Olha o dedo

Brigas, polêmicas e humor: o que há por trás do sucesso do programa Trem Bala, da TV Ceará?

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Divulgação/TV Ceará

Apertem os cintos porque vem aí muita turbulência. Parte, Trem Bala..."

É desse jeito — já convocando o público para as polêmicas — que o apresentador Alan Neto abre toda edição do "Trem Bala", programa esportivo exibido pela TV Ceará na hora do almoço. Já são dez anos no ar, e é possível que você, mesmo que não more no Nordeste, já tenha visto na internet pelo menos trechinhos de alguma discussão em que um comentarista manda o outro calar a boca ao vivo.

Se fosse um programa normal o apresentador deveria fazer o papel do bombeiro nessa hora, mas o Trem Bala não é uma atração convencional. Como um maestro, Alan Neto entra no meio da gritaria com seu bordão "olha o dedo", que visa estimular mais baixaria num tom teatral e cômico, divertindo e rompendo fronteiras para além das torcidas de Ceará e Fortaleza.

O Trem Bala começou a ser exibido pela TV O POVO em março de 2011 depois de alcançar sucesso no rádio, com seu estilo de deboche exagerado depois das derrotas dos times cearenses e empolgação igualmente exagerada nas vitórias. Em 2017 se mudou para a TV Ceará, a emissora pública do Estado, afiliada da paulista TV Cultura. Já durante a pandemia, a transmissão passou a acontecer simultaneamente no YouTube — e as coisas saíram do controle.

"Um dia chegamos na redação e alguém disse: 'nossa, o Magno Navarro imitou a gente no SporTV'. Aí outro dia: 'viram o vídeo do Casimiro sobre o programa com 200 mil visualizações?'. No outro: 'olha só, convidaram o Homem Mau para o Danilo Gentili'. E foi repercutindo, alcançando pessoas e lugares que nunca imaginamos", diz Germana Pinheiro, editora e comentarista do programa que furou a bolha do futebol nordestino para ser um dos queridinhos de quem curte TV esportiva no país.

Divulgação/TV Ceará

Homem Mau comenta grandes momentos do programa Trem Bala

Divulgação/TV Ceará

Homem Mau é a estrela

Alan Neto tem até coreografia quando quer ouvir os comentários de um dos membros do Trem Bala no ar. Se ele começar a se inclinar pra frente, fazer careta de vilão de desenho animado e contorcer as mãos, é fato: aí vem o Homem Mau.

É este o apelido de Vavá Maravilha, que é o outro apelido do jornalista Evaristo Nogueira, 68 anos. Essa mistura de personalidades resulta no maior hit do Trem Bala, que pega no pé de jogadores, treinadores e dirigentes do futebol cearense e não deixa uma discussão acabar.

O apelido veio pela minha maneira de falar, de dizer aos presidentes dos clubes: 'você está contratando muito mal, está trazendo refugo do Sul para cá, eu não aceito'. E tome porrada na mesa. Aí pegou Homem Mau, porque eu sou do contra."

O apelido foi dado pela esposa de Alan Neto, a cantora e atriz Ivanilde Rodrigues. O personagem foi criação do próprio apresentador, porque Vavá Maravilha, narrador de rádio com 50 anos de carreira, é daqueles que "atende o telefone parecendo que quer briga".

Nos últimos dias, as grandes maldades do Homem Mau são dirigidas a Tiago Nunes, técnico do Ceará. O fato de ele se descrever como "acadêmico" foi um prato cheio para o comentário ácido: "Ele disse: 'tenho formação acadêmica'. Ótimo. Aí eu pergunto: se tem formação acadêmica, o elenco do Ceará já passou no Enem?".

Ao UOL, o comentarista completou a provocação: "Faz o seguinte, baixa a bola no vernáculo e fala para os jogadores tipo Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) que o time corre".

Que eu faço um teatrinho, eu faço.

Homem Mau, sobre seu estilo no ar

Divulgação/TV Ceará

Antes da pancadaria na mesa: animador de comício e político

Enquanto o Homem Mau cria suas polêmicas no Trem Bala e o Vavá Maravilha narra jogos de futebol, a terceira personalidade tem um trabalho nada a ver com esporte: Evaristo Nogueira apresenta há 27 anos no rádio um programa chamado "Saúde do Povo", tira-dúvidas sobre assuntos médicos.

"Se você me desse o direito de escolher um, eu juro a você com toda a sinceridade, mesmo com todo o 'boom' do Homem Mau na TV, que preferia ficar com o Saúde do Povo. É uma utilidade pública extraordinária", diz.

