel uma oportunidade no Castanhal, da primeira divisão do Pará, em fevereiro. Era a primeira chance dele em um time profissional. Por mais que fosse tão longe de casa, era um salto. A tradicional equipe fundada em 1924 teria ainda a Série D do Brasileiro no calendário.

"Tive mais tempo, mas meu estilo de jogo não casou muito com o do treinador. Ele jogava com um atacante só na frente, e um meio-campo muito povoado", disse Daniel, que mais uma vez chegou com um campeonato em andamento. E mais uma vez, também se frustrou.

"Apesar de não estar jogando muito, viram futuro, eu acho. Até um dia antes da dispensa, chegaram a falar de salário comigo, e disseram que iam falar com meu empresário, para ele explicar como ia ser", contou. À noite, porém, o empresário ligou dizendo que ele estava dispensado.

Vindo de tão longe, Daniel pediu mais uma semana de trabalho, para tentar mostrar que tinha futebol para ficar na equipe. Mas não lhe deram. Acabou rompendo com o agente e voltando para o Rio, onde em poucos meses, em maio, nasceria Edward.

Eu acho que faltou transparência do empresário. Alguma coisa aconteceu entre a conversa no clube e a ligação à noite.

Daniel Bolt, sobre a desilusão no Castanhal do Pará

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Uma nova vida

Patrick de Paula foi flagrado em um evento clandestino na madrugada, na zona leste de São Paulo, em 20 de junho. No mesmo horário, era bem possível que Daniel também estivesse acordado. Mas para cuidar do filho de cerca de um mês.

Quando Daniel voltou do Pará, não havia mais emprego. O trabalho na limpeza do condomínio já não existia. "Aí falei com o pessoal de projetos sociais, falei com muita gente para ter um apoio", contou. Foi quando veio a ideia de aprender confeitaria.

A ideia era fazer cursos, mas a pandemia não deixava nada presencial. E Daniel e Jheniffer foram para as aulas online. Aos poucos, o casal foi se aperfeiçoando. Vendendo para fora, aqui e ali, e ganhando fama no boca a boca da comunidade.

O pai de Daniel vai financiar um curso profissionalizante, primeiro para Jheniffer. "Ela é apaixonada por isso", conta o jovem, que conheceu a amada na igreja que frequenta desde criança, no mesmo mês em que foi para o Palmeiras.

O pessoal brinca que eu fugi de São Paulo porque fiquei com saudade dela. Mas é claro que não foi isso. Quem iria fugir de uma chance no Palmeiras?

Daniel Bolt, sobre a volta ao Rio após o período no clube paulista

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Ajuda de custo

Hoje, Daniel disputa dois campeonatos de várzea aos domingos. Quando os horários não batem, ele joga as duas partidas, e sempre recebe alguma coisa para jogar. "Falam que é pelada, mas o negócio é sério", diz. "Tem sempre uma ajuda custo, muito bem-vinda."

Um dos times é comandado pelo pessoal do Cara Virada, de Santa Margarida, onde ele e Patrick foram descobertos. O outro é o Rio Branco, de Campo Grande, que foi onde a reportagem esteve para fazer as fotos que ilustram essa matéria.

Nas muitas conversas que teve com a reportagem, por mais que sempre tenha dito algumas vezes que não tinha mais ânimo, Daniel sempre deixou transparecer a esperança de, mesmo aos 21 anos, ainda conseguir fazer do futebol o sustento de sua família. E é por isso que ele treina todo dia.

"Sempre vem alguém e fala que uma chance pode aparecer. E eu tenho que estar preparado, se isso acontecer", diz Daniel, entre uma fornada e outra.

Com o amigo Patrick, que em 27 de novembro vai disputar sua segunda final de Copa Libertadores em menos de um ano, Daniel pouco fala.

Ele me mandou uma mensagem quando casei, pelo Insta. E quando eu estava no Resende, também. Ele me prometeu uma camisa dele, mas até agora, nada.

Daniel Bolt, sobre a relação com o palmeirense Patrick de Paula

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