De volta para arrumar a casa

Dorival Júnior quer driblar viuvez de Jesus e aposta em elenco para ressuscitar Flamengo Malvadão

Talyta Vespa Do UOL, no Rio de Janeiro Flickr/Flamengo

Dorival Júnior foi anunciado como o novo técnico do Flamengo há menos de duas semanas -cargo que, mais do que nunca, já vem com um peso quase kármico de brinde: a responsabilidade de fazer um grande time voltar a jogar como -pasme!— um grande time.

O elenco do Fla tem talentos que a maioria dos clubes gostaria de ter; que, individualmente, já fazem os adversários tremerem. Desde a metade da era Renato Gaúcho, entretanto, esse time que ganhou quase tudo em 2019 e foi apelidado "Malvadão" parece não ter mais liga. É com a missão de driblar a viuvez do português Jorge Jesus que Dorival Júnior chega ao Rio de Janeiro.

Hospedado por tempo indeterminado em um hotel na Barra da Tijuca, o técnico recebeu o UOL com exclusividade para esta entrevista. Nela, falou sobre os bastidores da decisão de deixar o Ceará, time cuja ótima campanha foi encabeçada por ele, e como foi a recepção ao ser anunciado, pela terceira vez, pelo Flamengo.

Sua última passagem pelo rubro-negro aconteceu em 2018, e acabou de forma brusca devido à troca de gestão. A música "Dorival", da banda Academia da Berlinda", canta os seguintes versos: "Chorei / Pensando que nunca mais / Fosse te ver novamente", e foi exatamente desse jeito ele se sentiu quando foi demitido em sua segunda passagem pelo Fla. "Por não ter sido uma demissão por mau desempenho, fiquei com isso na cabeça. Com vontade de terminar o trabalho, como se ainda não fosse o fim, sabe?".

"Nunca saí de clube nenhum e não acho correto esse tipo de atitude. Fiz dessa vez porque era algo que estava dentro de mim há muito tempo. Algo me dizia para vir. Pela primeira vez, contrariei tudo o que sempre acreditei para seguir meu coração. Desde quando fui demitido, em 2018, não tirei da cabeça que ainda voltaria para o Flamengo. Cá estou."

Flickr/Flamengo

Intimidade com o elenco

Dorival já trabalhou com cerca de 80% do atual elenco do Flamengo durante sua trajetória como técnico. É na intimidade com os atletas que ele vê força para, quem sabe, tirar o time da inércia e aproveitar os talentos que o grupo tem. "É diferente de chegar em um clube onde a gente não conhece ninguém. Conheço quase todo mundo ali, e sou próximo deles. Já senti o que estão sentindo agora. Sei que a vida de atleta não é fácil, e é importante participar até da vida pessoal desses caras. As coisas não se descolam".

O contrato de Dorival com o Fla é de seis meses, com possibilidade de se estender caso o trabalho traga resultados. O técnico afirma que não se sente pressionado com o prazo, apesar de concordar que é pouco tempo para criar um trabalho do zero.

"Tenho um time com muita qualidade técnica, que está passando por um momento instável e conturbado. Mas isso não significa que os jogadores desaprenderam. Confio que posso ajudar a recuperar esse processo, acho que posso ser útil. Peguei um time em andamento com um trabalho que já foi iniciado, então vou tentar aproveitá-lo da melhor forma, mas melhorando as condições para fazer aquilo que eu planejo".

"Conheço o time, sei quais são as lideranças; os pontos positivos e os negativos. Aceitei a proposta porque acho que posso finalizar bem esse trabalho, diferentemente do que aconteceu em 2012 e em 2018."

É a terceira passagem de Dorival pelo Flamengo. Em ambas as anteriores, a demissão do técnico não se deu por a resultados. A primeira, em março de 2013, aconteceu porque o clube precisou enxugar gastos e não conseguiu manter o salário do treinador à época. A segunda, em 2018, foi resultante da troca de gestão.

Ao pisar no Ninho do Urubu ao ser apresentado neste mês de junho, não foram só os jogadores os rostos conhecidos que Dorival encontrou. Funcionários do centro de treinamento o receberam carinhosamente, e o lembraram de um episódio que ele mesmo havia esquecido.

"No meu último jogo em 2018, levamos todos os funcionários que trabalhavam no CT para o Maracanã. Eles entraram no vestiário, receberam os jogadores, agradeceram a todos e se retiraram. Aquilo foi muito bonito, e assim que cheguei no Ninho fui recebido com essa história, da qual eu realmente não me lembrava. Me senti em casa. Sabia que algo me trazia de volta".

Miguel Schincariol/Getty Images

À sombra de Jesus

Jorge Jesus protagonizou as vitórias do Flamengo em 2019 e, desde que o português deixou o time, o nome dele volta a ser cogitado periodicamente. As agendas de Fla e Jesus não têm batido -quando o técnico foi demitido pelo Benfica, o rubro-negro tinha acabado de contratar Paulo Sousa. Quando Sousa foi demitido, Jesus já estava empregado.