Esse lado de preocupação social na vida do Homem Mau já teve capítulos que poucos fãs conhecem. Ele foi três vezes vereador na cidade potiguar de Mossoró, onde nasceu. Entre 1983 e 1984, foi presidente da Câmara de Vereadores — ainda ocupou a Prefeitura durante alguns dias de ausência do prefeito e do vice.

"O dono da rádio onde eu trabalhava me levou para o palanque e me tornei animador de comício. Nessa época o pessoal ia mesmo para os comícios, eram 10, 15, 20 mil pessoas. O candidato a prefeito se chamava Dix-Huit e o vice era Canindé. Aí criei um refrão: 'O que é que o povo quer?'. E a galera respondia: 'Dix-Huit e Canindé'. Depois vieram muitos outros", relembra.

"Vingt Rosado, um deputado federal por nove legislaturas, disse um dia: 'Evaristo, você é candidato a vereador'. Eu digo: 'não sou, não'. Ele: 'você fica fazendo palanque que eu lhe elejo'. E me elegi por três legislaturas."

Hoje, ele diz que não gosta mais de política.

Divulgação/TV Ceará

Trabalho vira terapia após tragédia

"Talvez você não saiba, mas você está falando com um cara que tem uma carreta cheia de cimento na cabeça."

A mudança de semblante em meio à entrevista até então dominada por sorrisos e histórias divertidas antecedeu uma informação devastadora. Evaristo perdeu o filho Karlo Schneider Nogueira, de 39 anos, no último dia 11 de março. Ele foi um dos mais de 610 mil mortos pela covid-19 no país. Karlo deixou esposa e três filhos.

"Foi rápido. Em dez dias, acabou. Ele era gerente de um hotel em Mossoró que estava fechado e retomou. Houve uma reunião, e um dos presentes estava com covid e não sabia. Pegou todo mundo e morreram três pessoas, entre elas o meu filho. Um cara de família, 39 anos, aí acontece essa tragédia. A gente vai tocando, vai tocando...".

É duro, velho. Meu filho hoje estaria vibrando com o sucesso do Homem Mau e do Trem Bala. Mas o pior momento é quando o jogo vai começar e tem um minuto de silêncio. É fogo, para não dizer outra palavra. Mas aí bola rolou e vai rolar."

O Trem Bala é hoje um refúgio para o pai que perdeu o filho: "Meus amigos médicos disseram: 'Vavá, você tem duas saídas: tu vai para o fundo da rede e acabou sua vida ou você continua tua vida profissional sabendo que a tragédia você leva o resto da vida'. Eu optei por esse aí. Ficou o Homem Mau e foi o Homem Bom. O meu trabalho serve até de terapia."

Meu filho adorava os Beatles, aprendeu isso comigo. Ele tinha a coleção com todos os discos e o significado disso era muito forte para ele. Quando a primeira filha nasceu, ele escreveu uma carta e colocou no encarte de um dos discos para que ela lesse quando fizesse 15 anos (...)

Evaristo Nogueira, sobre o filho beatlemaníaco

(...) Só que ele ficou desempregado no começo da pandemia e vendeu o que tinha para colecionadores sem se atentar da carta. A carta foi junto com um dos discos, e hoje a família inteira faz essa campanha para encontrá-la. Não temos nenhuma pista, mas é algo que ele deixou para ser encontrado."

Evaristo Nogueira, comentando sobre a 'caça ao tesouro' da família

Homenagem de cartunista a Karlo Schneider

Reprodução/@floydman Reprodução/@floydman
Divulgação/TV Ceará

Homem Mau x Renilson: a maior rivalidade do ano

Para ser "do contra", como ele mesmo diz, o Homem Mau rivaliza com todos os outros comentaristas do Trem Bala: Sergio Ponte, Germana Pinheiro e, principalmente, Renilson Sousa. São discussões barulhentas, um mandando o outro calar a boca e até levantando da cadeira para encenar uma briga mais calorosa. Uma inspiração, segundo Alan Neto, na baderna carismática que eram os programas de Flávio Cavalcanti na TV.

Chamado de "Teimosão" por causa da rivalidade com o Homem Mau, Renilson também é narrador esportivo de rádio com quase 40 anos de carreira. Ele participa do Trem Bala no rádio desde 2003 e na TV vive de idas e vindas. "O Renilson para dar certo ali entrou e saiu umas dez vezes, porque nunca encaixava", brinca Evaristo. Agora encaixou.

