Campeão mundial

Você precisa conhecer Henrique Avancini. E não apenas porque ele é um dos melhores ciclistas do mundo

Demétrio Vecchioli Colaboração para o UOL, em São Paulo Boris Beyer/Red Bull Content Pool

O ciclismo brasileiro era um e se tornou outro depois que Henrique Avancini chegou à elite do mountain bike, vencendo um Campeonato Mundial e se firmando como o segundo do ranking da federação internacional. Estaria ele preocupado com deixar um legado?

"Eu penso muito a respeito nisso, de uma forma mais filosófica...", diz o ciclista de 30 anos, iniciando uma resposta de quase seis minutos. Sim, Avancini pensa, ou "filosofa", muito sobre seu legado. E também atua na prática. Hoje, além das 12 pessoas que o auxiliam como atleta, entre treinador, fisioterapeuta, mecânico, etc, ele emprega outros 17 profissionais em projetos que visam o desenvolvimento da modalidade e a formação de atletas que um dia possam superá-lo.

Número maior, só de patrocinadores. Atualmente, 18 marcas são ligadas de forma contínua ao ciclista. Ele evita comparações, mas, sozinho, é maior do que a Confederação Brasileira de Ciclismo. Se hoje o mountain bike é o mais rico esporte olímpico individual do país, atraindo até 20 mil espectadores numa única prova (como comparação, a média de público do Campeonato Paulista de futebol, da primeira divisão, na primeira rodada da edição de 2020, foi de 9459 pessoas), é muito porque Avancini é o fermento que faz o bolo crescer.

"Os atletas muitas vezes se preocupam em alcançar o lugar de destaque e, quando você está com faca na mão, você corta a fatia do bolo do tamanho que você quer. É mais trabalhoso, mas é muito mais proveitoso, até porque você vai colher mais frutos no futuro, ao invés de se preocupar em cortar uma fatia maior, você se preocupa em fazer um bolo maior", compara.

Em conversa com o UOL Esporte, Avancini não só explicou a receita como contou dos preparativos necessários para fazer a massa crescer, avaliou o sabor do recheio e...

Boris Beyer/Red Bull Content Pool

Assista à entrevista completa

A filosofia de Avancini

Avancini explica assim a essência da sua filosofia: "Eu tento entender minha carreira de uma forma cíclica. Fui campeão mundial em 2018, por exemplo. O atleta entende esse resultado como o ponto final: o que foi almejado e o que foi conquistado. Eu entendo como ponto de partida. Agora eu sou campeão mundial, o que eu consigo fazer sendo campeão mundial? Esses resultados são os facilitadores para eu fazer outro projeto."

É o resumo de uma soma de aprendizados e ações de um esportista que diz ter formação "bíblica" e que se tornou um dos mais bem remunerados atletas olímpicos do país. "Eu pago minhas contas com a minha carreira. E uso minha carreira para construir outros projetos, que pagam as contas de outras pessoas. Uso o capitalismo de uma forma um pouco diferente. Acredito no poder do capitalismo como distribuição de renda. Quero ganhar o máximo possível, de uma forma correta, para compartilhar o máximo possível".

Na cultura, Avancini seria nomeado um "agitador cultural". O esporte, ao menos o brasileiro, não tem expressão semelhante, talvez por falta de personagens que se encaixem nesse perfil. A dedicação a outros projetos costuma ser deixada para depois da aposentadoria. No auge como atleta, a dedicação costuma 100% para o rendimento.

Não para Avancini. "Comecei a desenvolver com o treinador um trabalho de blocos e campings de treinamento. Quando são mais longos, eu fico mais isolado, direcionado a treinamento e performance de forma quase militar. Nos dias de bloco, tenho três, quatro sessões de treinamentos por dia. Nos dias de recuperação, não paro de fazer as coisas, só mudo o que estou fazendo. Depois de muito tempo fazendo isso, você não consegue recuperar tanto quanto estivesse deitado na rede, mas também não sobrecarrega a mente.

Só no dia que concedeu essa entrevista ao UOL, num fim de tarde, Avancini já havia feito treino de corrida, três reuniões com equipe e outras duas com organizadores de provas no Brasil, além de enviar e-mails para atletas de suas equipes e traçar planos de comunicação e marketing.

