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'A maconha salvou minha família': mãe luta por acesso à cannabis medicinal

A consultora canábica, ativista e mãe Cris Palacios Imagem: Arquivo pessoal

De Ecoa, em São Paulo (SP)

13/02/2023 06h00

"Minhas filhas me ensinaram tudo. Sem elas não seria o que sou hoje", diz Cristiane Palacios, ativista, consultora canábica e mãe de Luisa, 14, e Valentina, 8. Foi através das duas que Cris se envolveu em várias lutas: a dos pais de crianças com deficiência e autismo, do acesso à cannabis medicinal, da legalização da maconha e também pelos direitos de crianças e adolescentes LGBTQIA+.

Ela encontrou nessas causas o apoio de outras mães e pais, desconstruiu seus preconceitos e pôde ajudar mais pessoas a obter o tratamento adequado para suas filhas.

Cris Palacios e as filhas Luisa e Valentina Imagem: Arquivo pessoal

Com esse aprendizado, deu ainda suporte a médicos no tratamento de centenas de pacientes com canabidiol e se tornou consultora de uma empresa de medicamentos à base de cannabis.

Mas sua defesa da planta vai além de qualquer laboratório: "As pessoas têm que ter acesso [à cannabis medicinal] na farmácia do SUS, via cultivo, via associações. Tem que ter todos os acessos, é por isso que eu luto".

Um tratamento natural

Esse engajamento começou em 2014, quando Valentina, sua filha mais nova, nasceu e foi diagnosticada com Síndrome de Down. Cris ficou em choque. "Passei por um luto da filha idealizada. Eu não tinha conhecimento do que era a Síndrome de Down, então já comecei a chorar achando que ela morreria cedo. Depois eu vi que tinha preconceito e uma ideia deturpada do que é [viver com Down]", diz a Ecoa.

A "ideia deturpada" começou a mudar quando ela foi acolhida, ainda no hospital, pelo Movimento Down. A iniciativa produz cartilhas entregues às famílias com orientações para combater preconceitos, buscar saúde e inclusão para pessoas com Down.

A partir daí, Cris correu atrás do acompanhamento multidisciplinar necessário para o desenvolvimento de Valentina e tudo correu bem até ela completar quatro anos. Foi quando a criança começou a regredir nas habilidades sociocomunicativas e a apresentar problemas gastrointestinais sérios. Pesquisando, a mãe descobriu que poderia se tratar de um transtorno do espectro autista.

Mas levou tempo até que um médico fechasse o diagnóstico, um obstáculo comum em casos como esse. Quando isso aconteceu, começou a busca pelo tratamento, que varia. Não existe "cura" ou mesmo um medicamento específico para o autismo. Encontrar o remédio adequado muitas vezes envolve um processo de tentativa e erro.

Desespero e Facebook

Em 2018, depois de internações sucessivas de Valentina, Cris beirava o desespero. Ao mesmo tempo, se angustiava com os efeitos colaterais trazidos por medicamentos como a risperidona. Ela começou então a buscar tratamentos alternativos para a recuperação da filha, que havia deixado de comer, dormir e interagir.

"Eu sempre procurei o tratamento mais natural possível para as minhas filhas. Tentei buscar homeopatia, vários outros tratamentos integrativos, mas não via resultado. Amenizava, mas daqui a pouco voltava tudo", diz.

Esgotada, resolveu pedir ajuda num grupo do Facebook. Foi ali que ouviu falar pela primeira vez do canabidiol: a mãe de um menino que também tinha o duplo diagnóstico de Síndrome de Down e outra condição rara respondeu que o filho tinha apresentado melhora com o uso do medicamento.

Cris não sabia o que era o canabidiol, mas ficou reticente ao descobrir que vinha da maconha. "Eu tinha muito preconceito nessa época", conta. Apesar disso, decidiu dar uma chance.

Com o óleo, Valentina teve uma boa melhora logo de início, mas ainda levou quase um ano para ajustar a dose e composição certas do medicamento. Na época, havia ainda outras barreiras: o processo de importação do óleo de cannabis era burocrático e demorado, além de custar caro.

Valentina, 8, teve melhora na saúde com o óleo de cannabis Imagem: Arquivo pessoal

Hoje, quatro anos depois de iniciar o tratamento com um óleo full spectrum (feito com o extrato integral da planta), com alto teor de CBD e baixo THC, Valentina se transformou. A menina teve ganhos na socialização, na cognição, no sono e até na imunidade.

