Acendendo a discussão

Maior nome japonês da Olimpíada de Tóquio, Naomi Osaka é negra em um país que não trata negros como japoneses

Juliana Sayuri Em colaboração para o UOL, de Toyohashi (Japão) REUTERS/Dylan Martinez

Naomi Osaka é candidata a ser a tenista dominante de sua geração e exercer uma hegemonia nível Serena Williams, credenciais que a tornam a maior atleta japonesa da atualidade. Mesmo homenageada ao ser escolhida para acender a pira olímpica hoje (23), ela não tem reconhecimento que se espera em seu país. Osaka é negra num país que considera não ter cidadãos negros.

A situação tem relação com o mito de homogeneidade étnica-racial do Japão. Ele pressupõe que "ser japonês" é ter um fenótipo amarelo de olhos puxados e pele mais clara, o que exclui diversas minorias, como japoneses negros e indígenas ainu.

A atleta nascida em Osaka é filha de pai haitiano e mãe japonesa. Representa uma parcela da população designada de "hafu", uma expressão nipônica que deriva da palavra inglesa "half", isto é, metade, mestiço. É um rótulo para os filhos de casamentos mistos, entre estrangeiros e japoneses "de verdade".

Além da cor da pele, Osaka tem a identidade nipônica questionada porque emigrou para os Estados Unidos na infância.

REUTERS/Dylan Martinez

Desde sempre, as pessoas têm dificuldade para me definir. Nunca me encaixei em uma única definição."

Naomi Osaka, em postagem no Instagram

REUTERS/Hannah Mckay

Japonesa de coração e por opção

Mesmo com suas raízes questionadas, Osaka escolheu defender a bandeira japonesa no circuito mundial de tênis. Uma lei da década de 1980 não permite dupla nacionalidade: até os 22 anos, as pessoas com dois passaportes precisam escolher um país. A tenista abriu mão da cidadania norte-americana e se considera tão japonesa que comemora estrear em Olimpíadas justamente em Tóquio-2020.

"Desta vez, os Jogos serão disputados no Japão, onde nasci. Estou orgulhosa", disse ela recentemente à NHK, TV sediada em Tóquio.

Não foi uma declaração isolada. Em outra ocasião, ela já tinha manifestado sentimento semelhante. "Certamente será muito especial [representar o Japão]. Não imagino um lugar melhor para jogar minha primeira Olimpíada".

A tenista escolheu dar de ombros para o preconceito mesmo colocando sua raça e gênero à frente até da profissão que a tornou uma estrela internacional e a atleta feminina mais bem paga do mundo. "Antes de ser uma atleta, sou uma mulher negra", postou no Instagram, em inglês e em japonês.

Reuters

Tenista da escola americana

Naomi Osaka tinha 18 anos quando chegou até as quartas de final do WTA de Florianópolis. Nessa época, já mostrava a base do tênis que a levaria ao topo. Pernas ligeiras, uma pedrada no saque e potência nos golpes dos dois lados. A tenista é oriunda escola americana, o que faz todo sentido porque mudou para Nova York aos três anos. Chegou ao circuito tímida, daquelas pessoas que desviam o olhar quando encarada pelo interlocutor. Em quadra, ela não respeitava ninguém.

Na sua primeira final de Grand Slam, Osaka fez a icônica Serena Williams penar ao disparar saques a uma velocidade com que a americana não estava acostumada. Venceu por 2 sets a 0 e faturou o US Open, seu primeiro Grand Slam. Acabado o jogo, reassumiu a postura tímida no discurso da campeã. "Eu sei que todos estavam torcendo pela Serena, eu sei. Me desculpem. Obrigado por terem assistido ao jogo."

A japonesa se tornou líder do ranking ainda em 2018 e, nos anos seguintes, enfileirou outro troféu do Aberto dos EUA e dois do Aberto da Austrália. Osaka também é considerada a melhor asiática da histórica do circuito feminino. Um currículo tão expressivo rendeu enorme popularidade. Uma versão da boneca Barbie baseada nela foi lançada em 12 de julho deste ano e se esgotou em poucas horas.

Atualmente, a tenista ocupa a segunda posição do ranking da WTA mesmo sem ter disputado Roland Garros e Wimbledon. Estas competições são dois dos quatro Grand Slams, torneios que mais rendem pontos. O motivo da desistência foi ansiedade e depressão. A revelação foi surpreendente. Apesar de tímida, Osaka sempre demonstrou enorme força mental. Nas quadras, ela é capaz de atuar em nível altíssimo contra adversárias empurradas por estádios lotados.

Os problemas de saúde, porém, não a impediram de jogar em Tóquio. Ela joga hoje (23), às 23h, contra a chinesa Saisai Zheng.

Wang Lili/Xinhua Wang Lili/Xinhua

Fomentando o debate

O tênis é um esporte com torneios semanais nos quatro cantos do mundo e estar no topo confere peso e repercussão as declarações e atitudes dos atletas. A ascensão de Osaka tirou a questão racial do limbo na terra da Olimpíada. A forma como a maior atleta do país foi representada em propagandas demonstra que a raça é uma questão no Japão.

Em janeiro de 2019, Osaka foi retratada em uma campanha publicitária da Nissin como um anime, mas embranquecida a tal ponto de apagar suas origens negras. Essa prática é chamada de "whitewashing". A empresa pediu desculpas após críticas de racismo. Depois, em setembro de 2019, comediantes japoneses do duo A Masso acharam que seria engraçado dizer que ela era "muito bronzeada" e que precisaria "de alvejante", como se devesse clarear a pele.

