Macumbeiro, sim

Candomblé nas Olimpíadas de Tóquio: Paulinho rompe estereótipo e expõe preconceito no futebol

Gabriela Chabatura Colaboração para o UOL, em São Paulo Daniel Leal-Olivas/AFP

Eu quero buscar o conhecimento dos meus orixás, quero saber quem me guia, quem habita em mim".

Foi desta forma que Paulinho, ainda aos 17 anos, revelou à mãe Ana Christina a vontade de descobrir sua ancestralidade e espiritualidade por meio do Candomblé, religião de origem africana já seguida por ela e também pela irmã mais velha, Ana Carolina. Hoje, aos 20 anos, o jovem jogador rompe a imagem de que só atletas cristãos se expressam em campo e expõe que há racismo dos brasileiros no futebol.

Convocado para as Olimpíadas de Tóquio, o camisa 7 agradeceu ao chamado do técnico André Jardine com uma mensagem nas redes sociais: "Nunca foi sorte, sempre foi Exú". Em campo, fez um dos gols dos 4 a 2 sobre a Alemanha e comemorou com o gesto da flecha de Oxóssi, uma das divindades do que chama de "filosofia de vida". Os gestos provocaram ataques de intolerância religiosa e preconceito na internet.

O que o UOL Esporte explica agora é como a voz do Paulinho pode ser compreendida como o grito de resistência e encorajamento daqueles que são repudiados por seguirem a sua crença de origem africana. Também explicamos as bases desta religião cultuada pelo atacante do Bayer Leverkusen-ALE e como o racismo a transforma numa prática reprimida no futebol.

Daniel Leal-Olivas/AFP

Veja o gol de Paulinho na estreia (a partir de 45s)

Quem são Exu e Odé?

No Candomblé, segundo explica Sidnei Nogueira, babalorixá e doutor em semiótica pela USP (Universidade de São Paulo), Exú é o primeiro filho místico da força criadora dos iorubás, um dos maiores grupos étnicos da África Ocidental, responsável pela comunicação e guardião dos caminhos.

"Exú nasce do encontro da terra e a água. Exú é provador, é a palavra, é o movimento, a fertilidade, a vitória... Exú é o disciplinador, ele assume o papel da força criadora, também chamada de Olodumarê, que veio antes de todos. E Exú é os olhos desta força criadora, o orientador. Ele é o nosso guardião, cuida de tudo em nome da força criadora, em nome de um 'Deus' que não nos pune", afirma Nogueira.

Como revelado pelos jogos de búzios quando foi iniciado na religião, Paulinho se descreve como "Filho de Odé, Rei de Ketu" em seu perfil no Twitter, no qual possui uma grande rede de apoio entre os seguidores. Dentro da filosofia do Candomblé, Odé — também conhecido por Oxóssi — é o orixá da caça e oriundo de Ketu, uma cidade da Iorubalândia.

"É interessante porque Odé/Oxóssi, é o orixá do ar, da caça farta. Ele é estrategista, porque, como caçador, precisa observar tudo. Quando Paulinho corre para o ataque é como a flecha lançada por Odé. Ele chuta com a força de Odé, assim como esse orixá puxa a flecha e atira para acertar o alvo. Paulinho é conduzido para fazer os gols, assim como seu pai Odé na caça", completa Sidnei Nogueira.

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

De mãe para filho

O despertar de Paulinho para o Candomblé está relacionado com a trajetória da mãe. Nascida na Ilha do Governador e criada em um conjunto habitacional no bairro do Irajá, do Rio de Janeiro, Ana Christina se envolveu com a religião africana ainda quando criança ao acompanhar a mãe para uma louvação aos orixás em uma cachoeira. Tinha sete anos e não se aquietou até mergulhar na água fria.

Aquela atitude que poderia ser interpretada como travessura de criança passou a significar para ela, anos mais tarde, o próprio batismo.

Paulinho cresceu em um lar onde a espiritualidade era cultuada também através dos banhos de ervas e defumação dos ambientes. Práticas essas indissociáveis ao estilo de vida da família - até mesmo para aqueles que não são adeptos à religião, como são os casos do pai Paulo Henrique e o irmão Romário.

"O Paulinho conviveu com tudo isso com muita naturalidade, faz parte da nossa essência. Eu acho que é por isso que causa esse estranhamento, por ele ser tão novo e falar com naturalidade. Quando ele fez uns 17 anos despertou muita curiosidade de querer ir comigo e ter o entendimento da religião. Nós costumamos dizer que o Candomblé não é uma religião, mas sim uma filosofia de vida. É sobre você se encontrar consigo mesmo, é olhar para dentro. Ele se viu atraído, se viu chamado mesmo", conta Ana Christina.

A curiosidade de Paulinho, segundo a mãe, sempre esteve relacionada à busca genuína pela espiritualidade:

Tem muita gente que procura a religião pela dor, porque está passando por dificuldade ou qualquer outra coisa. E no nosso caso, nunca foi isso. Nós sempre buscamos o nosso crescimento espiritual, e com ele [Paulinho] foi assim. Quando ele se descobriu, teve essa curiosidade, foi por amor."

Ana Christina Tavares, Candomblecista, mãe de Paulinho

Ele já estava indo para o profissional [no Vasco], já estava na seleção [de base], já tinha sido campeão sul-americano duas vezes com a seleção [sub-15 e sub-17], então não tinha dor. Não era por doença ou dificuldade financeira, foi por amor mesmo. Por querer se descobrir, querer buscar a espiritualidade dentro dele."

