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Casal de curandeiros luta para manter clínica de ayahuasca na selva peruana

O casal de curandeiros Jesús Arce Quinteros e Hernán Saavedra Gonzáles Imagem: Ramiro Solsol/UOL

Carlos Minuano

Colaboração para Ecoa, de Tarapoto, Peru

05/08/2022 06h00

"Meu avô era curandeiro e meu pai também sabia trabalhar com as plantas", disse Hernán Saavedra Gonzáles, com uma voz calma e pausada. Logo depois soprou a fumaça de um cigarro de mapacho, um tipo de tabaco medicinal, em um copo cheio de um líquido escuro de aparência muito semelhante a um chá.

Hernán e sua esposa, Jesús Arce Quinteros são um casal de curandeiros que, apesar das muitas dificuldades, luta para manter uma clínica de ayahuasca em Tarapoto, no estado de San Martín, na selva amazônica peruana.

Jesús, a mulher curandeira

A curandeira Jesús Arce Quinteros Imagem: Ramiro Solsol/UOL

Assim como Hernán, Jesús vem de uma linhagem de curandeiros, praticantes da medicina tradicional da selva peruana. Mas ela é um ponto fora da curva no circuito da ayahuasca na cidade. É uma das poucas mulheres curandeiras, ou talvez a única, em Tarapoto.

Jesús tem 38 anos, bebe ayahuasca há 20 anos, e há 15 trabalha como curandeira. Apesar do tempo em atividade, ela garante que continua se surpreendendo com o caminho. "Cada cerimônia é um aprendizado novo, vou descobrindo e aprendendo mais."

Jesús e o marido também cultivam, em uma área de dois hectares, um jardim botânico, com uma enorme variedade de plantas medicinais. Segundo o casal, muitas delas se encontram em risco de extinção por causa do desmatamento e da ação de mineradoras na selva amazônica peruana.

Em geral, os curandeiros trabalham utilizando cantos e diversas plantas. A principal delas é a ayahuasca, uma bebida psicoativa feita da mistura macerada de um cipó e folhas. Utilizada há milhares de anos por povos indígenas amazônicos, no Peru é reconhecida como patrimônio cultural do país desde 2008.

No Brasil, além de comunidades indígenas, grupos religiosos como o Santo Daime e União do Vegetal também utilizam a bebida em seus cultos. Essas práticas são protegidas por uma regulamentação de 2010 do Conad (Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas). Há mais de uma década, pesquisas investigam o potencial terapêutico da ayahuasca para transtornos mentais, como depressão, ansiedade e vícios.

O casal de curandeiros Jesús Arce Quinteros e Hernán Saavedra Gonzáles Imagem: Ramiro Solsol/UOL

Jornada de um curandeiro

Um galo imenso cantava, cachorros latiam, gatos se desentendiam correndo pelo quintal e, de longe, mas atenta, uma simpática cutia (roedor do mato, que no Peru é mais conhecida como añuje), de tempos em tempos observava a conversa, enquanto mordiscava alguma coisa que segurava com as duas patas, fazendo um som renitente.

"Desde bem jovem me interessei pela medicina tradicional e nessa época comecei a buscar por 'maestros' [professores] em muitas comunidades indígenas para aprofundar os conhecimentos que já havia começado a obter com meu avô e com meu papai", prossegue Hernán sobre o início de sua jornada como curandeiro.

O curandeiro peruano Hernán Saavedra Gonzáles Imagem: Ramiro Solsol/UOL

O curandeiro, ou médico vegetalista, como também são chamadas as pessoas que trabalham com a medicina amazônica no Peru, conta ter começado a beber ayahuasca com 20 anos. Hoje ele tem 61. "Nas primeiras três sessões não senti nada, na quarta tive uma experiência muito profunda, vi meus traumas de infância e o caminho que deveria seguir para me curar e tratar outras pessoas."

Mas, Hernán reitera que seu maior professor foi mesmo o avô. Ele curava as pessoas na pequena cidade de Tarapoto e também era chamado nas aldeias pelos arredores da região.

"Neste tempo não havia carro aqui, às vezes ele viajava vários dias a cavalo pela mata até chegar a alguma comunidade". Também não havia dinheiro, tudo era na base da troca, então geralmente o avô curandeiro regressava com alimento para a família.

O casal de curandeiros Jesús Arce Quinteros e Hernán Saavedra Gonzáles Imagem: Ramiro Solsol/UOL

"Circo de Palhacinhos"

Tarapoto é bem diferente da cidade em que Hernán viveu em sua infância. Desde a década de 1990, o município vem se transformando em um dos principais destinos de um turismo singular, conhecido como xamânico ou psicodélico. Segundo Hernán, em centros de ayahuasca e resorts, muitos sob o comando de estrangeiros, estão transformando a tradição em um negócio lucrativo.

"Se transformou num circo de palhacinhos", comenta Hernan, irritado. Os palhaços são os próprios curandeiros, explorados por empresários. Um movimento que, segundo ele, está fazendo a genuína medicina amazônica desaparecer.

