'Pai, quanto é 15 minutos?'

Com deficiência que as impede de fazer contas e medir o tempo, gêmeas somam medalhas na natação

Adriano Wilkson Do UOL, em Maringá (PR) Carine Wallauer/UOL
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Elas acordam às 6h30 da manhã e uma hora depois estão fazendo musculação. Elas treinam em aparelhos pneumáticos, do modelo mais moderno, do mesmo tipo que astros do futebol e celebridades têm em casa. Elas têm os melhores personal trainers e se consultam com o melhor nutricionista da cidade. No inverno, elas nadam em águas aquecidas até o meio da tarde e voltam pro sobrado com três quartos, uma piscina e dois carros na garagem, onde veem filmes e a novela das 9 até cair no sono.

Elas têm pais que sempre deram tudo pra elas, e o que os pais não dão elas ganham das marcas que as patrocinam: roupas, celulares, suplementos e equipamentos de natação. Elas são extrovertidas, engraçadas e gostam de puxar assunto com estranhos. Elas não precisam de muita coisa pra se divertir e ficariam horas brincando numa máquina de pinball no shopping ou tentando pegar ursinhos de pelúcia. Se você passar dois dias ao lado delas não verá tristeza nem um minuto sequer.

Quando não estão treinando, estão fazendo vídeos pro Instagram e pro TikTok, dancinhas e dublagens, desafios e enquetes. Elas têm 10.800 seguidores. Elas ganham 30 mil por mês, entre bolsas do governo federal, estadual e municipal. Elas sofreram bullying na escola, e hoje os que faziam bullying dizem que elas são o orgulho da cidade. A família delas acumulou muito dinheiro nos últimos anos — e também muita angústia.

A mulher mais rápida do Brasil no nado peito faz 100 metros em 1m7s. Elas fazem em 1m16s. Elas viajam o mundo a trabalho: Austrália, México, Itália, Inglaterra... Estiveram em Tóquio ano passado e devem estar em Paris em 2024. Elas são loiras, jovens e têm o corpo que a maioria das mulheres da idade delas gostaria de ter. Pra ser sincero, elas têm a vida que a maioria das pessoas de 24 anos, como elas, gostaria de ter.

Mas as nadadoras gêmeas Débora e Beatriz Carneiro não têm algo que a maioria das pessoas têm: um cérebro totalmente funcional. Beatriz e Débora não conseguem fazer contas, a não ser com números muito redondos, tipo 10 + 10 (elas precisam de alguns segundos pra ter certeza). Elas não sabem ver a hora em relógio analógico, não conseguem conferir o troco, nem fazer um pix no celular. Elas terminaram o ensino médio, mas têm dificuldade pra entender ou escrever textos longos e silenciam em conversas sobre temas complexos, mesmo quando são sobre elas.

O quociente de inteligência de uma pessoa convencional fica entre 90 e 110. O QI de Débora é 49; o de Bia, 48. Para as gêmeas, entender a passagem do tempo é tão difícil quanto a física quântica é pra nós. Um dia o treinador queria encontrá-las no lobby do hotel em que a equipe se hospedava em São Paulo e disse a Débora: "Me encontra lá embaixo em 15 minutos." Débora travou. Pegou o telefone, ligou a quem sempre recorre nessas situações e perguntou:

"Pai, quanto é 15 minutos?"

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Volta no tempo

Tóquio, setembro de 2021

As oito mulheres se alinham na borda da piscina principal do centro Aquático de Tóquio, e a superfície da água reflete o flash dos fotógrafos. Elas sobem na plataforma e curvam o corpo como se fizessem uma estranha reverência, os braços em direção aos pés, as pernas levemente flexionadas, a cabeça apontada ao solo. É a final dos 100 m nado peito, classe S14 para atletas com deficiência intelectual.

Débora está na raia 2; Beatriz, na 3. Na raia 4 está Michelle Morales, a espanhola campeã paralímpica em Londres e no Rio. Nas outras, uma japonesa, duas australianas, uma sueca e uma britânica. As brasileiras, vestidas da mesma forma, traje preto e touca amarela, parecem idênticas. Quando elas ouvem o sinal de partida se atiram na água como flechas. Nessa final paralímpica, o grande momento da carreira delas, as gêmeas têm apenas uma coisa na cabeça: o número 9.