Sobre o interesse do filho na fé

Lucas Figueiredo/CBF

Estudo mostra preconceito no futebol

Um estudo elaborado por Claude Petrognani, doutor em Antropologia Social pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), mostra como o futebol se tornou um ambiente confortável para os atletas evangélicos e católicos externarem suas crenças.

De 100 atletas das categorias de base do Internacional ouvidos durante a elaboração da tese, 56 se declararam católicos e outros 34 evangélicos. Do restante, oito afirmaram não ter religião, um disse ser seguidor da Umbanda e um último afirmou ser adepto do espiritismo.

Em entrevista ao UOL no ano passado, o pesquisador pontuou que as pessoas do universo do futebol que são das religiões de matriz africana são os que sofrem preconceito: "Este número não corresponde à realidade sociorreligiosa brasileira e pode ser analisado dentro desta tendência sociopolítica dominante que recusa não só a respeitabilidade, mas também o próprio status de 'religião' às religiões afro-brasileiras, limitando assim sua liberdade de expressão", argumentou na época.

De acordo com uma pesquisa do Datafolha divulgada em janeiro de 2020, 50% dos brasileiros são católicos, 31% são evangélicos e 10% não possuem religião. Umbanda, Candomblé ou outras religiões afro-brasileiras representam apenas 2% desta estatística.

Manifestação religiosa é proibida pela Fifa

Entidade máxima do futebol, a Fifa proíbe qualquer tipo de manifestação que entenda ter cunho político ou religioso. Ela já chegou a reafirmar a regra à CBF (Confederação Brasileira de Futebol) devido às atitudes de atletas da seleção brasileira como em 2009, quando os jogadores fizeram uma roda no centro do gramado para rezar após o título da Copa das Confederações.

Para os campeonatos organizados pela CBF, segundo prevê o regulamento geral de competições, "as competições nacionais oficiais do futebol brasileiro exigem de todos os intervenientes colaborar de forma a prevenir comportamentos antidesportivos, bem como violência, dopagem, corrupção, manifestações político-religiosas, racismo, xenofobia ou qualquer outra forma de discriminação". O texto ainda afirma o descumprimento de tal regra é passível de punição.

Apesar de a determinação constar no documento, muitos atletas continuam exibindo mensagens religiosas dentro de campo, seja em camisas, chuteiras, orações ou entrevistas. No site do STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol), consta apenas um caso levado a julgamento, em 2014, que terminou na absolvição do atleta Walber e advertência ao América-RN. O jogador exibiu uma camiseta escrito "Deus é fiel" por baixo da roupa do time na comemoração de um gol.

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

Intolerância como resquício do colonialismo

Os ataques sofridos por Paulinho na internet podem revelar a dificuldade dos brasileiros em lidar com a sua herança colonial, que considerou "raça" um instrumento de divisão social e desumanização de africanos e seus descendentes. Sob a lógica de opressão do colonizador, africanos e indígenas foram submetidos aos violentos processos de mudança de nome e evangelização. Essa visão segue viva na sociedade brasileira e "demoniza" muito do que se relaciona com as origens africanas.

"O que essas pessoas que atacam o Paulinho estão dizendo com todas as letras é que esse Deus é privatizado, que esse Deus é só delas. Estão fazendo as mesmas coisas que os colonizadores, que eram incapazes de reconhecer organização social, cultural, política e religiosa de africanos e indígenas. Essas pessoas estão tomadas pelo extremismo religioso", analisa o doutor e babalorixá Sidnei Nogueira.

Ana Christina, mãe de Paulinho, concorda:

"Paulinho fez uma saudação a um orixá que para nós é muito importante. Mas as pessoas têm esse estranhamento porque vem de um racismo religioso. Tudo que vem de África é demonizado. Para o meu filho, é a mesma coisa quando um católico agradece à Nossa Senhora por ter alcançado uma graça ou quando um evangélico agradece com um 'Glória a Deus'. Só mudam os nomes, entende?".

A laicidade brasileira é muito frágil. Esse projeto que hoje é um projeto de religião hegemônica é um projeto político. A religião está no segundo plano e tem sido utilizada para a manutenção de poder político, do poder da burguesia. O tempo todo, tudo é feito em nome de Deus. Os jogadores homenageiam a Deus, pedem música gospel no Fantástico. Agora, um atleta que consegue dizer que é do Candomblé publicamente, como o Paulinho, é uma ação de resistência, de muita coragem. É como um grito em meio à hegemonia cristã-evangélica, uma resposta ao racismo religioso."

Sidnei Nogueira, Babalorixá e doutor em semiótica pela USP

Lucas Figueiredo/CBF

Como lidar com os ataques?

Apesar das manifestações racistas, Paulinho encara com muita seriedade este tipo de episódio nas redes sociais. Além de ter uma empresa de assessoria de imprensa para blindá-lo, o atacante se encora na família para se fortalecer e cobrar respeito de maneira calma e coerente na internet - sem rodeios ou polêmicas.

"Como lidamos com isso? Tendo educação e dando formação. Um povo informado é um povo revolucionário e nenhum governo no Brasil quer isso. Mas nos lidamos assim, se informado e estudando para responder na hora que tiver que responder com firmeza e não sucumbir. Nós chegamos até aqui", diz sua mãe, antes de completar:

"Se os nossos ancestrais conseguiram atravessar o oceano e sobreviver, passando por tudo que passaram, com tudo que nós temos, nós podemos. Enquanto eles vão com armas nas mãos, nós vamos com livros em punho, resistindo e ocupando espaços, porque é isso que nós fazemos."

O próximo desafio da seleção brasileira olímpica com Paulinho em campo será neste domingo (25), às 5h30, contra a Costa do Marfim.

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