O acesso ao medicamento no Brasil também avançou: "De lá até aqui já evoluiu muito. Hoje em dia a acessibilidade é muito maior. É muito mais rápido, mais fácil e o valor é muito menor".

Missão de vida

Ao procurar o melhor tratamento para a filha, Cris se tornou uma especialista autodidata em cannabis medicinal. "Comecei a buscar informação. Entrei em tudo quanto era curso, palestra, congresso, em todas as associações que existiam no Brasil na época, tudo que tinha a ver com cannabis", diz.

Esse conhecimento permitiu que ela ajudasse outras famílias fornecendo indicações, orientações e desmontando golpes em grupos online, onde é comum a venda de óleo de cannabis falsificado.

Por meio de seu contato com a empresa Reaja, que conheceu num desses eventos, ela conseguiu kits de reagentes colorimétricos - utilizados para testar a composição do óleo de cannabis e de outras substâncias - para doar aos pais que vinham sendo vítimas de golpes.

Com o tempo, ela também foi buscar credenciais para atuar profissionalmente nessa área e hoje é consultora pela multinacional Pangaia CBD, que atua no mercado brasileiro desde 2019. A empresa foi uma indicação do professor da Unifesp Elisaldo Carlini, pioneiro no estudo da maconha medicinal, que Palacios conheceu em um simpósio sobre o tema. O laboratório foi o primeiro a fornecer um óleo com as características que Valentina precisava. "É o que ela toma até hoje", afirma.

Vendo a transformação da filha a partir do medicamento, Cris quis espalhar a boa-nova. Desde o início, quando começou a aprender sobre a Síndrome de Down após o diagnóstico da filha, ela entrou de cabeça no ativismo como forma de ajudar outras pessoas. "Eu sempre me envolvo, tenho muito essa questão da coletividade", diz.

Cris Palacios na Marcha da Maconha, em São Paulo Imagem: Arquivo pessoal

Esse percurso deu a ela a experiência necessária para auxiliar médicos no acompanhamento terapêutico de pacientes que estavam começando a se tratar com o óleo de cannabis.

Através de entidades como a Abuc, Associação Brasileira de Usuários de Cannabis Medicinal, ela e outras mães ativistas assistiram muitos médicos no ajuste das doses e na identificação de fatores que poderiam interferir no tratamento, como a alimentação e o uso de outros medicamentos. "É o que eu mais gosto de fazer. Vejo como uma missão de vida", ela diz.

Além de atuar profissionalmente como consultora e divulgadora da cannabis medicinal, Cris passou a defender a legalização da droga.

"A maconha salvou a minha família. Eu era preconceituosa, hoje levanto a bandeira do [uso] recreativo, porque o recreativo também é medicinal. As pessoas têm que parar de comprar do tráfico, parar de alimentar a violência. Fora isso, tem toda a sujeira que vem na maconha prensada. A gente precisa lutar pela legalização"
Cris Palacios

Duas vezes 'mãe pela diversidade'

Em paralelo ao tratamento de Valentina com a cannabis medicinal, Cris acompanhou a transição de gênero da filha mais velha, Luisa.

"Também foi um processo difícil, doloroso. Mas logo já estava preparada para ir à luta pelos direitos", conta. Mais uma vez, ela foi acolhida por mães e pais que já haviam trilhado aquele caminho: primeiro no GPH (Grupo de Pais de Homossexuais), criado no fim dos anos 1990 pela professora universitária Edith Modesto, e depois no coletivo Mães pela Diversidade.

Luisa comemorou seus 13 anos com um bolo com as cores da bandeira trans Imagem: Arquivo pessoal

Hoje, Luisa já tem um RG com seu nome social e faz acompanhamento no Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, ligado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Mas, segundo a mãe, a briga para ter sua identidade respeitada na escola e em outros espaços é constante.

"A gente sofre todo dia. Ela sofre de fobia social, depressão e ansiedade e não é por conta de disforia de gênero. Com isso ela está muito bem resolvida. É por conta dos ataques da sociedade, do preconceito. A Valentina também. Em quantas escolas ela foi rejeitada, dizendo que não tinham condições de recebê-la?", desabafa.

Cris também luta para que filha trans tenha identidade respeitada Imagem: Arquivo especial

Através do Mães pela Diversidade, Cris também tem procurado ajudar pais de crianças e jovens LGBTQIA+, encaminhando-os para os grupos que a acolheram e dando informações sobre onde conseguir acesso à hormonioterapia nessa faixa etária. "Eu levo a cannabis e a questão do movimento LGBT para todos os lugares", diz.

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