Entre um português e outro, três técnicos comandaram o clube, mas a viuvez de Jorge Jesus parece assombrar o time -e os novos treinadores que chegam- até hoje. Dorival diz, entretanto, não se sentir pressionado com a nostalgia da torcida em relação ao português.

"É natural [o fantasma de Jesus]. O time foi mais que vencedor, ganhou várias competições e criou uma condição diferenciada dentro do futebol brasileiro. Com isso, eleva o nível. As cobranças são normais, uma vez que o time já fez muito. É, sim, uma obrigação um pouco maior. Um clube vive de conquistas, é preciso ter essa consciência. Ao entrar em um clube vencedor, é necessário ter consciência de que vou encontrar um caminho de exigências e perspectivas de anos. E eu concordo com isso. Só que concordo, também, que as conquistas de 2019 foram fruto de um trabalho a longo prazo, implantado e corrigido durante as temporadas. Tudo é um processo, é necessário respeitar esse processo".

Fotos: Gilvan de Souza/Flamengo Fotos: Gilvan de Souza/Flamengo

No futebol, não se queima etapas

Dorival acredita, ainda, que é possível criar outros caminhos sem desmerecer aqueles que foram trilhados com sucesso -como é o caso da trajetória de Jorge Jesus no Flamengo. "Esse é um elenco em que a gente precisa gerar vida a todo momento. É uma troca natural e constante, sempre respeitando processos".

Dorival cita Jürgen Klopp quando profetiza que, no futebol, não se queima etapas. Para ele, o sucesso de trabalho em um elenco demora, e não é com o imediatismo típico do futebol brasileiro que as coisas vão funcionar. "Klopp chegou ao Liverpool e, nos quatro primeiros anos, não ganhou nada. Um time grande inglês, sem conquistas, manteve o treinador", afirma. Em entrevista concedida ao UOL assim que foi demitido do Athlético-PR, em 2020, criticou a cultura daqui:

"No futebol brasileiro, você trabalha e, já na semana seguinte, tem que gerar resultados. Ninguém consegue. É uma impaciência muito grande, busca-se resultado pelo resultado, não se pensa em trabalho, em desenvolvimento; não se pensa no que o cara está fazendo dentro do clube", diz.

Marcello Zambrana/AGIF

Dorival, vai não

Sob o comando de Dorival, o Ceará apresentava resultados positivos nas competições das quais participava: chegou a ter 100% de aproveitamento na Sul-Americana. O técnico deixou o time com 68,51% de aproveitamento -com 11 vitórias em 18 jogos, quatro empates e três derrotas.

A decisão de deixar o clube aconteceu em Belo Horizonte, depois de o time vencer o América-MG por 2 a 0 -vitória que completou nove jogos de invencibilidade. O convite, ele conta, veio depois de rumores divulgados pelas redes sociais de que seu nome estaria sendo cotado para assumir o lugar de Paulo Sousa.

"Começaram os boatos, e não levei a sério. Mas, depois do jogo com o América, a proposta foi oficializada. Posicionei a diretoria do Ceará no mesmo momento e coloquei minha vontade. A verdade é que eu nunca tirei o Flamengo da cabeça. Só que nunca saí de clube nenhum, nem acho correto esse tipo de atitude. Mas pensei que, se não voltasse agora, não teria outra oportunidade de voltar."

O treinador conta que o presidente do Ceará foi compreensivo em relação à sua decisão, e que é fake o vídeo que circula na internet em que Robinson de Castro deseja má sorte a Dorival. "Sempre tivemos uma ligação muito clara e honesta. Tenho um carinho especial pelo torcedor do Ceará. Foram 70 dias de muita alegria".

"Foi uma decisão difícil de ser tomada, e eu nunca tinha agido assim. Mas eu aguardava essa oportunidade há anos, não podia recusar."

Vida solitária

Em 2020, Dorival Júnior conversou com o UOL Esporte e contou que seu momento preferido do dia era o café da tarde com a família. Disse, na ocasião, que não abria mão da reunião. Faz três meses, no entanto, que o técnico está longe da esposa e dos filhos, em uma carreira que julga "muito solitária".

"Não vou para casa desde que me mudei para Fortaleza. Lá, aluguei um apartamento, mas se passei dez dias nele foi muito. A rotina é pesada, mas ainda tenho vontade de fazer dar certo. É muito prazeroso, apesar de muito solitário. A vida de técnico não é solitária só pela distância da família, mas também por nós mesmos: nossas decisões são solitárias -a gente ouve muita gente, mas a decisão é só nossa. Quando dá certo, dividem-se os louros. Quando dá errado, o técnico é culpado. Mas é uma carreira muito bonita e vale a pena apesar de tudo isso."

Curado do câncer -exames de rotina estão em dia e os resultados são positivos-, Dorival relembra o susto ao ter de fazer uma cirurgia para retirar um tumor da próstata em 2020.

"É um momento que causa um choque. Muda a concepção, a maneira como encaro a vida. É interessante. Mudei muito pessoalmente. Passei 13 anos saindo de um clube e fechando com outro no dia seguinte, sem descansar. A vida me fez parar um pouco para cuidar de mim. Que bom que deu tempo".

Joao Vitor Rezende Borba/AGIF Joao Vitor Rezende Borba/AGIF

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