De mãos dadas

Como a união de trabalhadores e trabalhadoras garante direitos e muda as relações de trabalho no Brasil

Camilla Freitas De Ecoa, em São Paulo Victor Vilela/UOL

Maria Mendes foi chamada à sala do chefe. Uma espécie de aquário de onde ele observava suas funcionárias. "Queria saber por que você vai tanto ao banheiro", ele perguntou. Ela, então, retirou de sua bolsa um absorvente e o mostrou. "É por isso. Você não sabe que mulher menstrua?".

"Dentro da fábrica a gente sofria muita discriminação", lembra. Diferentemente dos homens, as mulheres eram impedidas até de fumar nas dependências da empresa. "Um critério absurdo", pontua. "Assim que soube pelo diretor do sindicato dos metalúrgicos que aquilo não estava certo, já acendi meu cigarro. Daí começou nossa organização."

Maria Mendes foi uma entre os milhares de trabalhadores que participaram das greves do ABC paulista entre 1978 e 1980. A região da Grande São Paulo, que inclui os municípios de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e Diadema, viu a primeira manifestação nascer em 12 de maio de 1978 e se expandir fábricas adentro.

Uma busca simples na internet pode dar a falsa impressão de que a presença de mulheres foi algo incomum no movimento, o que não é verdade. Em meio às demandas por aumento de salário e liberdade sindical, encontravam-se reivindicações específicas delas.

"Nossa bandeira sempre foi direito à creche, salários iguais e contra o assédio sexual nas fábricas", explica Maria. "E na empresa onde trabalhei quem puxou a greve foram as mulheres. Nós entramos na seção dos homens e paramos as máquinas". Hoje, aos 74 anos, ela não precisa mais pisar no chão da fábrica. Mas a luta que encampou ficou para a história.

Tinha uma operária no meio do caminho

Maria Mendes se sindicalizou em 1978. Em uma conversa com o diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC após pedir demissão, ela entendeu a importância que a entidade teria em sua jornada.

"Sindicatos são fundamentais para garantir direitos aos trabalhadores", explica Marilane Teixeira, economista e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp. "Os primeiros sindicatos em São Paulo trouxeram para a legislação todos os direitos trabalhistas básicos", completa a advogada e ex-presidente da Associação Nacional dos Advogados Trabalhistas, Sílvia Burmeister.

Da Consolidação das Leis do Trabalho, a famosa CLT, ao artigo sétimo da Constituição de 1988, todos os direitos foram conquistados por meio da luta organizada de trabalhadores, explica Burmeister. E essa organização se dava, principalmente, pelos sindicatos.

"Mas assim como nas fábricas, por lá, as mulheres sofriam muita discriminação", lembra Maria. Concentrado em setores industriais, o sindicalismo surgiu em um ambiente altamente masculino. Maria sentiu isso na pele. "Uma vez negaram minha participação na direção do sindicato e eu fiquei sabendo que minha inscrição não tinha sido aceita porque eu era mãe solteira de um filho pequeno. Diziam que eu não ia conseguir participar das reuniões sendo que eu não saía de lá", lembra.

Para que situações como essa sejam cada vez menos comuns, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que representa 21% dos trabalhadores, determinou em 2015 a paridade de gênero para a diretoria. "Hoje, percebo que o movimento sindical está muito mais aberto para a fala feminina", comenta Priscila dos Passos Silva, dirigente da Federação Estadual dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo.

Retorno da juventude

Passos também é secretária da juventude na CUT. Além da questão feminina, os sindicatos enfrentam outro desafio, a baixa taxa de adesão de novos associados, principalmente os mais jovens. "Às vezes, os jovens já chegam com certos pré-conceitos sobre sindicatos, como o de que não fazemos nada por eles, que somos vagabundos. Assim, sindicalizá-los fica mais difícil", explica ela.

Desde 2017, o número de trabalhadores sindicalizados caiu 21,7%, segundo o IBGE. Nesse mesmo ano foi aprovada a Reforma Trabalhista pelo governo do então presidente Michel Temer (MDB). Para as especialistas ouvidas pela reportagem, a nova lei, contudo, não explica sozinha o desinteresse pelos sindicatos.

Na década de 1990, a indústria diminuiu significativamente sua participação no PIB nacional, dando lugar a setores como o de serviços, que concentra uma parcela grande de trabalhadores terceirizados e autônomos. Esses, por sua vez, não se identificavam com os operários da indústria e não se sindicalizavam. A reforma trabalhista, então, chega em um momento no qual os sindicatos já estão fragilizados.

Para a advogada trabalhista Sílvia Burmeister, os sindicatos também carregam sua parcela de culpa nesse contexto. "O movimento sindical, antes da reforma, tinha abandonado a luta de classe, estava voltado um pouco para si."

Os sindicatos precisam voltar para as bases. A ideia de que a identidade de classe, que é uma coisa que os sindicatos, historicamente, ajudaram a construir, só acontece no ambiente de trabalho não é verdadeira. Essa relação de pertencimento entre os trabalhadores também acontece nos lugares onde eles vivem. E é lá que os sindicatos precisam estar.

Marilane Teixeira, economista e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp

Trabalhador sim, colaborador não

"Eu comecei a trabalhar para os aplicativos no começo de 2019. Minha filha tinha nascido, e eu estava desempregado. Já no começo, percebi que se tratava de um trabalho precarizado. Eu não tinha garantia nenhuma". Paulo Lima é Galo. O apelido herdado da moto & Galo que pilotava como motoboy virou nome de trabalho e de luta.