A natação de alto rendimento é um esporte matemático. Os nadadores de alto nível sabem quanto tempo levam pra reagir após o tiro inicial, quanto tempo ficam debaixo d'água até a primeira braçada e quanto tempo gastam em cada trecho da prova. Precisam saber o número de ondulações que fazem depois de cada virada e quantas pernadas dão antes da próxima respiração. Os nadadores de alto nível contam o número de braçadas dadas em cada treino, dependendo da intensidade e do tipo de prova. E memorizam esses números assim como uma pessoa comum memoriza seu telefone, seu CPF ou o CEP de sua rua.

Mas para as gêmeas com deficiência intelectual isso seria impossível. Por isso, seu técnico André Yamazaki estabeleceu uma regra diferente pra elas. Pra evitar faltar fôlego no final da prova, as gêmeas devem dar no máximo nove braçadas nos primeiros 25 metros. Nove é um número que elas conseguem contar. Por isso, quando tocam a água do Centro Aquático de Tóquio, Beatriz e Débora sabem que podem dar no máximo nove braçadas até a metade da piscina. Elas saltam, submergem, ondulam sob a superfície e alcançam o ar novamente. E começam a contar.

Beatriz e Débora nasceram em 1998, depois de uma gestação de 35 semanas e antes de seus cérebros estarem totalmente formados. Os pais, o dentista Eraldo e a advogada Vada, não notaram nada estranho nos primeiros anos. Quando as gêmeas fizeram quatro, as professoras começaram a ver sinais de atraso na aprendizagem e alertaram a família. Enquanto os colegas já conseguiam associar quantidades a números, Bia e Débora ficavam pra trás. Cresceram com a sombra de serem as mais atrasadas da turma. Passavam de ano mesmo sem ter nota pra isso.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Uma psicopedagoga foi contratada pra ir todo dia à casa delas ensinar os números por meio de brincadeiras, mas não deu certo. A alfabetização também foi prejudicada. As outras crianças evitavam fazer trabalhos em grupo com elas porque sabiam que elas não conseguiriam contribuir. As irmãs passaram a odiar a escola. "A gente ia só pra dormir", lembra Débora. "A gente copiava tudo o que o professor escrevia no quadro, mas nada fazia sentido", diz Beatriz.

Na adolescência tudo piorou: as gêmeas ganharam apelidos e se isolaram ainda mais. Não aceitaram o diagnóstico de deficiência intelectual e tinham vergonha de ouvir ou falar essas palavras. "Eu ficava sozinha no meu quarto perguntando pra Deus por que isso tinha acontecido comigo", diz Débora. Para melhorar o ânimo das filhas, Eraldo organizou uma grande festa de debutantes e convidou todos os colegas da escola, vizinhos e parentes. As gêmeas viveram um dos dias mais felizes da vida.

A frustração veio no decorrer daquele ano. "Nós convidamos todo mundo pra nossa festa, mas nunca fomos convidadas pra festa de ninguém", diz Débora. O atraso intelectual aprofundou o isolamento afetivo, e elas se acostumaram a viver sem amigos próximos. Em Maringá (PR), onde a família vive, as gêmeas não conheciam outras pessoas com a mesma deficiência que elas.

Era nas piscinas que Débora e Beatriz se sentiam mais confortáveis. Elas já nadavam desde muito pequenas, mas aos 12 seus resultados começaram a chamar a atenção. Fuçando na internet, o pai descobriu o esporte paralímpico e notou que os tempos que elas faziam eram semelhantes aos das melhores nadadoras do país. Aos 13, as "gêmeas-problema" da escola passaram a ser as melhores atletas do clube. Pela primeira vez na vida, Beatriz e Débora se sentiram admiradas. Pela primeira vez, elas eram as melhores em alguma coisa.

Agora, em Tóquio, elas estão entre as oito mulheres mais rápidas do mundo no nado peito, entre aquelas que têm o QI abaixo de 75, o limite da categoria. Cem metros as separam de um pódio ou da frustração. Beatriz larga melhor, chega à metade da piscina em nove braçadas, na terceira posição. Sua irmã e duas australianas vêm no encalço. Elas fazem a virada e seguem no mesmo ritmo. À frente delas, a espanhola e a britânica deslizam na água com facilidade e colocam vários corpos entre todas as rivais. A briga se acirra pelo bronze. Nos últimos metros, Débora faz um esforço final, tentando chegar à frente de Beatriz, mas a piscina acaba antes.