Fora desse circuito, o casal resiste. Há mais de 20 anos, Hernán e Jesús mantêm o Centro Tangaranas onde trabalham com uma infinidade de plantas medicinais, como ayahuasca, ajosacha, chuchuhuasi e sanango e muitas outras. Uma antiga tradição que ambos herdaram de seus ancestrais e que defendem visivelmente com amor e respeito.

Motocarro usado por Hernan Saavedra Gonzáles e Jesús Arce Quinteros Imagem: Ramiro Solsol/UOL

Percebe-se que eles não fazem mesmo parte do crescente movimento turístico em torno da ayahuasca. A residência em que vivem é muito simples e eles nem sequer possuem um automóvel. Se deslocam entre a casa e o sítio onde trabalham em um motocarro - aliás, o principal meio de transporte na região.

"Moramos com nossos dois filhos, dois cachorros, dois gatos, várias galinhas, um coelho, seis tartarugas e um papagaio que pensa que é um galo", detalha Hernán. Ele explica em seguida que o papagaio está loucamente apaixonado por uma das galinhas.

Fraqueza nos músculos e insônia

Apesar de não terem ainda um site para divulgar o trabalho, apenas uma página nas redes sociais, recebem pessoas de todas as partes do mundo: Estados Unidos, Rússia, França, Alemanha, China, Coreia, Portugal, Austrália, Japão, entre outros. Mais de 1.000 pessoas já passaram pelo centro instalado em uma região de densa mata, às margens do rio Mayu.

Entre eles, o americano Benjamin Blackwell, que conta ter ido a Tarapoto em busca de respostas para sua vida, após ter sido diagnosticado com uma doença incurável, a fibromialgia, síndrome que causa dores por todo o corpo.

"Sentia muita fraqueza nos músculos e sofria com insônia", conta o americano. Segundo ele, os remédios que tomava causavam muitos efeitos colaterais e não resolviam o problema.

O curandeiro Hernan Saavedra Gonzáles Imagem: Ramiro Solsol/UOL

Ele passou por uma dieta de um mês com Hernán e Jesús. "Não sinto mais dores", afirma Blackwell. "E o meu nível de estresse está bem perto de zero", acrescenta. "Me sinto em paz com meu corpo, minha mente e minha alma."

Mas o trabalho no Centro Tangaranas é mantido com muito esforço e dedicação. "Precisamos de mais mãos e mentes para ajudar", desabafa Hernán. Às vezes, os pacientes nem sequer pagam pelo tratamento recebido.

O sistema de trocas que o avô de Hernán praticava continua valendo no Centro Tangaranas. Durante a visita da reportagem, dois estrangeiros estavam internados no local, mas pagavam pelo atendimento com trabalho.

Apesar de não possuir os recursos necessários, o casal de curandeiros agora sonha montar uma escola para ensinar a medicina tradicional amazônica e assim manter vivo o conhecimento.

Hernan Saavedra Gonzáles Imagem: Ramiro Solsol/UOL

Caça às bruxas

O temor de que a medicina ancestral amazônica desapareça do mapa não é um exagero do casal de curandeiros. "As novas gerações não querem mais seguir a tradição por medo", lamenta Hernán. E isso também não é sem razão.

Muitos líderes e curandeiros mais antigos são perseguidos e até assassinados. As causas são várias. Desde conflitos relacionados à exploração da terra e interesses econômicos até preconceito por parte de religiosos evangélicos que consideram o curandeirismo amazônico coisa do diabo.

Um dos momentos mais trágicos ocorreu em 2011, no distrito de Balsapuerto, província do Alto Amazonas, estado de Loreto: 14 curandeiros foram assassinados em uma emboscada.

"Os curandeiros foram brutalmente mortos com facões, machados, apedrejados, com tiros de fuzil e depois seus corpos foram jogados nos rios da região onde foram devorados por piranhas", disse o jornalista e escritor peruano Roger Rumrill, pesquisador da Amazônia, com vários livros publicados sobre o tema.

Ninguém foi condenado pelas mortes, de acordo com Pizango Inuma, presidente da Feconacha (Federação das Comunidades Indígenas Chayawites), que representa os povos chayahuita, shayabit, jebero, balsapuertino, shiwila, shawis, entre outros. Segundo ele, os curandeiros mortos eram principalmente shawis.

"Por trás da morte de curandeiros, existem várias causas, incluindo interesses econômicos, não querem curandeiros porque suas receitas vegetais substituem os remédios das farmácias", sugere Inuma. O presidente da Feconacha acredita haver um plano para erradicar curandeiros e feiticeiros

Em 2018, uma das mais antigas líderes da etnia shipibo-conibo, a curandeira e ativista Olivia Arévalo Lomas, também foi assassinada por dois homens em uma moto. Um turista canadense apontado como suspeito foi linchado por pessoas da comunidade Victoria Gracia, em Ucayali, na Amazônia peruana, onde ela vivia.

Mas, outras hipóteses também estavam sob investigação pelas autoridades locais, pois a morte da curandeira ocorreu após outros assassinatos não resolvidos de ativistas indígenas que enfrentavam ameaças por causa de seus esforços para manter madeireiros ilegais e produtores de óleo de palma fora de suas terras.

*Essa reportagem teve o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center e do Fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas da Fundação Gabo e Open Society Foundations.

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