Criador do Entregadores Antifascistas, ele liderou, em 2020, uma das maiores greves entre entregadores de aplicativo no país. O movimento germinou junto com a indignação de Galo com as regras das plataformas. "Senti a necessidade de me organizar com outros entregadores porque sozinho a gente não consegue fazer nada", disse.

E tudo começou com um vídeo que viralizou nas redes sociais. Nele, Galo questionava "você sabe como é carregar comida nas costas de barriga vazia?". Para além da internet, ele decidiu trocar ideias pessoalmente com os entregadores. O que não foi fácil. "Tinha muito entregador bolsonarista, apolítico, que viam as minhas ideias como partidárias. Fora o discurso do empreendedorismo."

Com o pessoal da bicicleta houve mais aderência e hoje são cerca de 1200 trabalhadores de aplicativos unidos pelas redes sociais e pelas ruas. "Não dá para esperar o momento certo para lutar, você tem que lutar no momento que tem", explica. Galo virou manchete nas últimas semanas, acusado de participar do incêndio em estátua do bandeirante Borba Gato, na zona sul de São Paulo. Foi preso no dia 28 de julho, e teve a prisão revogada 14 dias depois.

A nova onda do trabalhador

Um dia você dorme sabendo que tem um chefe, um departamento de RH, colegas de trabalho com quem pode sair para almoçar. Um almoço pago com seu vale refeição. No outro, você está sozinho. É "chefe" de si mesmo. Sua demanda de trabalho vem por meio de uma plataforma. Nada além disso. Só você e o aplicativo.

"As novas formas de trabalho que estão aparecendo são cada vez mais individualistas e até a ideia do termo trabalhador está parecendo mais distante", comenta Priscila Passos, secretária da juventude da CUT, sobre o processo de plataformização.

"Essas plataformas colocam na cabeça dos trabalhadores que eles são empreendedores. Só que eles são explorados diariamente. Esse é um momento muito predador da economia", opina Miguel Torres, presidente da Força Sindical. Além disso, a ideia da própria reforma trabalhista de que "desburocratizar" as leis do trabalho geraria mais empregos não se fez verdade. Em maio, o IBGE registrou a maior taxa de desemprego desde 2012. São 14,8 milhões de desempregados no país.

Nesse cenário, a organização de trabalhadores nunca foi tão necessária — movimento que tem voltado a crescer em muitos países, como explica Rafael do Nascimento Grohmann, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e coordenador do Laboratório de Pesquisa DigiLabour.

"Nos Estados Unidos, Canadá e Europa há um movimento de jovens que, mesmo não tendo vivido o sindicalismo tradicional, estão se organizando. Na Alemanha tem até um sindicato de youtubers filiado à maior central sindical alemã que passou a negociar melhores condições de trabalho com o YouTube", diz.

No Brasil, Galo criou o "Apagão dos apps", uma greve que conta com a ajuda de consumidores para se concretizar. Para não sofrerem bloqueios e outras represálias, no dia da mobilização, os entregadores pedem que os consumidores não façam uso dos aplicativos. Dessa forma, trabalhadoras e trabalhadores não são punidos, e a greve acontece.

A natureza do sindicalismo vai continuar. Se você parar para pensar, o Entregadores Antifascistas já é um sindicato só que dentro de uma lógica de organizar os trabalhadores que nós mesmos ainda estamos descobrindo como funciona.

Paulo Lima, o Galo, líder do Entregadores Antifascistas

Do campo e da cidade

Se a lógica do sindicalismo tende a continuar, onde irão se inserir as mulheres? "As mudanças tecnológicas produzem transformações profundas nas relações de trabalho, mas vão ressignificando formas tradicionais de divisão sexual do trabalho. Entre os entregadores de aplicativo você vê, no trabalho, a predominância masculina e entre as lideranças de organizações da categoria também", comenta a economista Marilane Teixeira.

Dentro dos Entregadores Antifascistas a presença feminina é atuante. Com demandas que ressignificam a luta das metalúrgicas das décadas de 1970 e 1980, elas protestam por melhores condições de trabalho, mas também contra o assédio sexual no trânsito e por direito ao uso de banheiros exclusivos para elas. "A gente não vai romper com essa divisão por conta das novas organizações do trabalho. A gente vai alterar isso rompendo com essa ideia dos papéis de homens e mulheres", finaliza Teixeira.

No campo, as coisas são um pouco diferentes. Mulheres dedicadas à agricultura familiar e à agroecologia têm estimulado formas de organizações próprias. Maria José de Souza Silva, do Quilombo de Feijão e Posse de Mirandiba, Pernambuco, faz parte da Associação de Moradores Quilombolas de Mirandiba e também do Fórum de Mulheres da cidade. Como outras colegas trabalhadoras, é assessorada pela Casa da Mulher do Nordeste, uma organização que fortalece a autonomia econômica das mulheres por meio da agroecologia.

"A associação tem uma importância grandiosa. Primeiro porque reúne a família, segundo porque aproxima as pessoas para o desenvolvimento local preservando suas raízes, sua identidade e cuidando melhor do meio ambiente e das questões sociais da comunidade", explica.

Onde houver relações de capital e trabalho, sempre os trabalhadores vão buscar construir formas de identidade, de compartilhar suas lutas e reivindicações e resistências. Isso é histórico. Não vai ser agora que será diferente

Marilane Oliveira Teixeira, economista, doutora e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp

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