Tarzan e National Kid

Manoel dos Santos e a história de erros e acertos que custaram um ouro olímpico, mas levaram a recorde mundial

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Agência O Globo

Há 60 anos, um Tarzan brasileiro treinava feito louco sob o comando de um discípulo de National Kid na piscina do Clube Internacional de Regatas, na cidade de Santos. Era o mês de abril e às vezes essa dupla dinâmica podia ser vista olhando furtivamente para os peixinhos do Aquário Municipal. Parece uma história saída de um gibi, mas, em tempos de ficção científica mundial, até que é plausível. E merece ser contada.

Os personagens tem nome, sobrenome e só não chegaram à medalha de ouro nos 100 metros livre na Olimpíada de Roma, em 1960, porque os deuses das águas foram ingratos com o Johnny Weissmuller caboclo. Nosso Tarzan nasceu no interior de São Paulo, tinha a saúde frágil, mas, apesar de fracote, gostava de ver o personagem criado por Edgar Rice Burroughs nadar nas telas do cinema que pertencia a seu pai, em Andradina.

"Eu era amigo do rapaz que operava o projetor do cinema e, à tarde, ele sempre repetia as imagens, só para mim, do Tarzan nadando coma cabeça fora d'água. Ele era o herói, tinha de aparecer sempre. E foi isso o que eu botei na minha mente de menino: seria um nadador forte e veloz como aquele herói do cinema. E também nadaria com a cabeça para fora d'água", relembra Manoel dos Santos, hoje com 81 anos.

Maneco, que durante a quarenta ficou em Santos sem poder ir à praia, nestes últimos dias de pandemia dedicou-se às palavras cruzadas e à leitura. "Li o Código Da Vinci, li Machado de Assis, dois livros do Luiz Fernando Veríssimo e mais uma obra só de contos", conta, já do apartamento onde mora na capital paulista. "Procuro não ver muita TV. Eu já tenho mais de 80 anos e a gente fica abalado com tanta notícia ruim".

Agência O Globo

Nadar, só de vez em quando. "Só quando o verão é bem forte. Aí me animo a ir até o Clube Pinheiros, que tem a água a 32 graus, e dou uma nadadinha rápida, porque tenho um problema nos pés e logo me dá câimbra", explica o velho Tarzan. Seu antigo treinador, que está ao seu lado na foto aí em baixo, partiu do planeta Terra há um bom tempo.

Era Minoru Hirano, uma figura ímpar dentro do esporte brasileiro. Ele era uma espécie de justiceiro japonês: trabalhava no consulado de seu país em São Paulo e sua missão era verificar se os patrícios não estavam sendo submetidos a trabalho escravo nas fazendas deste Brasil continental.

Manoel dos Santos não sabe bem quando o agrônomo Minoru chegou ao nosso país. Imagina que tenha sido logo após a segunda Grande Guerra. "Sua missão era esperar no Porto de Santos o desembarque dos navios que vinham do Japão com mão de obra imigrante e acompanhar essa leva de trabalhadores agrícolas para as fazendas onde iam trabalhar em território brasileiro. Depois de um tempo ele voltava ao consulado, fazia seu relatório e pegava outra turma de imigrantes nipônicos".

Em uma dessas missões, Minoru acompanhou como intérprete a delegação japonesa de natação que se exibiu em nosso país: eram os "Japoneses Voadores", que tanto sucesso faziam pelas piscinas do mundo. Eles tinham um treinamento inovador. E é bom a gente não esquecer que a Olimpíada de 1940 seria em Tóquio e só não foi realizada lá devido à guerra entre China e Japão. "E o Minoru fez amizade com os integrantes da equipe, além de acompanhar treinos e exibições pelo Brasil", conta Manoel dos Santos.

Aqui um detalhe mais que importante: Minoru, como bom personagem de história em quadrinho, era um campeão de artes marciais. "Além de massagista, era quarto Dan de judô". E o destino levou o Tarzan brasileiro a se encontrar com o National Kid em praias e piscinas santistas.

"Como eu era fracote e sofria muito com infecções, mesmo imitando o Tarzan, não conseguia nadar no frio. E no interior de São Paulo não havia piscinas aquecidas. Estudei em uma escola em Rio Claro, onde a natação era levada a sério. E de lá acabei seguindo para Santos, onde o clima favorecia os meus treinos".

Arquivo pessoal

Na cidade praiana, primeiro Manoel dos Santos treinou sob a orientação de Adalberto Mariano. "Foi ele quem me colocou o apelido de Maneco. Eu não tinha onde ficar e ele me arrumou uma pensão. E quando eu tinha meus frequentes problemas com as amígdalas, ele era um paizão. Com ele eu aprendi o significado da palavra superação. Ele que me ensinou que eu não tinha adversário, que a minha disputa era comigo mesmo".