No fim de 2020, a Nike Japão foi por outro caminho. Publicou uma campanha estrelada por Osaka na qual ela é alvo de questionamentos sobre sua etnia e responde com um simples sinal: "shh", um cala-te com o dedo levado aos lábios. Na época, também foi ao ar outra publicidade da marca esportiva, protagonizada por adolescentes que se dedicam a esportes no colégio — uma delas, negra.

O vídeo, que trata de bullying e racismo, ricocheteou na sociedade japonesa. A repercussão incluiu pedidos de boicote à Nike. Grupos que sequer cogitam a ideia de que existe racismo no Japão encabeçaram as críticas.

REUTERS/Christian Hartmann

Osaka não se omite

Pela projeção internacional que possui, a atuação de Osaka tem alcance muito além do Japão. Uma de suas ações foi apoiar o movimento Black Lives Matter durante o Aberto dos Estados Unidos de 2020. A tenista usou máscaras pretas estampadas com os nomes de sete pessoas negras vítimas de injustiça racial e violência policial. George Floyd era um deles.

Iniciativas como as dela ajudaram a impulsionar o Black Lives Matter no Japão. Manifestantes marcharam em Tóquio, Quioto, Osaka, Nagoia e Niigata. "Primeiro, nós queremos mostrar solidariedade aos manifestantes nos Estados Unidos. Segundo, queremos pavimentar o caminho para discutir o racismo aqui no Japão", definiu, à época, a estudante e ativista Sierra Todd, que organizou o protesto de Tóquio.

O movimento cresceu na cidade sede da Olimpíada e se estruturou com integrantes japoneses e estrangeiros radicados no Japão. Com a pandemia de covid-19, eles têm privilegiado atividades digitais, como uma série de painéis intitulada Real Talk.

O foco é educativo, no sentido de tentar despertar as pessoas para o que acontece no país e que também podem ser situações de racismo, afirma Jay Carter, um dos líderes do Black Lives Matter Tóquio, à reportagem do UOL. "É difícil reconhecer discriminação racial no Japão, pois as circunstâncias históricas são diferentes. O contexto de brutalidade policial, por exemplo, é diferente do dos Estados Unidos."

No dia a dia, afirma Jay, as abordagens não são necessariamente violentas. Muitas vezes, o preconceito é velado: pessoas negras são mais paradas pela polícia pegando o metrô, por exemplo, com solicitações constantes para mostrar o documento de identidade ou pedir o registro da bicicleta (como se fosse um pedido da nota fiscal), do que japoneses com o fenótipo típico.

Reprodução Reprodução

O empoderamento e exposição que Osaka conquistou ajuda a tirar o preconceito debaixo do tapete. Jay ressalta que a questão dos cidadãos birraciais no Japão começa a impor o diálogo. "Mais cedo ou mais tarde, o Japão precisa aprender que existe, sim, racismo. Que isso impacta a vida de muitas pessoas negras. Que cada vez mais a sociedade japonesa precisará lidar com a diversidade étnica e cultural, com jovens birraciais que vão compor o futuro desse país".

Este processo parece já estar em curso. Jovens personalidades japonesas negras, incluido Osaka, que tem 23 anos, têm levantado discussões étnico-raciais. No universo do esporte, além da tenista, se destacam o jogador de basquete da NBA Rui Hachimura, do Washington Wizards, que foi porta-bandeira da delegação japonesa na cerimônia de abertura.

Nas passarelas, despontaram a Miss Universo Japão 2020, Aisha Tochigi, e a Miss Universo Japão 2015, Ariana Miyamoto. Elas trilharam um caminho que tem seguidoras. A ex-atleta e modelo Raimu Kaminashi, que pretende disputar o Miss Universo Japão deste ano, vai empunhar a bandeira racial.

"Nós existimos. Nós somos japoneses e somos negros ao mesmo tempo. O Japão precisa saber que a negritude é linda, é motivo de orgulho. E que 'ser japonês' deve incluir indivíduos como eu", diz Raimu à reportagem do UOL.

LUKE HEMER / TENNIS AUSTRALIA / AFP LUKE HEMER / TENNIS AUSTRALIA / AFP

Pódio é território neutro

No país de 127 milhões de habitantes, o censo considera "japonês" quem possui nacionalidade japonesa, mas até hoje não pergunta etnia ou cor. A situação reforça a ilusão de homogeneidade da sociedade. Não é possível dizer, por exemplo, quantos dos japoneses são negros ou indígenas. Por isso, muitas vezes quem não se enquadra nos padrões simplesmente não é visto como cidadão.

Mesmo sediando as Olimpíadas num país que não considera ter habitantes negros, o COI (Comitê Olímpico Internacional) tem avanços na questão do ativismo. Hoje, permite que atletas se posicionem. Mas a defesa da causa negra, ou qualquer outra, está proibida de ser feita na coroação da glória esportiva.

No dia 2 de julho, o COI reviu a Regra 50.2 da Carta Olímpica: antes, neutralidade era a palavra de ordem, proibindo quaisquer manifestações políticas, religiosas ou raciais nas arenas e demais áreas. Agora, atletas estão autorizados a se manifestar nos centros de mídia e nas arenas, desde que antes das competições — o pódio está fora de cogitação.

Foi num pódio dos Jogos Olímpicos de 1968, na Cidade do México, que o punho fechado erguido ao alto, símbolo dos Panteras Negras e de resistência contra o racismo, conquistou atenção internacional. O gesto dos velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos ao receber as medalhas lhes custou o banimento do esporte para sempre.

"Não é irônico?", questiona Jay Carter, um dos líderes do Black Lives Matter Tóquio.

Osaka também tem todas as condições de conquistar uma medalha. Mas um eventual pódio deve ser apenas um detalhe da participação dela em Tóquio-2020. O principal legado dela nos Jogos, mesmo, será representar uma causa.

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