Não é pra qualquer um

Passei um dia treinando com a velocista Vitoria Rosa, a mulher mais rápida do Brasil na atualidade

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Mariana Pekin/UOL

Quando o despertador tocou às 6h30, sentia dor em tudo. Da panturrilha até o antebraço. Logo abaixo da nuca, descobri um inchaço que, alguns dias depois, viriam a me dizer que se tratava de um pequeno corte. Tudo isso formava o resultado de quatro horas ao lado da velocista Vitória Rosa, a mulher mais rápida do Brasil, em um treino sob o comando do técnico da seleção brasileira de atletismo, Katsuhico Nakaya.

Ele me colocou para fazer as mesmas coisas que Vitória fazia, mas com carga menor, um número menor de séries e com distâncias percorridas menores. Mesmo com tanta coisa a menos, o que eu senti foram dores em mais músculos do que eu imaginava existir no meu corpo. Passei por aquecimento, exercícios de coordenação motora, fundamentos, musculação e cardiovascular.

Rotina de um atleta vivenciada por apenas um dia. Eu faço exercícios físicos diariamente em uma academia. Imaginei que ao menos não passaria vergonha. De fato, não passei, mas só porque Naka e Vitória foram muito legais e adaptaram o treino à minha realidade.

Mariana Pekin/UOL
Mariana Pekin/UOL A repórter Beatriz Cesarini ao lado do técnico Katsuhico Nakaya

A repórter Beatriz Cesarini ao lado do técnico Katsuhico Nakaya

Em um dia frio, cheguei encapotada ao Núcleo de Alto Rendimento (NAR), na zona sul de São Paulo, às 8h20. Encontrei com Katsuhico Nakaya, o técnico, e me apresentei:

-- Você é a repórter que quer treinar com a gente, certo?
-- Sim, eu mesma. Vou tentar não atrapalhar vocês.
-- Espera um pouquinho. A Vitória vai chegar e você vai fazer com ela.

A Vitória é a mulher mais rápida do Brasil na atualidade. Terminou os últimos quatro anos em primeiro lugar no ranking brasileiro dos 100m rasos - seu melhor tempo é 11s03 na distância. Aos 26 anos, já tem duas Olimpíadas na bagagem e se prepara para chegar em Paris-2024, para a terceira. Enquanto esperava por ela, conversei com o Naka sobre as atividades.

Contei que frequentava uma academia e ele me alertou: "É bem diferente. Lá, tem uma questão muito comercial. Aqui, os atletas têm a consciência de como cada exercício vai influenciar no próprio rendimento nas pistas".

A diferença é simples: se eu levanto os braços com peso, o objetivo é crescer os bíceps. Com os atletas, a meta é ajudar na impulsão da corrida. Pode parecer óbvio, mas essa diferença é chave. O treino é o combustível do atleta. Eles abastecem um pouco, mas não enchem até o talo. Gastam tudo na competição e voltam para repor o tanque novamente no próximo período de treinamentos.

"Antigamente, os atletas treinavam muito e iam pegando o ritmo de competição na própria disputa. Era algo mais macro. Hoje, a gente tem vários macros, com participações em várias provas e treinamentos entre elas", esclareceu.

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Quando a Vitória chegou, começamos com duas voltas na pista do NAR -cada volta tem mais ou menos 400 metros, então foi quase um quilômetro só pra começar. O suor começou a escorrer e o frio foi embora. O aquecimento, segundo o Naka, é livre. Cada atleta sabe o que tem que fazer para ficar pronto para o treinamento, então o técnico prefere que eles façam os movimentos preferidos.

"Se eu determinar, às vezes vai ter algo que um ou outro não goste de fazer. Então cada um faz o seu aquecimento e aí sai bem feito, entende?"

Após alguns alongamentos pelo gramado, Vitória disparou na corrida pela lateral do campo que ficava no meio da pista e gritou:

-- Agora é progressivo!
-- Quê?
-- Progressivo. Para correr rápido, aumentando a velocidade!

Saí correndo atrás da minha parceira e cheguei esbaforida. Repetimos esse exercício por mais quatro vezes. O coração já ficou disparado e a respiração, ofegante. Mesmo nos momentos em que comecei a correr antes, a Vitória chegou na minha frente sem precisar de muito esforço.