"Essa rivalidade com o Homem Mau surgiu naturalmente, quando eu comecei a dizer que ele é o Zé do Caixão porque enterra o Ceará e o Fortaleza. Se tem uma arbitragem que vem apitar, ele diz que já vai cometer erros, e eu falo que não concordo, que deixe o árbitro apitar. Aí dizem que eu fico teimando (risos). Posso até concordar com ele às vezes, mas nunca assino embaixo 100%, eu bato de frente", diz Renilson, que em várias das discussões com o rival teatral é flagrado rindo de canto de boca.

"É um programa de esporte e que tem sua credibilidade, mas tem pitadas de humor que atraem o torcedor, e eu me abro, fico sorrindo."

Curiosidades do Trem Bala

Reprodução/Facebook

Bastidores

Nem todas as discussões do Trem Bala são teatrais ou encenadas, dizem seus comentaristas. "Durante o programa aquilo é verdade, eu digo o que não concordo. Às vezes fora do ar voltamos ao normal, mas às vezes é sério mesmo e fica alguma coisa, não tem jeito", diz Renilson. O Homem Mau entrega o amigo: "Às vezes quem sai trombudo é o Renilson, porque eu boto o dedo na cara dele e falo 'cala a boca' e ele não gosta".

Divulgação/TV Ceará

Loira Má

Germana Pinheiro foi repórter do Trem Bala entre 2013 e 2017, quando assumiu também o cargo de editora. Quando o programa voltou depois de uma interrupção no começo da pandemia, ela foi promovida a comentarista por causa de desfalques pela covid e caiu nas graças do público como a "Loira Má", por bater de frente com o Homem Mau na ausência de Renilson. "Ali todo mundo vive um personagem", diz a jornalista.

Reprodução

No rádio

Antes de começar na TV há dez anos, o Trem Bala era um programa de rádio. Veiculado desde 2003, ganhou fama por causa dos bordões de Alan Neto, da obrigatoriedade de comentários curtos e, é claro, das brigas e críticas duras. Segue veiculado na rádio O Povo - CBN AM 1010 diariamente, às 17 horas.

Reprodução/TVC

Cadeira elétrica

O Trem Bala tinha um quadro chamado "Cadeira Elétrica", uma entrevista com um grande personagem com perguntas fortes e sem rodeios. O técnico Lisca e o goleiro Fernando Henrique estiveram lá. De um tempo para cá nenhum convidado tem aceitado mais os convites com medo da repercussão e o quadro minguou.

Acervo pessoal

Em família

O apresentador Alan Neto é irmão mais velho do comentarista Sérgio Ponte, que também faz as vezes de apresentador quando o parente se ausenta do programa. Ponte é uma espécie de ponto de equilíbrio, o mais sereno entre eles, e também representa a parte mais informativa do Trem Bala. Outro comentarista frequente é Osvaldo Azim.

Divulgação/TV Ceará

Parte, Trem Bala

O orgulho do Trem Bala é o diálogo com o torcedor comum, a fuga dos debates longos e mais focados nos aspectos técnico ou tático do jogo. Há espaço para tudo, e os brigões da TV Ceará querem ocupar o seu cada vez mais.

"A cada dia que cresce a popularidade do programa sabemos que aumenta nossa responsabilidade e vamos tentar dar o melhor de nós para aumentar nossa credibilidade", diz Renilson Sousa. Germana Pinheiro completa: "Não fazemos o programa querendo agradar. Fazemos baseados na verdade que cada um acredita ser. O objetivo principal é de informação e do envolvimento da informação com os passageiros, como chamamos nossos telespectadores."

Uma das poucas mudanças já notadas desde que o programa passou a ter repercussão nacional é o aumento do número de citações a times de fora do Ceará e a preocupação em falar também para outros públicos. O resto continua igual, inclusive o cenário modesto que já ficou tão característico e o perfil dos participantes: Alan Neto botando fogo, Renilson e Homem Mau 'tretando' e Sérgio Ponte tentando ser o equilíbrio.

"Se mudar, estraga. O programa não é melhor do que nenhum programa, mas ele é diferente, só isso. Aí está o 'tchan'", diz o Homem Mau, que sonha com um encontro ao vivo na TV com o comentarista Neto, também famoso pelas opiniões viscerais: "Ele tem um pouquinho do Homem Mau, mas se me colocar frente a frente com ele vai precisar de luvas de boxe."

E passe adiante.

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