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Catadoras de recicláveis lançam livro inspiradas em Carolina Maria de Jesus

Em todo mundo, mais de 15 milhões de pessoas trabalham com a coleta, a triagem e a reciclagem de resíduos gerados pelas cidades, segundo as Nações Unidas Imagem: OIT Brasil

Lígia Nogueira

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

13/01/2022 06h00

Gislaine de Cerqueira Ramos, 43 anos, é baiana, mas mora atualmente na cidade de Mauá, em São Paulo, onde trabalha na Cooperativa de Catadores de Papel, Papelão e Material Reciclável (Coopercata). Ela é uma das 21 mulheres profissionais da reciclagem que, inspiradas por Carolina Maria de Jesus, contaram suas histórias de vida no livro "Quarentena da resistência", publicado recentemente pela editora Coopacesso.

Semanalmente, durante sete meses, Gislaine e outras 20 mulheres de cidades do ABC Paulista participaram, de forma virtual, de atividades de formação e oficinas de criação literária promovidas pela Flup —Festa Literária das Periferias para estimular a escrita e o protagonismo de cada uma na elaboração da obra. Cada participante recebeu uma bolsa de estudos mensal no valor de R$ 385 durante quatros meses, destinada ao custeio de internet para os encontros virtuais e cestas básicas para assegurar a segurança alimentar e nutricional da aluna e de sua família.

Nas oficinas, as catadoras leram e debateram "Quarto de Despejo: Diário de uma favelada", da escritora Carolina Maria de Jesus, compartilharam experiências de vida e as moldaram em narrativas biográficas inspiradoras. "No começo fiquei tímida, com um certo receio de falar sobre coisas que eu muitas vezes quis esquecer", diz Gislaine. "Mas, à medida que as aulas aconteciam, fui me soltando, interagindo mais e, quando percebi, já estava falando muito. Acredito que o mesmo aconteceu com as outras catadoras."

Para ela, o convite para participar da escrita de um livro foi uma surpresa boa. "Eles queriam homenagear a escritora Carolina Maria de Jesus e por esse motivo colocaram as catadoras para serem homenageadas e lembradas também pela importância das nossas histórias de vida e do nosso trabalho para o mundo. Eu não conhecia a Carolina e nunca tinha ouvido falar sobre a sua obra. Quando a conheci, percebi que ela contribuiu muito para a literatura."

O processo das oficinas foi muito bom, muitas vezes nos emocionamos, rimos, aprendemos muito umas com as outras, foi um grande aprendizado.

Gislaine de Cerqueira Ramos, profissional de reciclagem

Muitas dessas histórias refletem questões relacionadas à situação de desigualdade social, violência doméstica e urbana, fome e a busca por condições de vida mais dignas a partir do que a sociedade descarta. "Falam que é um serviço sujo, mas é um trabalho como outro qualquer. Está no meu sangue e eu tenho orgulho disso", conta Nair Camilo Farias, 51 anos, profissional da Cooperativa Associação Nova Conquista, em Diadema (SP).

Gislaine de Cerqueira Ramos, 43, trabalha na Cooperativa de Catadores de Papel, Papelão e Material Reciclável (Coopercata). Imagem: Arquivo pessoal

Ela e a irmã participaram das oficinas juntas. "Eu não gostava de ler nem de escrever, era uma pessoa triste e cabisbaixa devido a muitos problemas na família e no casamento. Esse curso foi para mim como uma terapia. Se não fosse isso acho que hoje eu estaria internada em um hospital, ou talvez nem estivesse mais nesse mundo. Graças aos professores a minha vida mudou."

Eu era muito tímida, não conseguia falar, só vivia de cabeça baixa. Hoje eu falo, eu converso, eu escrevo, eu leio.

Nair Camilo Farias, profissional de reciclagem

Nair elogia a paciência dos orientadores e fala com orgulho de suas conquistas. "Eu ouvia falar em Facebook, mas não sabia nem como entrar. Instagram também, não sabia nem o que significava. Quando a gente ia escrever uma poesia, eu ficava assim: 'Escrever poesia, quem sou eu? Eu não sei nem falar, vou escrever poesia? Não vai dar certo, eu não vou conseguir.' Mas eles diziam que a gente ia conseguir, que a gente era capaz."

"No livro eu pude falar que ninguém é melhor do que ninguém. Antes eu trabalhava em uma firma como funcionária da limpeza e sofri muita humilhação da supervisora. O fato de ter um cargo mais alto não faz uma pessoa ser melhor do que ninguém", desabafa.

A profissional de reciclagem costuma dizer que, mesmo antes de saber que era catadora, já era catadora. Sua mãe trabalhava com materiais recicláveis e ela, adolescente, ia junto recolher material descartado pelas ruas. "Naquela época não tinha PET, era mais lata. No final do dia a gente vendia e trazia o sustento para casa."

Nair Camilo Farias, 51 anos, profissional da Cooperativa Associação Nova Conquista, em Diadema (SP) Imagem: Arquivo pessoal

"Quarentena da Resistência" é uma iniciativa lançada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT)em parceria com a Festa Literária das Periferias (FLUP) e a Cooperativa Central do ABC (Coopcent ABC), com o apoio da Universidade Federal do ABC (UFABC) e os Laboratórios da Palavra e de Teorias e Práticas Feministas do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Faculdade de Letras/UFRJ, para promover a capacitação e a proteção de mulheres catadoras de materiais recicláveis organizadas em cooperativas.

A metodologia promoveu a formação contínua sobre segurança e saúde do trabalho, economia solidária, organização financeira e cooperativismo. Outro desdobramento do projeto é o documentário "As Recicláveis", lançado em 2020 e que mostra a valor do serviço ambiental prestado por catadoras e catadores de materiais recicláveis.

Profissionais da reciclagem em SP Imagem: OIT Brasil

"O resgate da história de organização da categoria profissional, agora em livro, mostra à sociedade a importância fundamental do trabalho que realizam, ao mesmo tempo em que cobra do poder público as condições e políticas públicas para a valorização e o reconhecimento do trabalho de milhares de mulheres e famílias no Brasil", afirma Elisiane dos Santos, procuradora do Trabalho do MPT-SP e uma das idealizadoras do projeto.

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