Cerca de quarenta minutos depois, ainda estávamos no aquecimento. O treino estava longe de terminar. Chegou o momento dos exercícios coordenativos, que simulam padrões de movimentos corretos durante os tiros: corrida com o joelho alto, depois equilibrando em um pé só e usando o braço para ajudar e o alongamento dinâmico - tive que andar com a perna esticada e alcançar minha mão direita no pé esquerdo e vice-versa.

Para terminar, repetimos algumas séries de abdominais. Quando o aquecimento terminou, eu já tinha a certeza de um dia de #treinopago. Mas, para quem é atleta, o dia só estava começando.

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Caminhamos até o Nakaya, sentado em sua cadeirinha entre os degraus da arquibancada do NAR. Ele explicou que o treino do dia seria focado na saída para a corrida e pediu, então, para colocarmos um joelho no chão da pista e iniciarmos o tiro. Eram três séries com três sprints.

Na minha primeira tentativa, senti dificuldade em sair do chão e acelerar rapidamente. Nakaya puxou minha orelha: "Abaixa a cabeça. Não tem como um carro sair direto na segunda marcha, ele trepida. Vamos de novo?".

Tentei e, mais uma vez, senti um peso gigante para começar a corrida de joelhos. É aí que você entende a força de explosão que os velocistas precisam nas pernas. Se você pensar no Paulo André Camilo no BBB, pode se lembrar daqueles saltos dele sobre a escada. É sobre isso que estamos falando: explosão nas pernas para iniciar movimentos.

Mariana Pekin/UOL Técnico Nakaya orienta a repórter Beatriz Cesarini em treinamento de partida de velocista

Técnico Nakaya orienta a repórter Beatriz Cesarini em treinamento de partida de velocista

Na segunda vez, já consegui correr olhando para a pista -e ainda ganhei um elogio do técnico.

-- Boa! Já deu para ver que você foi melhorzinha. Sentiu diferença? Quando a gente levanta e já ergue a cabeça, o corpo tende a desacelerar. Por isso é essencial correr olhando para baixo mesmo.
-- Senti diferença. Mas ainda achei estranho correr olhando para o chão.
-- É o medo de cair. Mas do chão, não passa. A gente só passa quando morre mesmo, que aí precisa ficar enterrado.

Todos caíram na risada. Eu e Vitória fizemos três séries como essa. Em algumas tentativas, ainda caí no vício de partir para a corrida e já olhar para frente, e na volta o Naka alertava: "A cabeça!"

-- Agora vamos treinar a saída de bloco?
-- Vamos, claro!

O bloco de partida é aquela ferramenta em que os atletas apoiam os pés antes da largada. Parecem dois pedais. Tem toda uma técnica para entrar nele, como se fosse um ritual. Primeiro, o atleta deve ir para trás do aparato. Em seguida, apoia um pé, depois ajoelha no chão, coloca o outro pé e verifica se está firme. Por fim, ajusta a posição das mãos, com os dedos firmes na pista. Dói, viu?

Naka ficou ao meu lado para garantir que eu estava na posição correta. Braços e mãos alinhados com os ombros. Estava pronta para o primeiro tiro.

-- Preparadas? Agora você levanta um pouco o quadril.
-- Beleza.
-- Vai!

Levantei o quadril e, após o segundo sinal do técnico saí, correndo. Dessa vez, me atentei à posição da cabeça. Tem que levantar o corpo e sair correndo olhando para o chão mesmo, sem medo. Mas, no decorrer da corrida, não resisti em levantar para ver o que vinha à frente.

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Nesse momento, comecei a sentir dor nas coxas e na virilha. Não imaginava que correr doeria assim. Além das dores musculares sentidas imediatamente, terminei essa parte do treino com joelhos e mãos vermelhos. E de coração na boca.

Depois dessa, Vitória e eu partimos para a musculação. A série do dia da atleta estava focada no fortalecimento de pernas, costas e toda a região do tronco (o core).

"Ninguém corre somente com as pernas, certo?", destacou Nakaya enquanto caminhávamos em direção à salinha de musculação em uma das cabeceiras da pista.

Vitória chegou com uma barra pesadona e duas anilhas gigantes. Eu nem parei para calcular o peso dela. Só fiquei de olho na minha barra, mais leve. O exercício era de levantamento de peso olímpico, o LPO. Quem faz crossfit conhece: agachamento e força para fazer a barra chegar lá acima da cabeça. Olhava para Vitória e pensava: "Em outra vida quero ser atleta".