Os treinos tiveram uma evolução gradativa. "Eu tinha que diminuir o número de braçadas para atravessar a piscina. Comecei com 16. Baixei para 15, para 14 e cheguei a 11... Foi isso: eu tinha que contar as braçadas, a gente aprendia a pegar água, o máximo possível".

Os velhos companheiros, em uma entrevista há dois anos na TV Tribuna, contaram como era bonito ver o Maneco nadando. "Ele levantava da água. Deslizava depois, assim... como se fosse uma prancha", relembrou Osmar Baptista, que tinha o apelido de Homem Submarino, por conta do seu incrível fôlego.

E foi nessa equipe, na charmosa piscina de azulejos portugueses do Clube internacional de Santos que entra outra personagem importante nessa história olímpica: a nadadora Mariângela, uma espécie de Iara dessa nossa fábula esportiva. "Nossos amigos disseram que o Maneco gostava de mim", relembra Mariângela. "E essa mesma turma disse pra mim que a Mariângela queria me namorar", fala encabulado o Maneco.

Foi uma paixão das águas. Foram sete anos de namoro e caminhadas de mãos dadas pela praia. O casamento vai fazer 55 anos desde que os dois trocaram alianças no dia 13 de julho de 1965, na Igreja de Santo Antônio do Valongo.

Arquivo pessoal

Mariângela, os amigos e Minoru acompanharam bem de perto o que foi a preparação para a disputa da Olimpíada de 1960. "Não é porque era meu namorado, mas ninguém nadava tão bonito como ele".

Maneco estava disposto a brilhar como Tarzan. Ser famoso como o astro do cinema. Queria a medalha de ouro e o recorde mundial. "Eu estava decidido. Sabia que podia conseguir isso em Roma."

Era jovem. Tinha 20 anos. Treinava, observava e seguia as orientações valiosas de Minoru. "A turma brasileira que tinha voltado da Olimpíada de Melbourne em 1956, veio com um novo tipo de treinamento que era moda na época. O interval-training. Uma coisa mais puxada, mas o Minoru tinha as suas convicções. Suas certezas. Trocava correspondência com os "peixes voadores" no Japão. E meu treino era mais suave. Na fase final de preparação, dava apenas cinco tiros de 25 metros. Uma sequência de 400 metros e pronto".

Era tudo de acordo com o que Minoru determinava. Mesmo porque como super-atleta do judô, ele conhecia os limites do corpo. E como massagista profissional era um assombro. Maneco lembra que no mês de abril de 1960, o ano olímpico, dedicou boa parte de sua preparação à ginástica.

"Eu treinava duas vezes por dia na academia que o Hirano tinha ali perto da rua Pinheiro Machado. Era ginástica no tatame. Inclusive, no local funcionava também a clínica de massagem e era comum o menino Coutinho e aquela turma toda do Santos ir colocar o joelho no lugar, ajeitar a coluna, com o meu técnico. Ele era muito bom. Mas a diretoria do Santos descobriu e ficou com receio de desprestigiar o trabalho do médico do clube. Bobagem, né? Até o Pelé freqüentava as massagens".

Aliás, quem ensinou o Rei a nadar, para que pudesse entrar na faculdade de Educação Física, foi o Maneco. "Ele aprendeu logo!"

Reprodução Reprodução
Arquivo pessoal

Nessa época de preparação final para os Jogos Olímpicos de Roma, o técnico Minoru Hirano tinha um segredo: olhar os peixinhos rápidos no Aquário Municipal de Santos. Pode parecer piada, mas não é. Após os treinos, muitas vezes os dois iam olhar através dos vidros como é que aquela turminha de peixes minúsculos fazia para se deslocar tão rapidamente na água.

"Ficávamos ali observando e o Minoru me chamava a atenção e mostrava que os peixes rápidos não tinham batida sequencial de cauda. Eles batiam e paravam. Batiam e paravam. E com isso ele me dizia que a batida de perna não podia ser sequencial, porque me cansaria muito. O nadador tem que bater e parar. A batida coordenada com o braço. E a gente se divertia estudando esses peixinhos rápidos".

Pronto! O Tarzan, sob o comando de National Kid, estava preparado para a grande conquista. Em suas últimas competições, tinha feito o tempo de 55s6 - o terceiro melhor do mundo na época. "Eu só não tinha uma experiência muito grande em provas internacionais e também não era lá muito bom nas viradas, pois quase não havia piscinas de 50 metros no país, mas quando viajei, eu estava certo de que seria o melhor do mundo".

