Primeiro, Julinho era um jogador de conduta digna e que merecia, sim, ser escalado pelo técnico Vicente Feola para aquele amistoso contra os ingleses em 13 de maio de 1959. Mesmo ocupando a vaga que seria de Mané Garrincha, que tinha brilhado um ano antes nos campos da Suécia e dado ao Brasil seu primeiro título mundial.

Segundo, ele não era desconhecido do público carioca. Muito pelo contrário: nas eliminatórias da Copa do Mundo de 1954, naquele mesmo Maracanã, o Brasil precisava golear o Paraguai para se classificar. "E o meu pai jogou muito. Fez dois gols e ajudou o Brasil a bater os paraguaios por 4 a 1. Ele relembrava isso e dizia que não se conformava com a vaia histórica, que virou até crônica do Nelson Rodrigues".

Uma crônica que entrou para a história: "Vejam vocês as ironias da vida e do futebol: de um momento para outro, o vaiado, o apupado, o quase cuspido transformou-se num triunfador. E de fato Julinho foi grande. Nos pés de Julinho, a jogada se enfeitava como um índio de carnaval", escreveu Nelson.

Nem o grande cronista deve ter entendido bem a origem daquela raiva futebolística. Julinho era jogador querido por onde passava. Ídolo. A história começou no Juventus. Em uma preliminar do time da Mooca, Julinho marcou seis gols defendendo a equipe de várzea do Sindicato dos Tecelões.

"O diretor do Juventus viu aquela atuação e perguntou se ele jogava em algum time. Meu pai ajudava meu avô Francisco no armazém e o auxiliava no serviço de pedreiro. Então, ele voltou na terça-feira lá no Juventus e já no domingo estreou no time titular pelo Campeonato Paulista contra o XV de Jaú. Marcou o gol do empate de 1 a 1".

Era o início de uma carreira vitoriosa que vai ser mostrada em detalhes no documentário de sua neta, que ainda vai entrevistar velhos jogadores e jornalistas brasileiros. Uma estrada cheia de dribles e gols, que poderia ter começado no Parque São Jorge.

Segundo os amigos de infância, o menino Júlio era corintiano fanático — talvez esse detalhe não entre no documentário, assim como o nome do técnico que queria transformá-lo em lateral...

Aquele técnico não poderia estar mais errado. Julinho logo brilhou no Juventus e acabou indo parar no lendário time da Portuguesa que ganhou a Fita Azul em excursões impressionantes pela Europa no início da década de 50. Na Lusa, fez 191 jogos e marcou 101 gols — quatro deles em um inesquecível 7 a 3 contra o Corinthians, em 1951.

As portas se abriram para a seleção brasileira. Com a camisa amarela, disputou 31 partidas e marcou 13 gols. Na Copa de 1954, na Suíça, fez um golaço contra o México e outro na derrota para os húngaros.

"Apesar da eliminação da equipe naquela Copa, Julinho foi eleito o melhor ponta da competição. Era muito rápido, driblava com facilidade, dava umas brecadas que enganavam os marcadores e também finalizava com a perna esquerda. Por isso marcou tantos gols na carreira".

O destaque em campos suíços bastou para que o técnico da Fiorentina, Fúlvio Bernardini, sugerisse a sua contratação. "E na Itália ele foi um Deus. Tinha até uma mesa reservada a ele no restaurante que frequentava. Em 1992, estive lá e comi na mesa que era exclusiva do meu pai. E lá estava escrito: 'qui manjava il signore Julio Botelho'. Mas agora já não é mais um restaurante, os velhos donos morreram. Hoje é um armazém, um mercadinho".

Carlos esteve no final do ano passado lá em Florença com Beatriz para a realização de parte do documentário (na foto abaixo). Lá, a dupla de cineastas ouviu o ex-presidente do Museu da Fiorentina, Andrea Claudio Galluzo. Julinho era um ídolo não só pelos 29 gols assinalados em 89 partidas nas três temporadas em que vestiu a camisa Viola.

Mas por que deixou a Itália onde era ídolo? Esse é um dos outros pontos fortes do documentário. Julinho era muito ligado à sua família. À sua mãe. Tentou por diversas vezes levá-la para viver com ele na Itália, mas ela não aceitava.

"Então, meu pai resolveu voltar ao Brasil. E recebeu proposta do Corinthians, do Palmeiras e do Fluminense. E ele me contava que os dirigentes dos três clubes vieram até aqui em frente da nossa casa e falaram que queriam contratá-lo. Meu pai contava que recebeu os três, garantiu que não iria fazer leilão e pediu que cada um escrevesse em um envelope qual era a proposta. A que mais o agradasse seria aceita".

E ele gostou mais da proposta do Palmeiras, que foi seu clube daí em diante. Segundo o documentário, foi a partir de então que Julinho Botelho se tornou palmeirense. Fez uma carreira irrepreensível. Foram 267 jogos com 89 tentos, com direito a gol na final do Super-Campeonato Paulista de 1959 contra o Santos de Pelé. E também à conquista de vários títulos.

"O maior legado que meu pai deixou para toda a família é que a palavra de um homem vale mais que sua própria assinatura", lembra Carlos. A ideia frutificou tanto, que onde funcionava uma escola de futebol, a família — toda ela ligada à área educacional — resolveu criar em 2006 o Colégio Júlio Botelho, no bairro da Penha. Ali, todos os 500 alunos aprendem quem foi o craque e o homem.

Por isso tudo é que fica difícil acreditar que um jogador como Julinho Botelho foi tão vaiado naquela noite no Maracanã. O jogo era contra a Inglaterra. Um amistoso.

"No vestiário, meu pai começou a ouvir as vaias e comentou com Djalma Santos que não entendia o motivo. Está certo que a torcida queria ver o Mané Garrincha, mas ele também era merecedor de entrar em campo. Prometeu ali, no vestiário mesmo, que iria calar a torcida, aquela mesma torcida que em 1954 tinha gritado seu nome na vitória contra os paraguaios".

Julinho entrou em campo sob vaias. O hino foi executado sob vaias. Mas quando o jogo começou... Logo aos 3 minutos fez uma jogada em que deixou a defesa adversária torta e fuzilou para o gol. Um a zero. Depois construiu a jogada que terminou no gol de Henrique. 2 a 0.

E passou a partida toda encantando a torcida, que ao final do jogo, passou dois minutos aplaudindo Julinho ao sair do gramado. Atônito, o técnico da seleção inglesa quis saber quantos Garrinchas existiam no futebol brasileiro.