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A força e o tamanho da dedicação que ela mostra a cada movimento impressionam. Ela me contou que demorou para entender a importância de ter um corpo forte.

Vitória sentia vergonha de ter braços e pernas desenhados pelos músculos ressaltados. "Quando comecei a treinar com o Naka, ele e o nutricionista falaram que eu só conseguiria ter competitividade quando ganhasse mais força e tive que ir trabalhando isso internamente. Aprendi a aceitar meu corpo".

Logo que chegou ao NAR, a atleta viu que suas colegas de treino tinha um corpo forte, com os músculos definidos. Vitória disse que nunca quis ser assim, mas precisou abrir mão de uma estética padrão para reconhecer seu corpo como uma ferramenta.

"Quando os músculos começaram a aparecer, eu não vestia shorts, só ficava com calça. Também não curtia ficar só de top e sempre estava de camiseta, porque escondia os músculos da barriga também. Já cheguei a ouvir pessoas fazendo comentários negativos sobre meu 'braço grande' e me incomodava", explicou.

Hoje, ela entende que aquilo faz parte da profissão dela e não se abala com opiniões alheias. Aprendeu a gostar de si mesma, do novo corpo.

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Seguimos para os agachamentos, todos focados na explosão. A ideia é fortalecer aquelas regiões que senti durante os treinamentos de saída do bloco. E lá vou eu de novo ficar chocada com a carga de Vitória. Concentrada, ela carregou cerca de 150 quilos nas costas -a barra até envergava.

Eram três séries e, em cada fase, ela diminuía a carga e aumentava o número de repetições.

Na minha vez, fiz o exercício com 10 quilos, e Nakaya achou que eu poderia mais. Olha aí, já estava me sentindo atleta. Só que não. O peso dobrou e, quando fui ao chão, achei que não conseguiria subir. Fiz um esforço danado para aguentar quatro repetições. Levantei graças às motivações do técnico e o apoio da Vitória, junto com um tiquinho de competitividade típica da boa ariana que sou. Não queria fazer feio. A Vitória riu:

-- Bia, você está toda vermelha, tadinha.
-- Quase morri, menina!

Para descansar as pernas, encerramos a sessão com movimentos dos braços durante a corrida, com pesos na mão e sentadas. Acabou a musculação: pernas fortalecidas para a explosão dos tiros, braços firmes que ajudam a impulsionar a corrida, pernas e core resistente não deixar o corpo ceder na exaustão.

Viu como aqui não é só maromba, como na academia? A gente trabalha cada parte do corpo com a consciência do que vai mudar e favorecer no momento das provas de corrida. O corpo fica desenhado proporcionalmente

Nakaya

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O fim estava chegando, mas ainda tinha treino para rolar. Depois de tudo isso, o treinador pediu para que eu terminasse com quatro tiros de 120 metros. Vitória terminaria com quatro de 200 metros. Foi nessa hora que vi outro atleta vomitando na pista, de exaustão. Fiquei com medo, mas a Vitória disse que era normal no cansaço extremo.

"Já aconteceu comigo. E esse vômito parece que limpa tudo, limpa a alma. Você volta nova para o treino. Pronta para a próxima".

Bom, como já estava ali, poderia terminar. Completei os 120 metros em 24s62 segundos. Vitória fez 22s62 com 80 metros a mais...

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O dia terminou quase duas da tarde; eu estava exausta, mas admirada. Vitória ainda comentou que, às vezes, vai do NAR para exercícios de fisioterapia. E disse que aquele tinha sido um treino mais tranquilo porque eles estavam em preparação para competir. Imagine o que é um dia pesado?

"Na televisão, só mostram a gente já correndo na competição. Quase ninguém sabe o quanto treinamos".

Ela tem razão. Atletas repetem esses treinos intensos diariamente. E ainda aliam com trabalhos de fisioterapia e alimentação. Muita gente não tem noção de quão desgastante é. Só sentindo na pele pude entender ao menos um pouquinho desse universo. Cada dia dessa rotina pode render milésimos de segundo durante as competições. E isso faz muita diferença.

Vitória e Naka me convidaram para ir ao NAR mais vezes. Apesar de ter curtido muito a experiência, melhor ficar só na admiração. Ser atleta não é para qualquer um.

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