Bartek Wolinski/Red Bull Content Pool Bartek Wolinski/Red Bull Content Pool

"Sempre me considerei um cara não muito talentoso", diz Avancini. Parece estranho pensar assim, mas o raciocínio tem lógica. "Quando você pega o top10 do ranking mundial, não tem um atleta que não tenha sido medalhista nos Mundiais Júnior ou Sub-23. É um esporte que tem essa continuidade para construção do alto rendimento, mas, nas duas categorias, eu sempre estive muito distante do topo. Era medíocre no alto-rendimento, não chamava atenção".

Na elite desde 2012, o brasileiro só foi conseguir terminar uma etapa de Copa do Mundo entre os 25 primeiros em 2014. O próximo salto, entrar no top10, levou mais três anos. Desde 2018 ele está entre os cinco melhores da categoria. Naquele ano venceu o Mundial na prova de maratona, mais longa que o XCO (cross-country), distância olímpica. À frente dele no mundo, hoje, só o suíço Nino Schurter, um dos grandes atletas do nosso tempo, que antes de vencer oito dos 10 Mundiais adultos que disputou (foi vice nos outros dois), ganhou tudo e mais um pouco nas categorias de base.

Ao reconhecer que não é mais talentoso que os caras da ponta da pirâmide, Avancini passou a pensar em soluções para alcançá-los. "Comecei a sair do óbvio, não só no mountain bike, na modalidade em si, no jeito que eu treinava, mas outras áreas também. Fui tentando agregar conhecimento, fazer mais experiências de treinamento, recuperação, para ver se expandia meu nível. Errei e acertei muito. Nos quatro ou cinco anos tentando, errei mais do que acertei, até que comecei a ter experiência de ser mais assertivo. As loucuras que eu sabia que não dão certo eu eliminei. E comecei a me concentrar nas loucuras que dão certo e otimizei os resultados", explica.

Competindo no moutain bike europeu desde que entrou na categoria sub-23, aos 19 anos, Avancini também adotou uma mudança de parâmetros. "Muito cedo eu percebi que tinha uma coisa entre brasileiros: o principal não era alcançar o melhor nível possível, o primordial era ser o melhor brasileiro. Era muito essa questão do parâmetro. E comecei a ter desejo muito grande de quebrar barreira. É o que me motiva até hoje. Me alimento muito mais por quebrar a barreira, alcançar o que ninguém quis alcançar porque julgava distante demais. Não talvez porque eu seja muito melhor que outras gerações do ciclismo brasileiro, mas a minha mente estava voltada para outro caminho."

O sucesso de Avancini, claro, não vem desassociado de talento. Tanto que, logo no primeiro ano na elite, aos 23, o brasileiro foi aos Jogos Olímpicos de Londres como segundo melhor do país no ranking mundial. Naquela época, disputou as seletivas com uma bicicleta defasada, sem patrocínio. "Tinha que correr prova regional para ganhar premiaçãozinha de 500 pratas, mil pratas, para pagar a viagem para os eventos principais. Isso ilustra o que era o nível nacional na época."

O ciclista se vê como uma "fagulhinha" para início de um processo de transformação do mountain bike no Brasil, ainda que essa revolução caminhe passo a passo junto dos seus resultados. Desde 2018, quando Avancini começou a brigar por vitórias em etapas da Copa do Mundo, o Brasil é o maior público espectador das corridas, transmitidas pela Red Bull TV.

A "semente" plantada por Avancini virou uma enorme floresta. "O brasileiro é muito dependente do orgulho próprio. Quando um brasileiro começou a ter grandes resultados em cima de uma bicicleta, a comunidade da bicicleta se valorizou mais. O mercado brasileiro começou a ficar importante para todas as marcas globais e estufou o peito, começou a assumir uma postura de muito mais poder. Se a gente faz diferença para o mercado global, vamos começar a falar de outra maneira, investir na modalidade de outra forma, e tudo isso vai desencadeando um ciclo muito virtuoso"

Se no mundo todo o ciclismo de estrada é a disciplina predominante, no Brasil a ordem se inverteu. Enquanto por aqui a modalidade de estrada caiu numa bola de neve em que faltam provas, atletas, patrocinadores, apoio, dinheiro, etc, a ponto de o país não conseguir vaga em Tóquio e não ter corridas chanceladas, no moutain bike, ou MTB, toda a cadeia se fortaleceu.