O que não significava que dentro do Brasil recebesse apoio ou tivesse facilidades. "Quando chegou o dia da viagem, passei na Federação Paulista de Futebol e o Paulo Machado de Carvalho falou: 'espera um pouco'. E me deu 50 dólares, que era uma grana boa na época".

O uniforme olímpico do Maneco também não era confortável como logo veremos. Mas o pior de tudo é que na primeira parte da viagem ele foi sem o treinador a seu lado. "E paramos para competir em Lisboa, na primeira edição dos Jogos Luso-Brasileiros, que era uma competição militar e eu era Manuel... em Portugal. Tive de nadar, em uma piscina que estava com a água a 13 graus. Adivinha o que aconteceu? Ganhei a prova que não tinha importância nenhuma e ganhei também uma Infecção na garganta, em uma competição que não me acrescentava nada. Cheguei em Roma enfraquecido".

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Quando o técnico Minoru Hirano chegou a Itália, 15 dias depois, e viu o seu atleta não quis acreditar. "Ele chegou na chefia da delegação e disse que iríamos embora, que não tínhamos mais nada para fazer lá. Que tinham estragado todo o planejamento de quase um ano. Mas não teve jeito. Estava lá e tive que competir. Comecei a me tratar à base de antibióticos".

Maneco era um velocista incrível. Um foguete dentro da água. Foi melhorando durante as provas classificatórias. "Na primeira eliminatória fiz 56s3, nadando na raia 4. Na semifinal, na mesma raia, repeti o tempo. E aí veio a final no sábado".

"O Brasil foi perdendo tudo durante os Jogos Olímpicos. Só o basquete masculino chegou ao bronze e aí, gente dentro da delegação, veio falar: 'olha aí Maneco, confiamos em você'. E você tem noção do peso disso nas costas de um menino?"

Quem tiver a oportunidade de procurar as imagens vai ver que o que Maneco vai contar aqui é a pura verdade. "Eu sai forte, 40 metros sem respirar. Quando dei a primeira respirada, estava quase meio corpo na frente do americano, que largou a meu lado, e do australiano. Aí eu pensei: será que eu queimei? Porque hoje a largada é eletrônica, mas naquele tempo quando alguém queimava, eles soltavam uma corda no meio da piscina e a gente se enroscava. Mas não, eu não tinha queimado, estava à frente, me desconcentrei".

E aí aconteceu o que não era para ter ocorrido: "Eu treinava em piscina de 25 metros. Precisava ter treinado em piscina de 50. Eu estava tão veloz que não percebi e bati o antebraço na borda. Quando fiz a virada, os outros já saíram um corpo na frente." Erro fatal!

Completou a prova com o tempo de 55s4, mas atrás do australiano John Devitt e do americano Lance Larson. "Não podia acontecer o erro. Foi uma errada espetacular. Perdi por um corpo, por apenas dois décimos de segundo. Errei a virada e entrei para a história".

Reprodução

Eu pergunto para o Maneco se ele ainda vê o filme da prova? E se ele venceria se a piscina fosse de 100 metros? "Ganharia sim. Mas não vejo mais. Prá que?"

"Você sabe que o blusão que eu uso no pódio foi jogado para mim por um jogador da nossa equipe de basquete? Porque o que me deram era curto e apertado. O blusão era ridículo, ficava na metade do peito. Era assim naqueles tempos. Mas a medalha é minha".

Medalha de bronze que ele guarda com orgulho em uma de suas duas academias de natação no bairro do Morumbi, em São Paulo. Nas paredes das academias, fotos de outro grande feito de sua carreira: ele tinha prometido a seu pai uma medalha olímpica e o recorde mundial dos 100 metros livres e cumpriu. Foi no dia 21 de setembro de 1961. Ele nadou sozinho na piscina de água salgada do Clube de Regatas Guanabara, diante de 3 mil espectadores, e estabeleceu o recorde que durou três anos: 53s6.

Maneco lembra que a piscina estava com a água suja e não dava para ver o fundo dela. São coisas do esporte nacional, mas ainda assim ele atingiu a glória e foi eleito e terceiro maior esportista daquele ano. "Meu pai estava lá me vendo bater o recorde e eu não sabia. O recorde era para ele, que me fez um nadador". Um ano depois, aos 22 anos, Maneco abandonou o esporte ao sagrar-se campeão sul-americano em Buenos Aires, justo no dia de seu aniversário.

Esta semana, aos 81 anos, o nosso Tarzan deve voltar a fazer o trabalho de contabilidade pela manhã em sua academia. Para distrair um pouco a cabeça nesses dias de pandemia. Depois, mergulha na leitura e nas palavras cruzadas ao lado de sua amada, que sorri acostumada a suas piadas. "Sabe qual é o maior problema da quarentena? Não sabe? É a quarentona".

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