Beatriz toca a parede e marca o tempo de 1m17s61, medalha de bronze. Sua irmã, vem logo atrás, com 1m17s63. Beatriz nada até a raia ao lado e abraça Michelle Moralles, a medalhista de ouro, conhecida como "Lokita", que acaba de bater o recorde mundial da prova. Elas se conheceram no Rio em 2016 e costumam se encontrar em competições. Débora se junta às duas, num abraço triplo que dura longos segundos.

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Volta ainda mais no tempo

Maringá, maio de 2009

Na piscina que o pai construiu ao lado da garagem é onde você vai encontrar as gêmeas na maior parte do tempo. Enquanto a escola permanece um ambiente hostil, é na água que elas passam as tardes e as noites e quase todos os fins de semana. Quando as amigas perguntam a Vada, a mãe delas, como estão as crianças, a advogada costuma responder: "As peixinhas? Devem estar nadando."

E, de fato, elas estavam. Aquela noite elas nunca vão esquecer. Elas tinham 11 anos. A mãe chamou as duas pra borda da piscina. As três deitaram com as costas no concreto e as pernas mergulhadas na água. Era uma noite de céu limpo, e as estrelas brilhavam. Vada apontou pro alto e disse a frase que Débora recordaria pra sempre: "Um dia eu vou ser uma dessas estrelas."

Vada morreu dias depois, câncer de pulmão. Débora lembraria da mãe, que nunca reclamou das dores do tratamento, quando ela mesma sofreu uma apendicite que lhe tirou as chances de disputar as Paralimpíadas do Rio, em 2016: "Acho que suporto dor igual ela suportava", diz. Beatriz acredita que herdou da mãe, além dos traços físicos, a disciplina e o foco. Vada, que não parou de trabalhar até horas antes de dar à luz, era conhecida por nunca desistir de seus objetivos. Ela morreu antes das gêmeas receberem o diagnóstico de deficiência intelectual. As "peixinhas" de Vada acabaram tatuando nos braços a personagem Dory, de "Procurando Nemo", um peixe que tem problemas de memória, assim como elas.

Com a morte da mãe, coube ao pai Eraldo e depois à segunda mulher dele, Mônica, cuidar das gêmeas, que são interditadas judicialmente. Como ganharam medalhas em Tóquio (Beatriz nos 100 metros nado peito, Débora no revezamento 4x100), as gêmeas receberão juntas em 2022 R$ 312 mil do programa Bolsa Pódio, do governo federal. Também ganham bolsas do Estado do Paraná (R$ 18 mil pra cada) e do município de Maringá (R$ 7 mil cada). É o pai quem movimenta a conta e administra a vida financeira das irmãs.

Mais difícil é administrar os sentimentos. Débora namorou recentemente um atleta paralímpico, mas a relação terminou depois que Eraldo considerou que o rapaz o desrespeitava. Um relacionamento de Beatriz também foi interrompido porque o pai desaprovou. Em uma visita recente ao shopping, as irmãs se encantaram com uma exposição de vestidos de noiva ao lado da praça da alimentação e se imaginaram entrando na igreja ao lado do pai.

As duas confiam muito na opinião de Eraldo sobre as pessoas com quem se relacionam, e Eraldo confia pouco nos homens que eventualmente se aproximam delas. "Fico muito preocupado porque é muito fácil ludibriar minhas filhas", afirma o dentista. "Elas não têm malícia, são ingênuas."

A família se aflige com questões sobre o futuro. O que será de Beatriz e Débora quando Eraldo não estiver aqui pra cuidar delas? E, se até lá não tiverem desenvolvido a autonomia necessária pra morar sozinhas, como resolverão seus próprios problemas? O pai não tem resposta pra essas perguntas, mas se permite ter uma esperança.

"Eu sei que em algum lugar desse mundo existem dois homens que são perfeitos pras minhas filhas, que vão fazer delas mulheres felizes, amar elas do jeito que elas são e cuidar delas", ele afirma. "Nós só precisamos encontrar."

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Avança no tempo

Maringá, maio de 2022

Em uma segunda-feira de maio, as únicas piscinas disponíveis em Maringá não tinham águas aquecidas, e o treinador André Yamazaki temia que suas atletas adoecessem se nadassem no frio. Enquanto ele buscava uma alternativa, Beatriz e Débora treinavam musculação.