"Hoje no Brasil a gente bota 20 mil pessoas assistindo uma prova de mountain bike. É absurdo, é um estadiozinho de futebol. O mountain bike já mostrou que é possível desenvolver um esporte como o nosso a um nível de o esporte se tornar não apenas autossustentável, mas lucrativo. Isso é a situação dos sonhos."

Bartek Wolinski/Red Bull Content Pool Bartek Wolinski/Red Bull Content Pool

Avancini tem muito orgulho da sua história, mas não quer que ela se repita. Não a parte das dificuldades. Por isso, criou a "Henrique Avancini Racing", que administra duas equipes de base, com cinco atletas, centro de treinamento, mecânicos, fisioterapeutas, treinador, psicólogo, e tudo mais que é necessário para que ele próprio seja ultrapassado algum dia.

"É muito difícil substituir um atleta que chegou ao topo. Espero que um, dois ou três desses mais jovens me ultrapassem antes de eu aposentar. Acho que esse seria o cenário mais saudável para a modalidade", projeta.

Mas e se esses atletas que ele fomenta evoluírem a ponto de o ultrapassarem não na fase de curva negativa da carreira, mas no auge? "Não é uma coisa que vai me dar prazer como atleta, mas como embaixador do esporte, eu vou ficar feliz sim. Não tenho ambição de alongar minha carreira até entrar nessa curva decadente, que o cara é só uma sombra do que ele foi cinco anos atrás. Espero que esses caras da geração mais nova comecem a me desafiar cada vez mais e eventualmente comecem a ganhar de mim em certas competições. Isso me traria certa realização, porque eu ia ver de forma clara que eu não fui só um cara que gerou um bem momentâneo para o esporte, mas consegui subir o padrão do esporte, e me veria menos essencial para o esporte e isso me daria bastante paz."

Bartek Wolinski/Red Bull Content Pool Bartek Wolinski/Red Bull Content Pool

O desenvolvimento do mercado da própria carreira e do mercado do mountain bike no Brasil chegou a tal ponto que Avancini considera que uma medalha olímpica seria bem-vinda, claro, mas que ela não é essencial. Se ela vier em Tóquio, em 2021, ótimo. Se não vier, o mountain bike não perde relevância.

"Eu vivo basicamente da indústria da bicicleta, ou de marcas que são não da bike, mas muito ligadas ao esporte. Eu me vejo as vezes muito mais sob pressão numa Copa do Mundo do que nos Jogos Olímpicos. Para o crescimento da minha modalidade individualmente seria muito benéfico eu me concentrar nesses eventos onde a modalidade é explorada de forma mais profunda, Copa do Mundo, Mundial, Cape Epic (prova anual de vários dias na África do Sul). Essas provas trazem muita comunicação, muito conteúdo, e agregam muito valor à minha carreira".

Diferente de grandes nomes do esporte dito olímpico do Brasil, que conversam com um grande público, mas conversam pouco, Avancini está ainda preso a uma bolha onde exerce grande influência. "Noventa por cento dos meus fãs são caras que têm uma relação íntima com a bike, são ciclistas em algum nível", avalia. Após três temporadas do seu programa "Vida de Biker", no canal Off, o público usual do canal — amantes de esportes ao ar livre — também passou a acompanhá-lo.

O passo seguinte seria começar a se comunicar com o público geral, mas Avancini não quer colocar a correia na frente do guidão. "É perigoso quando você força muito a ir para o extremo, quer aumentar muito teu alcance e começa a dar muita atenção para mídia aberta. Muita gente começa a saber quem você é, qual teu nome, de que esporte você é, mas não há acompanhamento contínuo da tua carreira ou da tua modalidade. Me preocupo muito em fazer isso".

Minha preocupação primordial é como vou fazer o esporte continuar crescendo. Minha carreira nesse nível tem validade para acabar. E é uma validade curta. Se eu não usar esse tempo para consolidar o cenário do MTB no Brasil, principalmente, é uma coisa que me torna passageiro demais, me torna uma ondinha

Henrique Avancini

Durante muito tempo, o que eu falava foi visto de uma forma muito cética, porque eram objetivos, uma visão ambiciosa demais. Quando eu fui conquistando as coisas, as pessoas foram repensando as atitudes. É uma sensação saudável. Minha carreira trouxe muito essa questão de repensar onde a gente consegue chegar

Henrique Avancini

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