Como elas não dirigem nem usam transporte público, seu pai e sua madrasta as levam pra todos os lugares. Eles preparam a comida e agendam as consultas com fisioterapeutas e nutricionistas. Eles resolvem todos os problemas práticos da vida delas, assinam contratos e preenchem documentos. Quando as gêmeas tomam a iniciativa de fazer algumas dessas tarefas, pode haver dificuldades.

"O que é estatura?", pergunta Beatriz ao preencher uma ficha na academia. Às vezes, se você perguntar algo mais complexo, algo que exija delas a articulação de conceitos e memórias mais distantes, elas vão silenciar e pensar muito na resposta antes de dizer qualquer coisa. Às vezes, durante esse silêncio reflexivo, o pai ou a madrasta vão se adiantar e tentar responder por elas. Eles dizem não fazer por mal, mas pra protegê-las de constrangimentos.

As gêmeas podem não saber fazer algumas coisas que qualquer pessoa sabe, mas sabem fazer muito bem algo que poucos sabem: nadar peito.

Quando o ser humano aprendeu a nadar, ele provavelmente nadou no estilo peito. Desenhos encontrados em uma caverna no deserto da Líbia e datados de cerca de 10 mil anos sugerem figuras humanas nadando com o peito acima da superfície e com propulsão nas pernas. No século 16, o poeta e professor alemão Nicolas Wynman escreveu o primeiro registro histórico sobre técnicas de natação, aconselhando seus leitores a aprender a nadar para não morrerem afogados. A técnica ensinada lembra o que hoje conhecemos como nado peito.

No nado peito, o nadador deixa o corpo paralelo à superfície e depois empurra a água com as pernas abertas, como um sapo. Em seguida, ele eleva a cabeça e respira, como um boto, enquanto os braços se juntam e furam a água, como um peixe-espada. O corpo submerge antes da braçada final, que puxa a água e impulsiona o nadador novamente. Entre os quatro estilos competitivos, o nado peito é o mais antigo, o mais lento e, talvez, o mais difícil de dominar. Michael Phelps, o maior nadador da história, ganhou 23 medalhas em Olimpíadas. Nenhuma no nado peito.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

O nado peito é o estilo preferido de Débora e Beatriz, uma técnica que elas aperfeiçoam há mais de dez anos. Em cada treino, elas ouvem as instruções e repetem o movimento das pernas e dos braços, tentando chegar à sincronia ideal. O técnico já sabe que não pode dar instruções muito longas nem muito complexas porque o raciocínio delas funciona em um ritmo diferente, a memória não guarda muitas informações ao mesmo tempo.

Às vezes elas se confundem, se esquecem, se veem perdidas no meio da piscina, sem saber o que fazer. Às vezes, só Débora se confunde e, nesses casos, Beatriz está lá pra ajudar. Quando são os pensamentos de Beatriz que embaralham, ela recorre a Débora. E quando a mente das duas dá branco, elas param, nadam até a borda, se informam e começam tudo de novo.

Elas sabem que têm dificuldade de aprender as coisas, mas também sabem que uma coisa difícil é apenas uma coisa difícil — e não impossível. Débora sonha em aprender a dirigir, a cozinhar, a cuidar de uma casa e pagar as próprias contas. Beatriz sonha com tudo isso e também em tirar férias no Caribe. As duas querem um dia casar, ter filhos e cuidar deles. Elas sabem que essas são tarefas difíceis pra quem tem deficiência intelectual, mas se permitem ter esperanças. "Se a gente aprendeu a nadar, a gente pode aprender a fazer outras coisas também", afirma Débora. "É só alguém ensinar com calma, com paciência", completa Beatriz.

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Em Maringá, o técnico finalmente encontra um lugar pras gêmeas treinarem. No começo da tarde, o pai as deixa na calçada, e elas caminham em direção à piscina para mais algumas horas de treinamento. Elas abrem o portão e recebem uma brisa temperada com cheiro de cloro. Na entrada do prédio, elas se veem diante de dois caminhos possíveis: de um lado, a via pavimentada que leva à piscina, a escolha óbvia e mais longa. À esquerda o gramado bem cuidado, a opção mais curta. Pela primeira vez em dois dias elas estão sozinhas, sem os pais, sem o técnico, sem ninguém dizendo o que elas devem fazer. Sem pensar, Débora escolhe o caminho à direita. Beatriz escolhe ir pela esquerda. As gêmeas se separam, mas logo se encontram novamente.

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